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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Uma novela real

Essa novela tem baixa audiência. O roteiro é incômodo. Sofre mais rejeição que muito político odiado por aí. São milhões de personagens em busca de um diretor para suas vidas. Nós, os espectadores, passamos todos os dias perto de um monte deles, os viciados em crack, crianças, grávidas, jovens, velhos. Tentamos não enxergar. Por medo ou impotência – ou ambos. De vez em quando, personagens do lixão real – e não do lixão glamouroso – batem às portas de nossa consciência, dão um tapa na sociedade. Deixam de ser invisíveis. Maltrapilhos e desesperados, eles aparecem na televisão, na primeira página dos jornais, resistindo à internação. Uma internação que deveria ser compulsória, mas é de mentirinha. Porque horas depois voltam para o mesmo lugar ou correm para outro canto, onde se tornam novamente invisíveis. Foi o que aconteceu na semana passada no Rio de Janeiro. A PM, com a ajuda do Bope e da Polícia Civil, ocupou o Complexo de Manguinhos e a favela do Jacarezinho, conhecida por abrigar a maior cracolândia da cidade. A ocupação policial é o primeiro passo para a entrada das UPPs, as unidades de pacificação de favelas controladas por bandidos. Os traficantes fogem. Os viciados também. Esses últimos se mandaram para uma praça na entrada da Ilha do Governador, perto da Avenida Brasil. E, pasmem, em frente à nova sede do Bope. “Essas pessoas têm de ser curadas e tratadas. Se não forem curadas, partirão para outras favelas”, afirmou o secretário de Segurança do Estado do Rio, José Mariano Beltrame. O crack, segundo Beltrame, não é um problema de polícia, mas de saúde. O Brasil precisa encontrar uma solução. Quando leio sobre viciados em crack detidos na rua, percebo que mesmo os especialistas apelam para lógicas impalpáveis. Por exemplo: “Deve-se informar ao Ministério Público que o adulto será internado por 72 horas numa emergência”. Ou: “Deve-se chamar a família do usuário”. É um arsenal fictício, porque a sociedade se sente impotente. Preferimos deixar o viciado seguir seu destino, a morte precoce. Desde maio de 2011, todo menor dependente de crack pode ser levado à força a um abrigo. Ali é avaliado. Se for um “caso grave”, vai para um dos cinco centros de tratamento de usuários de drogas da Secretaria Municipal de Assistência Social. São 178 vagas. Imagino que, diante da carência, pouquíssimos cheguem a ser considerados “caso grave”. Se o viciado tiver mais de 18 anos, não pode ser internado contra sua vontade. A prefeitura não tem clínicas para internar adultos dependentes de crack. Eles são encaminhados a centros que tratam transtornos mentais ou a centros psicossociais. No Rio Acolhedor, um centro da prefeitura, uma usuária de crack, Fabiana Sousa, de 32 anos, disse ao jornal O Globo que “dá para comprar (a droga) perto do abrigo”. Em poucas horas, quase todos voltam para os “currais do crack”, atrás de tapumes. Nós, espectadores, passamos todo dia perto dos personagens – viciados em crack, crianças, grávidas, jovens, velhos... Os sadios que escolheram uma vida sem drogas podem argumentar: o que temos a ver com bandos que vivem como animais? Na verdade, somos todos responsáveis – ou por eleger as pessoas erradas, ou simplesmente por não protestar. Como disse Beltrame ao entrar em Manguinhos e no Jacarezinho: “Tiramos essa população da mira dos fuzis, mas agora precisamos tirar da linha de extrema miséria”. Sai o poder paralelo, saem os tribunais do tráfico, as ossadas de vítimas nos valões, as refinarias de cocaína, as carcaças de carros roubados. E entra aos poucos o poder legítimo do Estado. A Comlurb retirou toneladas de lixo, e a Rioluz trocou centenas de lâmpadas. Falta muito. A região era chamada de Faixa de Gaza. O apelido dá uma medida do terror. Como foram criminosos os governantes que permitiram ao Rio chegar a esse ponto... E como nós fomos cúmplices por omissão... Novos dados do Censo 2010, divulgados na quarta-feira, mostram que o crack, o tráfico armado e a bandidagem têm um imenso campo de operações no Brasil real. Somos a sexta maior economia do mundo. Mas quase metade dos lares brasileiros não tem água, esgoto ou coleta de lixo. Melhorou. Em 2000, esse percentual era maior: 56%. Ainda é um absurdo, uma vergonha. Não há água, esgoto ou coleta de lixo em 27 milhões de lares. São 107 milhões – de brasileiros como nós. Sem o mínimo do básico. O Brasil é mais cruel ainda com suas crianças. Porque, onde moram crianças de até 6 anos, as moradias adequadas não chegam a 30%. Esses brasileirinhos convivem com barata, rato, escorpião, além dos mosquitos. E, no Norte do país, o desastre é maior: mais de 90% dos lares não dispõem de todos os serviços básicos. Tudo segundo o IBGE. Na novela do Brasil real, até o bem triunfar, faltam décadas de capítulos. Oi, oi, oi. Ruth de Aquino, Época 23/10/2012.

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