Quem se elegeu vestindo a túnica da
ética deveria combater e não aprimorar os esquemas de saque aos cofres públicos
Por Augusto Nunes, 11/07/2017,
www.veja.com.br
“Parece-me que esses políticos não se
sustentam na sociedade com o apoio das pedras, das árvores, do ar, das
coisas, em suma, e sim das pessoas – cujo conjunto tem o nome de povo”.
Monteiro Lobato
Texto
de Sonia Zaghetto
Esta
nossa terra, em que se plantando tudo dá, vem sendo leiloada há tempos. Vendida
por muitos dinheiros, traída sem tréguas, saqueada no silêncio das noites. Nada
disso começou agora, bem sei, mas hoje as vísceras expostas da Nação traduzem
um tempo de monstruosa decadência, em que a corrupção se institucionalizou;
entronizada na Praça dos Três Poderes e elevada à categoria de política do
Estado.
Homens
que desconhecem os limites da decência a negociam às escâncaras, tornando
oficial o escambo mais despudorado. Mal respira a pobre pátria. Morre um pouco
mais a cada dia. E leva consigo as esperanças de milhões.
Tão
clássico quanto a corrupção nacional é o apoio que os corruptos desfrutam desde
priscas eras. Do meu arquivo saltam fartos exemplos. Seleciono dois que
demonstram como o nosso velho ethos adoecido
dá as cartas.
O
primeiro tem quase cem anos. Monteiro Lobato, em “Mr. Slang e o Brasil/Problema
Vital”, não economiza vinagre ao criticar o governo de Artur Bernardes e a
atitude geral dos brasileiros. Suas observações sobre tais temas permanecem
dolorosamente atuais. Versam sobre a pesada carga tributária, a imprensa a
serviço dos governos, a corrupção generalizada, os abusos de autoridade, os
jovens brasileiros que já sonham entrar na vida “aposentados” integrando o
serviço público (“monstruoso parasitismo burocrático que aqui rói, como
piolheira, o trabalho dos que ainda trabalham”) e a falta de espírito
empreendedor.
“O Brasil
é a terra onde um parafuso qualquer da máquina governamental, prefeito ou ministro
de Estado, tem o direito de ‘ousar tudo’, escudado pela mais completa
irresponsabilidade”, diz o velho Lobato, que, de bônus, ainda revela quão
antiga e leviana é a nossa forma de escolher quem vai ocupar a cadeira de
presidente da República: “Exige-se habilitação para tudo, menos para dirigir o
país”.
O segundo
exemplo vem do arquivo familiar. Em 7 de março de 1983, meu avô, Roque
Pennafort, observador atento da política nacional, resumiu numa carta
desalentada as tentativas anteriores de acabar com a praga da corrupção no
Brasil: “O fato mais interessante – não fosse tétrico – foi à eleição de 1982,
a mais corrompida a que assisti em toda a minha vida. Em 1930 testemunhei uma
revolução que, diziam, veio para acabar com todos os tipos de corrupção –
inclusive e principalmente a eleitoral. Depois vieram outros golpes que
prometiam mudar as diretrizes da vida no País, inclusive o de 1964. Nada mudou
quanto à corrupção”.
Trinta e
quatro anos depois da carta de meu avô, a velha corrupção e seu cortejo de
áulicos continuam a escandalizar os brasileiros. Reagimos esperneando nas redes
sociais, consumidos pela desesperança. A cada dia, uma gota de fel: um novo
escândalo aqui, uma delação espetacular acolá, um esquema diferente adiante.
Tudo regido pela inesgotável criatividade dos gatunos disfarçados de políticos,
funcionários públicos e empresários. Há de tudo no cardápio: de náuseas
seletivas a desmentidos oficiais desavergonhados, passando por negativas
infantis, apelos dramáticos e o conhecidíssimo sofisma.
É
evidente a deterioração emocional do País. Nossa autoestima encolhe, os sonhos
desvanecem, a esperança vive nocauteada. Vergonha nos traduz. Vergonha,
diga-se, não de quem foi logrado e acabou por votar em gente indigna. O que nos
constrange é ver os expoentes da indignidade serem reeleitos, apoiados,
incensados e idolatrados, mesmo após serem flagrados lambuzando-se nos
ilícitos. A responsabilidade por isso é intransferível.
Eis
porque a fúria desaba sobre os membros da seita de fanáticos em que se converteu
a esquerda brasileira. Incapazes de autocrítica repetem os atos daqueles que
tanto criticaram no passado: os seguidores dos velhos coronéis da política,
aproveitadores da miséria, cevados por anos com o nosso melhor sangue. Os
porcos tornaram-se homens. Ou seria o contrário?
É
inegável, ainda, que, na raiz do sentimento de repulsa que os partidos de
esquerda têm provocado em significativa parcela da população está a flagrante
contradição entre discurso e prática. As alegações de que a corrupção é antiga
são verdadeiras, mas convenhamos: quem se elegeu vestindo a túnica da ética
deveria combater e não aprimorar os esquemas de saque aos cofres públicos.
Reconhecer isso é o mínimo que se espera. Como esse mea culpa não aparece, cresce a reação indignada à
elasticidade moral dos que continuam a apoiar corruptos.
Estes
comem o fruto amargo que plantaram sob a forma de crise, desemprego e colapso
da economia. Mas não o fazem sozinhos. Suas ações obrigam a coletividade a
participar do indigesto banquete. Tornam-nos a todos herdeiros compulsórios e
comensais do fruto apodrecido. No Brasil em que ovelhas são devotas de lobos,
vive-se o pesadelo cotidiano de estar aprisionado às escolhas de um gêmeo
siamês a quem já não tolera.
Diante
desse quadro, restam dois caminhos. No primeiro, relativamente fácil, continuam
a ruir as amizades. Os siameses estrangulam-se mutuamente. É a vitória final do
nós contra eles. A alternativa é a união em torno do bem comum. Caminho árduo,
porta estreitíssima. Exige maturidade, desapego de ideias arraigadas, altas
doses de tolerância. Se bem sucedida, pavimenta a longa estrada da
reconciliação nacional, um projeto coletivo no qual a opção pelo País sobrepuja
o culto a personalidades políticas. O primeiro de mil passos pode ser dado em
2018.
Essa
decisão é a parte que nos cabe.