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quinta-feira, 18 de abril de 2019

O fosso que nos separa da boa educação


Por Carlos José Marques. 12/04/2019,
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VIVIANE E VÉLEZ. Ele deveria ter aprendido com ela o que fazer na educação

São abissais as diferenças entre o que se pode chamar de gestão técnica e ideológica no campo nevrálgico da Educação. E ainda mais deletérios são os efeitos que esse ensino doutrinário, dirigido e obscurantista pode causar sobre a formação de nossos jovens. A experiência negativa está posta. Em menos de 100 dias de gestão, o MEC foi tomado pelo caos, com o risco de alienação completa dos corpos docente e discente das instituições públicas em especial. O Brasil assistiu ao descalabro do agora ex-ministro Ricardo Vélez Rodriguez com o seu despreparo administrativo e quase nenhum conhecimento de causa para tocar uma área tão complexa. O que lhe faltava em tarimba e bom senso sobrava em trapalhadas e aberrações verbais — para não dizer ignorância, no sentido mais literal da palavra. O colombiano de nascimento Vélez, que mal e parcamente fala o português e que tachou os brasileiros de “canibais” por roubarem hotéis e aviões (na sua concepção), é o mesmo que desejava mudar o entendimento do golpe militar nas apostilas escolares e que chegou a exigir a filmagem de alunos perfilados entoando, no primeiro dia de ano letivo, o lema de campanha do chefe Bolsonaro — “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” —, em uma clara e ilegal invasão de privacidade dos jovens para fins abjetos de propaganda política. Ainda bem que foi desautorizado ao menos nessa patacoada. O sainte notabilizou-se por demissões em série (14 auxiliares diretos banidos em 27 dias), desorganização das repartições de aprendizado e paralisia do esquema de distribuição de material didático, repasse de verbas e estruturação de equipes. Desgovernou tudo e levou o MEC ao quase colapso em tempo recorde. Restaram disputas intestinas de grupos rivais: os “olavistas”, de assessores despreparados vinculados ao guru oficial Olavo de Carvalho, radicado na Virgínia (EUA), contra os militares. Ideias fundamentalistas converteram-se em padrão de referência em ambas as direções. As duas correntes estão motivadas a aparelhar o sistema de maneira lamentável. Intrigas, discussões e brigas desses guerreiros culturais, que formam alas da modelação ideológica bolsonarista, podem desembocar numa perigosa partidarização ética do ensino. Será um retrocesso sem precedentes. Não é possível que prevaleça no setor o intento dessas falanges de arrivistas. Precisamos passar uma borracha nos erros de orientação pedagógica. O que se observou nos últimos tempos com a pavorosa temporada do demitido Vélez encontra, no extremo oposto, uma experiência extraordinariamente bem-sucedida (e que deveria servir de modelo) no trabalho daquela que é talvez a mais aguerrida defensora da educação de qualidade no Brasil, Viviane Senna, à frente do Instituto Ayrton Senna – uma ONG que desde o nascedouro vem apresentando resultados promissores no resgate de jovens em todos os níveis do ensino. Há de se perguntar por que as autoridades competentes não se miram, e até copiam, o exemplo louvável do Instituto? Justamente no dia que Vélez ficou sabendo que levaria o bilhete azul, na sexta-feira 5, ele e Viviane — por uma dessas coincidências da vida — estiveram juntos em um seminário voltado para empresários no qual foi possível notar, pelas falas subsequentes de ambos, a distância de patrimônio intelectual e bagagem de ensino que carregavam. Viviane, em sua apresentação àquela plateia de empreendedores, deu um diagnóstico preciso. Mostrou que o Brasil tem 50 milhões de alunos no sistema – uma Espanha de crianças só na escola. Nesse universo, apenas cinco em cada dez concluem o ensino médio, levando o País a perder metade do seu potencial de formação pelo caminho do ciclo básico. Dos que chegam lá, e concluem essa fase, apenas três sabem se expressar na língua portuguesa e apenas um domina a matemática como deveriam. Em outras palavras: para 90% dos jovens brasileiros o modelo preconizado pelo MEC não funciona. E não é por falta de recursos. Ao contrário. O País gasta hoje R$ 1 bilhão a cada dia na área, incluindo sábados e domingos, ou algo próximo a 6% do PIB nacional. Em Educação investimos muito (mais do dobro da Saúde) e entregamos pouco. Há tempo é assim. O custo econômico e de produtividade — uma vez que esses futuros profissionais saem despreparados da banca escolar para o trabalho — é imensurável. Como alerta Viviane, não se consegue transformar investimento em produtividade: há 30 anos o nível de produtividade brasileira segue mais ou menos nos mesmos patamares, muito embora a linha do tempo dos jovens na escola tenha sido significativamente ampliada. É necessária uma mudança gigante e Viviane tinha encaminhado ao presidente Bolsonaro, desde a sua posse, uma trilha com quatro sugestões baseadas em dados científicos para se alcançar esse objetivo. Quais sejam: maior concentração de esforços na alfabetização, investimento no professor (responsável por 70% do aprendizado), gestão eficaz e políticas públicas voltadas para o aprimoramento técnico. É bom nesse aspecto distinguir os modismos de ensino ou conveniências partidárias do que realmente se entende como qualificação da base didática. As mudanças movidas a convicções ideológicas tendem a naufragar. Para efeito comparativo à exposição de Viviane, é curioso observar o que Vélez tem a dizer a respeito. Dirigindo-se a mesma plateia, para o estupor da maioria, ele tirou do bolso e leu um discurso pré-elaborado, repleto de platitudes sobre a missão da sociedade, e concluiu com promessas burocráticas de abertura de uma secretaria especial de alfabetização para tratar das carências — leia-se, novo cabide de empregos. Não entendeu mesmo nada. Estava ali, de maneira cristalina, a distância que nos separa de um bom gestor para o MEC. Velez caiu, mas o novo titular da pasta, Abraham Weintraub, não parece ter um tino muito diferente do dele. Compartilha da matriz de pensamento do antecessor, embora se mostre menos caricato. Economista por formação, com experiência na área financeira, egresso da equipe do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, não é definitivamente do ramo. Weintraub chegou a declarar tempos atrás que os “comunistas” estão no topo das organizações financeiras, no comando da mídia e das grandes empresas. Por essa reflexão enviesada ele inventou uma jabuticaba: banqueiros e empreendedores adeptos do marxismo cultural. Uma contradição em si. O apostolado teórico que impõe princípios radicais, conservadores e repletos de preconceitos, avança como um mal que pode corroer os sustentáculos da educação moderna. Não é evangelizando hordas de estudantes que se trilha um caminho virtuoso nesse campo. A catequização pretendida por Bolsonaro, que chegou a declarar na semana passada que os jovens não podem ficar aprendendo política no colégio, vai contra os princípios basilares da democracia. Como irão votar direito essas futuras gerações caso pautem seu aprendizado única e exclusivamente pela cartilha de crenças pessoais do mandatário, em muitos aspectos distantes da realidade? Educar não é doutrinar.


OS CRIMES DE CAIXA DOIS NA JUSTIÇA COMUM


Entre requerimentos e projetos de lei, Moro e a PGR - estrelas da Lava Jato -  tentam evitar que as investigações parem na Justiça Eleitoral


Por Machado da Costa, 26/03/2019, 
www.época.com.br


Sergio Moro defende a mudança na lei para levar de volta à Justiça comum todos os crimes de caixa dois

Após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de mandar os processos envolvendo crimes de caixa dois relacionados a campanhas políticas para a Justiça Eleitoral, membros do governo ligados à Operação Lava Jato trabalham nas possíveis manobras para impedir que isso aconteça na prática. Primeiramente, Raquel Dodge pediu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que juízes federais possam atuar nas varas eleitorais. Agora, o ministro da Justiça, Sergio Moro, defende a mudança na lei para levar de volta à Justiça comum todos os crimes de caixa dois. A proposta já consta no pacote anticrime, encaminhado à Câmara. 

Na segunda-feira, Dodge entregou um requerimento que pode driblar a decisão do STF. Caso o TSE aceite, os juízes federais poderiam ser requisitados para assumir os processos, em vez dos juízes estaduais, como é a prática do Judiciário em crimes eleitorais. Essa mudança de jurisdição permite que o mesmo Ministério Público — o federal — continue no caso, em vez de entregar para os MPs estaduais. Ou seja, um caso relacionado à Lava Jato continuaria sendo investigado pela força-tarefa.  

A medida, no entanto, já está sendo questionada. Alguns especialistas a consideram inconstitucional. Paula Salgado Brasil, professora de Direito Constitucional da Escola de Direito do Brasil (EDB), entende que Dodge deseja fazer uma ampla reestruturação na Justiça Eleitoral que “não é tão simples nem tão singela quanto parece”. 

“O Ministério Público Federal tinha a expectativa de que o entendimento do STF fosse alterado e que se privilegiasse o processamento dos crimes comuns [ocorridos em eleições] em separado dos crimes eleitorais”, diz Brasil. “O STF realizou um julgamento técnico, entendendo que esses crimes comuns são conexos com os crimes eleitorais. Assim, devem permanecer com os juízes eleitorais — os estaduais.”

Marilda Silveira, especialista em Direito Eleitoral e professora da Escola de Direito do Brasil, concorda e cita decisões administrativas que corroboram a jurisprudência dos juízes estaduais. “A pretensão de atribuir competência eleitoral aos juízes federais não é nova e já foi enfrentada pelo TSE em algumas oportunidades”, diz.

Silveira cita a Petição 33.275, de 2011, julgada pelo STF. Nela, o plenário determina que os juízes federais não deverão atuar na Justiça Eleitoral até outro julgamento pela Corte. “O TSE sempre entendeu que juízes de Direito são juízes estaduais e que, portanto, seriam os competentes para exercer as funções de juízes eleitorais na primeira instância da Justiça Eleitoral.” 

Requerimento feito por Raquel Dodge, para que juízes federais julguem crimes de Caixa 2 na primeira instância, é considerado inconstitucional por especialistas.

A polêmica aumenta ao se perceber que a Justiça Eleitoral não possui estrutura no momento para investigar casos tão complexos de corrupção. Não à toa, o juiz da 7ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, Marcelo Bretas, fez questão de apontar no mandado de prisão contra o ex-presidente Michel Temer que a denúncia — propina paga por meio de caixa dois na campanha de 2014 — não se tratava de um delito eleitoral.  

O Globo mostrou que a Justiça e o Ministério Público Eleitoral ainda planejam se fortalecer diante da decisão do STF, uma vez que o suporte de pessoal é fundamental para o sucesso das investigações. No Rio de Janeiro, por exemplo, a força-tarefa da Lava Jato conta com 11 procuradores e quase 40 assessores. Em Curitiba, há 15 procuradores, 11 policiais federais e 30 assessores, quase todos exclusivos da Lava Jato. 

Em contraponto, na capital paranaense, a promotoria eleitoral da maior zona da cidade possui apenas quatro servidores concursados, além de um estagiário e dois outros funcionários. No Rio, cada promotor conta com um assessor e poucos servidores. 

SAÍDA PELO SENADO 

Com o pacote anticrime travado na Câmara, uma vez que o presidente da Casa, Rodrigo Maia, não aceita levá-lo à frente antes da proposta da nova Previdência, o ministro Moro recebeu uma dica útil: tramitá-lo pelo Senado. Quem levou a sugestão ao ex-juiz foi a senadora Eliziane Gama (PPS-MA), segundo o jornal O Estado de S. Paulo . Assim, Moro poderia monopolizar o debate no Senado, enquanto que a Previdência é discutida na Câmara. 

Moro tem pressa para que saia do papel seu pacote. Um dos motivos é que o projeto estabelece a competência da Justiça comum para todos os crimes de caixa dois. “Como foi interpretação legislativa, o que se pode fazer é tentar mudar via legislativa. No âmbito do projeto anticrime, nós temos um projeto, o PLP 38/2019, que pode ser apreciado”, disse em entrevista à rádio  Bandnews , nesta terça-feira, 26.  

De quebra, ele se livraria do imbróglio com Maia e tiraria o bode da sala que causa tanto estresse nas discussões do Executivo com o presidente da Câmara.




quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

"A esquerda gosta de resistir, não de governar, porque tem uma visão teatral da política"


O cientista político e historiador americano critica o efeito “despolitizador” das políticas identitárias e afirma que os progressistas devem se concentrar em cidadania

Por Ruan de Sousa Gabriel, 02/12/2018, 
 www.época.com.br

Nove perguntas para Mark Lilla:

1. O que é liberalismo identitário e por que o senhor argumenta que ele é despolitizador?

Na história recente dos Estados Unidos, houve dois tipos de política identitária. A primeira, dos anos 50 a 70, defendia os direitos de afro-americanos, mulheres e gays. Lutava por igualdade, cidadania e solidariedade. Exigia reparação histórica, mas era também generosa. Por isso, conquistou a solidariedade de pessoas que não pertenciam a esses grupos. Um segundo tipo de política identitária floresceu a partir dos anos 80, obcecada pela identidade pessoal, com o que diferencia você dos outros. A primeira dizia “somos todos iguais e queremos ser tratados com igualdade”. Já essa segunda política identitária se baseia na afirmação da diferença e na exigência de respeito à singularidade. Ninguém pode falar em nome de ninguém. Isso jogou as pessoas umas contra as outras. Quando eu era estudante, nos anos 60, e o marxismo ainda estava por aí, nós nos interessávamos por um pouco de tudo: política, economia, raça, classes sociais. Hoje, os jovens só se interessam pelo que os afeta pessoalmente e não enxergam a necessidade de se engajar numa luta comum com outras pessoas. São despolitizados no sentido de não saber como ganhar o poder político.

2. O senhor diz que os progressistas devem oferecer uma visão ambiciosa dos Estados Unidos, “capaz de inspirar cidadãos de todas as classes sociais em todas as regiões do país”. Como construir uma visão diferente dos EUA do passado (branco, anglo-saxão, protestante e industrial) e adequada a um país que hoje tem mais diversidade econômica, social, racial e sexual?

O liberalismo do passado e o do futuro devem compartilhar dois princípios fundamentais, solidariedade e igualdade, e reinterpretá-los à luz da situação atual. Imagine um ex-metalúrgico branco de Detroit que não consegue emprego para sustentar sua família e um negro de classe média que é com frequência parado pela polícia quando dirige. A preocupação de um deles é econômica; a do outro é o racismo. No entanto, uma plataforma política baseada na defesa da solidariedade e da igualdade pode contemplar ambos. O futuro de todos nós depende do bem comum, precisamos enfrentar certos problemas coletivamente.

3. Como os progressistas podem articular um discurso que inclua a defesa das minorias sem abandonar as políticas sociais e econômicas e alienar o resto do eleitorado?

Burgueses como eu e você pensam que as minorias têm uma voz e demandas unificadas. Não têm. Se você é um trabalhador negro ou uma mãe solteira negra, você não está pensando em reparação racial, mas em escolas seguras para seus filhos e acesso à saúde. Quando falarmos sobre direito de minorias — e devemos falar sobre isso —, não deve ser em oposição aos direitos de outras populações. Vence eleição quem é capaz de conversar com cada grupo sobre seus problemas e de lhes mostrar por que os princípios de solidariedade e igualdade vão ajudá-los. Hoje, o Partido Democrata não é capaz de propagar uma mensagem tão abrangente. Em vez de oferecer uma visão de futuro coerente para todos, Hillary Clinton (candidata à Presidência em 2016) falava de um jeito quando a plateia era negra e de outro quando era branca. Ninguém entendia o que unia esses discursos e ela soava hipócrita. Uma mensagem somente baseada em identidade não é bem-sucedida.

4. Os religiosos são firmes opositores das políticas identitárias. Como os progressistas podem vender uma “visão ambiciosa de futuro” ao eleitor religioso?

Nos EUA, os evangélicos não falam mais em caridade, tiraram o Sermão da Montanha da Bíblia . Os católicos estão obcecados com o aborto. Não podemos confiar nos religiosos para pregar solidariedade social, pois eles estão preocupados com outros assuntos. Por outro lado, nas democracias, precisamos do voto daqueles que discordam de nós. A política identitária da nova esquerda é um tipo de moralismo puritano. Eles não querem conversar com religiosos porque acham que têm o dever moral de chamar de monstros misóginos todos aqueles que se opõem ao aborto. Melhor seria conversar com os religiosos e dizer: “Ok, nisso discordamos, mas podemos concordar sobre outras políticas do Partido Democrata”. Podemos ouvi-los com tolerância e simplesmente discordar. Ou perguntar, sem hostilidade, por que eles acreditam no que acreditam. A esquerda se preocupa muito em não ofender ninguém, menos os brancos religiosos, que são demonizados. Se eles nos convidarem para ir à igreja, podemos ir. Não é difícil.

5. Quem deve ser o candidato do Partido Democrata na eleição presidencial de 2020?

Não temos muitas opções, mas eu acredito que seria sábio indicar um governador pouco conhecido e com aparência responsável. Se não fizermos nada idiota, Donald Trump vai perder. Não devemos tentar nada novo ou radical. Devemos nos comportar bem e assistir à explosão pública de Trump. A esquerda do partido pensa que a próxima eleição é uma oportunidade para ser mais radical e falar em socialismo, mas isso é fazer o jogo de Trump. Aliás, os liberais não devem limitar seu foco às eleições presidenciais. A verdadeira ação acontece em nível estadual. Até recentemente, o Partido Republicano controlava dois terços das legislaturas estaduais. Ou seja, eles tinham poder para limitar as leis federais. Há estados em que o acesso ao aborto é muito difícil, às vezes impossível. Distritos eleitorais foram redesenhados para impedir a representação política dos negros. Um Bernie Sanders não conseguiria fazer nada se fosse eleito. Precisamos vencer eleições locais. Por isso, precisamos nos organizar para levar nossas mensagens aos municípios. Mas, nos últimos 30 anos, uma ideologia impediu o Partido Democrata de fazer isso.

6. Em seu livro O progressista de ontem e o do amanhã, o senhor diz que a esquerda não sabe falar sobre segurança pública porque não quer ofender ninguém. O combate à criminalidade foi o foco do discurso do presidente eleito, Jair Bolsonaro. De que forma a esquerda pode falar sobre violência sem ser racista ou classista, como a direita às vezes é?

A esquerda precisa começar entendendo que as principais vítimas da criminalidade são as minorias que vivem nas periferias. Nos EUA, ativistas negros costumam repetir que nossa população carcerária é muito grande e que nosso sistema penitenciário é racista. Tudo isso é verdade. Mas o discurso de prefeitos negros é diferente. Temos muitos prefeitos negros, e eles falam sobre o combate à criminalidade com tanto vigor quanto qualquer republicano não racista. Quem sofre com a criminalidade não são os burgueses ativistas sem contato com a realidade, mas os pobres das favelas no Rio de Janeiro. Precisamos nos aproximar deles e desenvolver uma linguagem e uma estratégia para ajudá-los. Os liberais e a esquerda não devem usar as políticas contra o crime como meios para outros fins. Isso é perigoso, é o que fazem gente como Trump e Bolsonaro. As propostas deles de combate ao crime são pura demagogia para animar as massas, deixá-las com medo e persuadi-las de que estão resolvendo o problema para se perpetuar no poder. São uns cínicos.

7. Vários intelectuais argumentam que a esquerda vem sendo derrotada em eleições porque perdeu contato com a classe trabalhadora. No entanto, o senhor argumenta que os progressistas deveriam falar sobre cidadania, não classes sociais. Por quê?

As classes sociais são cruciais, porque a distância entre elas é cada vez maior. Mas as classes sociais pós-globalização são outras, têm mais a ver com educação do que com a propriedade dos meios de produção. Temos uma elite instruída e outra classe, menos instruída e incapaz de participar da nova economia. Depois de Ronald Reagan (presidente americano de 1981-1989) e da política identitária, os EUA se tonaram muito individualistas. Se não explicarmos o que é solidariedade cidadã, não adianta fazer um discurso sobre classes, porque os americanos vão dizer: “Ok, eles são pobres, o que tenho a ver com isso?”. Por isso precisamos de uma visão política que vá além das classes sociais e tenha real impacto nas pessoas. A esquerda não adquiriu um novo vocabulário desde o colapso do marxismo. O foco na cidadania é mais prático, menos idealista. Quanto mais diversa a sociedade, mais sei que a única coisa que compartilho com todos de meu país é a cidadania. Baseados nisso, podemos restabelecer laços sociais.

8. No livro, o senhor é um pouco irônico quando fala da resistência dos progressistas ao governo Trump. Por quê? No Brasil, a esquerda fala muito em resistir ao governo Bolsonaro...

O problema é achar que resistir é suficiente. A resistência a Trump tem sido inspiradora. Houve a Marcha das Mulheres logo depois da eleição dele, e nova-iorquinos foram espontaneamente ao aeroporto protestar contra deportações ilegais. Muitos esquerdistas estão animados com a resistência, porque podem brincar de reencenar a Queda da Bastilha. Eles gostam de resistir, não de governar, porque têm uma visão teatral da política: nós resistimos, nós falhamos, nós resistimos de novo. É um ciclo vicioso. Precisamos é de estratégia para governar, para construir pontes com as pessoas. Imagine que a esquerda brasileira está numa luta contra Bolsonaro. Agora, Bolsonaro está com as mãos no pescoço da esquerda. Ela precisa resistir, mas também precisa nocautear Bolsonaro. Só falar de resistência não é suficiente.

9. A democracia está ameaçada?

Sim. A democracia está ameaçada pelos demagogos de direita, mas pessoas também estão perdendo a fé na democracia. Nossos sistemas políticos são incapazes de lidar com os efeitos da globalização e suas consequências: imigração, mudanças no mundo do trabalho e novas tecnologias. Os eleitores votam em governos que prometem controlar tudo isso. Os governos falham, e os eleitores votam no outro partido. E ele falha. Depois de um tempo, eles começam a imaginar que deve haver uma elite secreta que controla tudo. Aí vem o demagogo, que também não consegue resolver os problemas, mas consegue manipular a raiva da população e jogar a culpa nessa elite invisível. Minha maior preocupação é a queda de confiança na democracia.

Mark Lilla é historiador, cientista político e professor da Universidade Columbia, nos Estados Unidos. Autor de O progressista de ontem e o do amanhã (Companhia das Letras), participou do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre e São Paulo.


quarta-feira, 21 de novembro de 2018

O baile da magistocracia


Por Conrado Hübner Mendes, 16/11/2018, www.época.com.br


Um Judiciário democrático não depende só do que juízes fazem e decidem. Importa quem os juízes são

O baile da irresponsabilidade fiscal promovido pela magistocracia acaba de conceder um aumento de 16% aos juízes de todo o país. Na melhor tradição da baixa política, o Judiciário mais caro do mundo não recebeu o polpudo acréscimo num contexto qualquer, mas em meio a uma das maiores crises econômicas da história. No javanês judicial, seus salários estavam “defasados”. Preserva, assim, sua morada no 0,1% mais alto da pirâmide social brasileira e dá mais uma contribuição à crise. O patrocínio veio dos partidos que sustentam a “nova ordem” para “limpar” a política.

A vocação rentista não teve disfarces nem meias palavras. Enquanto o aumento não vinha, o STF resolveu se autoconceder, em 2014, o auxílio-moradia por meio de liminar monocrática e passou a pagar o benefício ilegal de quase R$ 5 mil por mês a todo juiz. Livre de impostos. A torpeza corporativa retorceu a letra da lei para afirmar que a prática estava dentro da legalidade.

Consolidada dias atrás a vitória do aumento, o presidente do STF foi sincero: “Agora poderemos enfrentar o problema do auxílio-moradia”. Prometeu conversar com o ministro relator que, por mais de quatro anos, impediu o plenário do tribunal de decidir a respeito. Vamos acompanhar quanto tempo o tribunal precisará para cumprir a promessa. Não se anime, pois, o diabo mora nas finanças: o gasto anual com auxílio-moradia é de R$ 1,5 bilhão; o impacto orçamentário do aumento salarial se aproxima dos R$ 5 bilhões. Não se assuste ainda, pois associações de juízes demandam a volta do adicional por tempo de serviço e ameaçam convocar greve. A sociologia dá nome para essa prática, e esse nome leva multidões às ruas para derrubar presidentes.

Temos urgência por um Judiciário democrático, mas contra ele luta a magistocracia. A magistocracia é a fração da magistratura que hegemoniza a cultura e arquitetura judiciais e exibe cinco vocações: é autoritária (pois viola direitos), autocrática (pois patrulha juízes ideologicamente), autárquica (pois se isenta de controle e prestação de contas), rentista (dispensa explicações) e dinástica (porque quer incluir a família no baile).

Como disse a juíza Susanne Baer, do Tribunal Constitucional Alemão, em palestra na Faculdade de Direito da USP, Cortes “devem ser desenhadas para a diversidade” e assim representar os pontos de vista de uma sociedade plural. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou semanas atrás o Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros, que quantifica os padrões demográficos, sociais e profissionais da corporação. Uma radiografia não surpreendente: a magistratura é também predominantemente branca (80,3%), masculina (mulheres correspondem a 38%, desembargadoras a 23%) e oriunda de estratos sociais privilegiados (mais da metade tem pai ou mãe com diploma universitário).

O relatório é valioso por dar números ao que o senso comum intui e oferecer um diagnóstico a partir do qual reformas podem ser imaginadas. O retrato é indispensável, mas ainda insuficiente. Democratizar o judiciário passa por enfrentar a magistocracia e, entre outras coisas, pelo reconhecimento de que há privilégios injustificáveis e que privilégios não são direitos fundamentais, mesmo quando embrulhados para presente nessa nobre linguagem.

A liderança poderia vir do STF e do CNJ, mas precisam ter coragem de se emancipar dos laços magistocráticos. Se o príncipe da magistocracia, o juiz Sergio Moro, que assume seu primeiro cargo político depois das férias, recebeu gratuitamente da sociedade brasileira o manto da infalibilidade, os barões da magistocracia alcançaram o inverso: entre obstruções, arquivamentos e prescrições, após anos de desgoverno institucional e de soberba individual, o mais generoso sentimento que ministros do STF despertam tem sido a desconfiança. Para se fazer respeitar nesta nova era que se inicia, em que nossas liberdades estão sob a mais aguda ameaça dos últimos 30 anos, resta-lhes rejuntar os cacos da autoridade moral perdida. Precisam parar de bailar.

Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e Professor da USP.




terça-feira, 13 de novembro de 2018

Quem acredita no PT paz e amor?



Por Mario Vitor Rodrigues, 11/10/2018, 
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Enquanto preparo esse texto, o ziriguidum do momento fala na composição de uma “frente democrática” para impedir a vitória de Jair Bolsonaro. A ideia é a de juntar no mesmo palanque candidatos derrotados do naipe de Ciro Gomes, Marina Silva e Geraldo Alckmin. As conversas, costuradas por Jaques Wagner, incluem até mesmo Fernando Henrique Cardoso.

Do ponto de vista de quem precisa reverter quase dezoito milhões de votos em três semanas, sem dúvida se trata de uma estratégia interessante. A alarmante postura do adversário e de seus seguidores justifica com sobras o discurso de que a democracia corre perigo. A união de forças que tornem o espectro de uma candidatura mais plural também é alvissareira. Todas são iniciativas que teriam grandes chances de funcionar, não fossem capitaneadas justamente pelo PT.

A verdade é que se o Brasil se vê em um beco sem saída, e se o eleitor moderado encontra dificuldades para assumir uma posição diante de um embate tão polarizado, a culpa é mesmo do Partido dos Trabalhadores.

Não é razoável nutrir confiança por petistas graúdos que passaram anos achincalhando, sem dó, quem fosse contrário ao seu projeto de poder. Foram anos, insisto, rotulando adversários políticos e até mesmo eleitores de “fascistas”, “golpistas”, “coxinhas” e “elite branca”. Anos adotando discursos que, se não impressionam tanto quanto o de Bolsonaro pela crueza, igualmente causam espécie pelo viés autoritário, com destaque para o apoio formal à ditadura venezuelana.

Como levar fé, então, na ingenuidade dessa tentativa em formar um bloco a favor da democracia? Acima de tudo, como é possível acreditar que Lula, Gleisi Hoffmann, Lindbergh Farias e grande elenco estão arrependidos de tantos desmandos, de tanta corrupção e de tantos posicionamentos implacáveis no que diz respeito ao enfrentamento democrático, se até hoje foram incapazes de dar um mísero passo atrás?

Desconfio bastante de quem enxerga uma nesga que seja de normalidade democrática na fala de Jair Bolsonaro. O seu discurso, assim como o de seus filhos e o do seu vice, me assusta e deveria assustar qualquer um que preze por valores bem acima da disputa eleitoral.

Contudo, e arde dizer isso, esse não é um problema meu. Cabe ao PT, e somente ao PT, refazer o caminho que trilhou até hoje. É assim na vida. Confiança a gente demora a construir, mas perde rápido. E, convenhamos, no caso do PT, até demorou.

Confiança a gente demora a construir, mas perde rápido.
E, convenhamos, no caso do PT, até demorou

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Discurso arrasador de Cid Gomes provocou uma avalanche de críticas


SinceriCIDio

Um discurso arrasador do senador eleito pelo PDT do Ceará, Cid Gomes, proferido durante um ato convocado para apoiar Haddad, provocou uma avalanche de críticas da esquerda ao PT, acabando com qualquer possibilidade de o partido obter apoios à candidatura petista


Por Rudolfo Lago e Wilson Lima,
 1910/2018, www.istoé.com.br





Foi muito mais que uma ducha de água fria. Foi um banho de água suja. Na segunda-feira 15, no que deveria ser um ato de apoio à candidatura de Fernando Haddad em Fortaleza, o ex-governador do Ceará Cid Gomes, eleito para o Senado pelo PDT, desancou o PT, dizendo que o partido “vai perder feio” a eleição por jamais ter sequer ensaiado uma autocrítica e por se comportar invariavelmente como “dono do Brasil”. Cid expôs as mágoas que tornaram impossível ao PT ampliar-se para, a essa altura, vir a ser uma opção forte o suficiente para se contrapor à avalanche desencadeada pelo candidato do PSL, Jair Bolsonaro. Ao buscar apoios, o projeto hegemônico que o PT sempre fez questão de construir viu ruir as possibilidades de qualquer adesão mais entusiasmada. O PT ficou só. O discurso de Cid Gomes soou como o réquiem da sua era. Nas palavras do poeta Augusto dos Anjos, foi “o enterro da sua última quimera”. A reação de Cid, que viralizou na internet, inspirou uma onda de críticas de políticos da esquerda aos petistas, inviabilizando o projeto do PT de regressar à Presidência da República com um preposto de Lula. “O PT não tem autoridade para cobrar posicionamento. Porque nunca na sua história aceitou apoiar alguém que não fosse do próprio partido. Eles só querem apoio. O desabafo de Cid é o sentimento majoritário no partido”, resumiu o presidente do PDT, Carlos Lupi, colocando fim às pretensões petistas de contar com o apoio dos pedetistas a Haddad.

DEDO NA FERIDA Sobre um palanque no Ceará, Cid Gomes cobra uma autocrítica do PT, que jamais veio e jamais virá.

SUBORDINAÇÃO AO PARTIDO

Líder do PPS, o deputado Roberto Freire sabe bem como se dá essa relação. Há tempos, ele rompeu com o PT e com a forma como o partido tratava seus aliados. “O PT impõe a subordinação e classifica qualquer um que não concorda inteiramente com ele como se fosse de direita e traidor”, disse ele. “O que houve foi uma resposta nua e crua à forma como o PT trata seus aliados”. “No PT, não voto nunca mais”, resumiu a senadora Kátia Abreu (PDT-GO), candidata a vice de Ciro Gomes. A líder ruralista aproximou-se da ex-presidente Dilma, tornando-se sua ministra da Agricultura e amiga. Agora, declara que isso acabou. “Em vez de projeto eleitoral, eles preferiram um projeto de vingança”, disse ela. “Mais uma vez, o egoísmo imperou”. O presidente do PSB, Carlos Siqueira, admitiu “verdades” nas declarações de Cid, embora diga que este não é o momento da esquerda se digladiar em discussões dessa natureza. No primeiro turno, o PSB não lançou candidato próprio à presidência para não atrapalhar o PT, já que a tendência de muitos dirigentes do partido era a de apoiar a candidatura de Ciro. Com isso, o PSB ganhou pontos junto a Lula, mas enfureceu a família Gomes.

No evento em que foi mais sincero do que o PT imaginava, Cid não se conteve e disse em alto e bom tom aos petistas que o partido deveria fazer uma autocrítica pelos erros cometidos. “Tem que fazer um mea-culpa, tem que pedir desculpa, ter humildade e reconhecer que fizeram muita besteira”. Irmão de Ciro, derrotado no primeiro turno, Cid lavou a alma da família. Inicialmente, ele nem pretendia ser tão duro. Cobrava a necessidade de que o PT admitisse seus erros. Seja no campo da economia, com a crise provocada pelos equívocos de Dilma Rousseff em seu segundo governo, seja principalmente no campo da corrupção, ao não só permitir que crimes fossem cometidos por altas autoridades do partido, como participar do assalto ao Estado. À certa altura, ao falar na necessidade dessa análise sobre os próprios atos, – o que o filósofo Eric Voegelin chamava de “descida ao inferno” do autoconhecimento — Cid começou a ser vaiado pelos petistas. Do alto do púlpito do evento, Cid se dirigiu a um dos militantes petistas que apontava os polegares para baixo em gesto de desaprovação.

O desabafo de Cid Gomes deixou o PT ainda mais isolado. O enérgico discurso no Ceará soou como réquiem da sua era.

“É assim? Pois tu vais (sic) perder a eleição!”, reagiu Cid. “É bem feito perder a eleição! Vão perder feio. Acharam que eram donos do País. O país não aceita dono! É um País democrático”. Quando militantes começaram a gritar o nome de Lula, preso por corrupção em Curitiba, Cid retrucou: “Lula tá preso, babaca!”. Com esse jeito pouco educado que marca o estilo dos Ferreira Gomes na política, Cid explicitou queixas que outros personagens não petistas da política também já vinham fazendo quando eram procurados por Haddad na frustrada busca pela formação de uma “frente democrática” contra Bolsonaro.

O desabafo de Cid deixou o PT isolado. Com exceção de Guilherme Boulos, do PSOL, nenhum outro partido aceitou dar apoio à candidatura petista. Até o assessor espiritual de Lula, Frei Betto, ficou surpreso com a reação provocada pelo sincericídio. “A esquerda só se une na cadeia”. Bolsonaro, certamente, comemorou o bate-cabeça da esquerda. Novamente, o PT colhe o que plantou.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Politização com esteroides: o STF faz escola


Por Conrado Hubner Mendes, 09/07/2018, www.época.com.br

O desgoverno judicial, o bate-cabeça interindividual, a busca por um "supertrunfo" procedimental que permita a um juiz, sozinho, produzir efeitos concretos estão escancarados

Domingo nos embriagou com notícias de uma guerra particular. Não sabemos exatamente quando entramos na era da politização judicial com esteroides, mas sabemos de onde vem sua autoria intelectual e institucional. O STF normalizou condutas individuais e chicanas procedimentais que se espraiam por outras instâncias do judiciário brasileiro. O desgoverno judicial, o bate-cabeça interindividual, a busca por um "supertrunfo" procedimental que permita a um juiz, sozinho, produzir efeitos concretos, ainda que apenas por algumas horas ou alguns dias, estão escancarados demais. Algumas horas ou dias, em casos de aguda reverberação política, são suficientes.
O judiciário renunciou ao manto da imparcialidade que, se nunca funcionou muito bem para o andar de baixo da sociedade brasileira, ainda conseguia se insinuar com alguma eficácia nas causas mais visíveis do país. Ainda não sabemos que força política se beneficiará dessa renúncia, se à esquerda ou à direita. Mas podemos dizer que, mergulhado no seu projeto de desinstitucionalizar-se por autoimolação, sob a liderança de um STF conflagrado, o judiciário avista o precipício: aquele limiar em que suas decisões em casos explosivos já não conseguem ser lidas senão pela lente política, pouco importa se consistentes do ponto de vista técnico. Ultrapassado o limiar, vale a lei do mais forte, a política em estado bruto e visceral.
O resumo de domingo é conhecido. Sintetizo em seis passos. O leitor bem informado pode pular seis parágrafos:
(1) O desembargador Rogério Favreto, em regime de plantão, às 9 horas da manhã, mandou soltar Lula. O pedido de habeas corpus foi apresentado na sexta-feira à noite. Sob alegação de fatos novos - a dupla violação do direito civil de aguardar julgamento em liberdade, e do direito político de participar de eleições democráticas em igualdade de condições - o desembargador acolheu o pedido. Invocou como fundamento central as sinalizações cacofônicas do STF: disse que o tribunal já anunciou a "revisitação" do tema da presunção de inocência para breve (ADC 43 e 44), mas que, "por questões de política administrativa da sua pauta, ainda não foi oportunizado o seu julgamento pela Presidência". Recado para Cármen Lúcia. E lembrou que o próprio STF, diante de indefinição do plenário, tem concedido habeas corpus em decisões monocráticas ou das turmas. Em seguida, o Ministério Público Federal apresentou pedido de reconsideração.
(2) Por volta das 12 horas, o juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal, apontado como "autoridade coatora" tanto no pedido de habeas corpus quanto na liminar do desembargador Favreto, publica, das suas férias em Portugal, despacho em que, sob orientação do presidente do TRF-4, afirma não ter o desembargador plantonista competência para aquela decisão e submete consulta ao "relator natural" do caso, o desembargador Gebran Neto.
(3) Vinte minutos mais tarde, diante da demora do cumprimento da ordem, o desembargador plantonista a reitera e explica que ela pode ser executada por qualquer autoridade policial presente na Superintendência da Polícia Federal.
(4) O desembargador João Pedro Gebran Neto, relator do caso criminal que condenou Lula, portanto "juiz natural" do processo, "avoca" o caso para si. Afirma que
Recomendado para você o desembargador plantonista foi induzido a erro, que o pedido de habeas corpus tem inconsistências técnicas e que a jurisdição do TRF-4 está esgotada no caso. Afirma também, ratificando o despacho do juiz Moro, que este não pode ser visto como autoridade coatora, pois apenas cumpriu ordem de prisão do TRF-4.
(5) Às 16h, o desembargador plantonista emite terceiro despacho para reforçar os dois anteriores. Afirma que a 13ª Vara, do juiz Moro, sequer é a "autoridade coatora" nesse caso, mas sim a 12ª Vara, da juíza Carolina Lebbos, responsável pela execução provisória da pena de Lula. Confirma sua jurisdição no processo como plantonista; argumenta que não foi induzido a erro, mas deliberou à luz de fatos novos; lembra que não vivemos em regime político e judicial de exceção; dá prazo de uma hora para cumprimento da ordem; e, por último, afirma que o juiz da 13ª Vara fez interferências indevidas no processo, e solicita que a Corregedoria do TRF-4 apure eventual falta funcional. Declara também à Folha de São Paulo que o juiz Moro "não tem nada a ver" com o caso, mas sim a juíza Lebbos.
(6) Às 19h30, o desembargador presidente do TRF-4, Thompson Flores, emite despacho derradeiro, no qual enxerga "conflito de competência" entre plantonista e relator, e chancela a "avocação" do processo pelo relator, pois permitida pelo regimento. A ordem de soltura, enfim, não foi cumprida.
Opiniões de juristas e associações corporativas foram brotando ao longo do dia. A Associação Juízes para a Democracia publicou nota em defesa da independência judicial de Favreto, em crítica à contraordem de Moro e avocação de Gebran. A União Nacional dos Juízes Federais ataca Favreto, que por ser desembargador não concursado (e indicado pelo quinto constitucional), representaria o "aparelhamento político" do tribunal, produto de "esdrúxulas indicações políticas". Advogados de um lado pedem a prisão de Moro por desobediência; de outro pedem a investigação de Favreto por usurpação de sua função.
A ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, na sua autodesignada função de "pacificadora", também publicou nota no seu estilo peculiar: “A Justiça é impessoal, sendo garantida a todos os brasileiros a segurança jurídica, direito de todos." Foi na mesma linha de notas anteriores, como a que disse "não acreditar que os juízes brasileiros tomem decisões político-partidárias", até porque isso seria "terminantemente proibido"; ou a que pediu serenidade aos brasileiros, pois o "sentimento de brasilidade deve sobrepor-se a ressentimentos ou interesses que não sejam aqueles do bem comum". Para acrescentar algum sal, o ministro Marco Aurélio não resistiu a uma entrevista de rádio: "Lula ainda tem direito a recursos em tribunais superiores. E antes disso qualquer prisão é precoce".
As 12 horas de carnaval judicial não foram divertidas. Boas análises jurídicas já circulam nos jornais e nas redes, e há muitos ângulos férteis para observação. É relevante verificar não apenas se havia competência legal para cada um desses atos, mas como o seu exercício abrupto, desautorizando outros, impacta a instituição. Em geral, juristas convergem na avaliação de que todos erraram de modo mais ou menos grave: a distorção do plantão e a artificialidade do "fato novo" invocado para soltar Lula; a insubordinação hierárquica de juiz e autoridades policiais, que cria precedente de resistência a ordens superiores; o desembargador presidente que orienta o juiz de primeira instância; o desembargador relator que confronta o plantonista por meio de seu poder de avocação do processo.
A análise das tecnicalidades e infrações de cada decisão, contudo, não pode ser feita na ausência do contexto institucional que nos fez chegar até aqui. Há episódios paradigmáticos que ajudam a explicá-lo. Na Operação Lava Jato de Curitiba, que faz 4 anos, o juiz Sérgio Moro construiu para si um regime de "respeitosas escusas", expressão usada por ele para responder a reclamação no STF contra suas medidas processuais heterodoxas, em especial à divulgação ilegal da interceptação telefônica de Lula. Nessa manifestação, Moro dizia: "compreendo que o entendimento então adotado possa ser considerado incorreto, ou mesmo sendo correto, possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários." Para ele, "o levantamento do sigilo não teve por objetivo gerar fato político-partidário, polêmicas ou conflitos", mas apenas quis atender a interesses da investigação criminal.
O TRF-4, diante de representação contra o ato de Moro, apoiou sua prática. Voto do desembargador relator Rômulo Pizzolatti adotou a extravagante doutrina das "soluções inéditas para casos inéditos". Situações "anormais e excepcionais", segundo essa doutrina, escapam do "regramento genérico, destinado aos casos comuns." Um direito individual, nessas situações únicas conforme definidas pelo juiz, pode ser "suplantado pelo interesse geral na administração da justiça e na aplicação da lei penal." A doutrina do particularismo da Lava Jato citava Eros Grau e, por ato falho, trouxe a reboque a inspiração intelectual do jurista alemão Carl Schmitt. Para quem não o conhece, procure saber. Veio do desembargador Favreto o voto vencido nesse caso, que apontava a temeridade daquela doutrina.
A divulgação de tais gravações, cuja ilegalidade foi declarada pelo STF, serviu de base para movimento determinante no processo de impeachment: a liminar monocrática do ministro Gilmar Mendes que impediu a nomeação de Lula como ministro de Estado. Uma decisão monocrática que, correta ou não no mérito, o plenário da Corte se recusou a apreciar no tempo devido. Tornou-se irreversível. Mais do que o debate de mérito, cabe olhar para a identidade do juiz que proferiu tal decisão: o mesmo que conversa cotidianamente com líderes políticos da oposição e fazia pronunciamentos contra o partido de Lula em sessões do STF. Quando tem sua suspeição questionada, afirma que julga com imparcialidade. O mesmo que, nos últimos dias, tem manifestado preocupação com a institucionalidade do Supremo.
A ética da imparcialidade judicial vigente no país é a da "la garantía soy yo". Essa ética é esposada não só por ministros do STF, como Gilmar Mendes ou Dias Toffoli. Entram nesse grupo, entre outros, o juiz Sérgio Moro, que passou a freqüentar círculos partidários e, curiosamente, o próprio desembargador Favreto. Este, apesar de ter sido filiado ao PT e ter trabalhado no governo Lula, não desconfiou da sua suspeição nem se perguntou se sua trajetória traria algum risco para a autoridade da decisão. Quando perguntado, Favreto invocou a "la garantía soy yo": "Eu não tenho apreço nem desapreço a partidos, a pessoas, a gostos sociais, políticos, de gênero e tal. Eu decido de acordo com a fundamentação".
Juízes reduziram o instituto da suspeição a uma auto-análise de sua honestidade. A partir do argumento complacente de que cada juiz é "senhor de suas boas condições psicológicas para decidir uma questão com imparcialidade", como disse o ex-ministro Carlos Velloso, esvaziou-se um conceito que nunca serviu para garantir honestidade judicial, tarefa impossível, mas para proteger a imagem de imparcialidade da instituição. Dessa confusão deliberada entre imparcialidade objetiva (a imagem da instituição) e imparcialidade subjetiva (como o juiz se sente), nasceu a "la garantía soy yo".
Há ainda outros episódios dignos de nota no processo de autoimolação. Meses atrás, o desembargador Thompson Flores, presidente TRF-4, ao ser perguntado sobre a sentença condenatória de Sérgio Moro, antes mesmo que o recurso fosse analisado pelo tribunal, declarou que ela era "tecnicamente irrepreensível, fez exame minucioso e irretocável da prova dos autos e vai entrar para a história do Brasil”. E completou: “não li a prova dos autos”.
No STF, manobras individualistas contra o colegiado tornaram-se bem conhecidas: a ministra Cármen Lúcia recusa-se a pautar, contra a insistência de outros ministros, as ações que pretendem firmar posição no tema da execução provisória da pena; decisões monocráticas e das turmas continuam a conceder habeas corpus contra orientação de plenário (o mesmo que fez Favreto no caso de Lula); o ministro Fachin, relator de casos da Lava Jato na segunda turma, criou o expediente por meio do qual transfere ao plenário, sem motivação explícita, casos da sua escolha. Enquanto isso, o ministro Luiz Fux continua a manobrar, em concerto com Cármen Lúcia, pela manutenção do auxílio-moradia de juízes.
A autoridade do judiciário não emerge automaticamente, por mera previsão legal. Requer gradual construção, respeito a convenções de imparcialidade e demonstração de competência jurídica. O juiz precisa nos convencer de duas coisas: não ter interesse na causa que julga e da qualidade dos seus argumentos jurídicos. Juízes que protagonizam a cena pública brasileira de hoje, da primeira instância ao STF, ignoram esses rituais.
Administrar a legalidade pede ao judiciário uma particular habilidade política. Nesse domingo, assistimos a um desfile de inabilidades. Nesse desfile, parece que, para quem quer Lula preso, pouco importam os meios; para quem quer Lula solto, pouco importam os meios. Tudo normal no reino das paixões políticas, mas não quando juízes se rendem a elas. Pelo menos é o que parece, e o que parece importa demais para a autoridade do judiciário. O ônus de demonstrar o contrário não é nosso.