Vergonha é uma das palavras mais
pronunciadas no Brasil. Não é por excesso. É por falta
Por Augusto Nunes, 25/06/2017,
www.veja.com.br
DE ONDE VÊM AS PALAVRAS
Texto de Deonísio da Silva
A Constituição do Brasil poderia ter apenas dois
artigos: “Art. 1º Todo brasileiro é obrigado a ter vergonha na cara. Art. 2º
Revogam-se as disposições em contrário”.
Este
modelo de Constituição foi proposto pelo historiador Capistrano de Abreu,
professor do Colégio Pedro II, no Rio.
Vergonha
veio do Latim verecundia, palavra composta dos étimos vereri, ter medo respeitoso, presente
também em reverência, reverendo, reverendíssimo etc. E cundia,
abundância, indica que este medo respeitoso é muito grande. Mais do que medo, é
temor, pois não há lei que pegue sem temor de que à transgressão segue a
punição, o castigo. Dante conseguiu mais católicos com o medo do Inferno como
descrito na Divina Comédia do que os padres com seus
sermões! E o castigo deve vir rápido. “O castigo vem a cavalo” é outro de
nossos ditados. Vem a cavalo porque o cavalo foi o meio de transporte mais
rápido até o trem, inventado apenas no século XIX!
Vergonha
é uma das palavras mais pronunciadas no Brasil. Não é por excesso. É por falta.
Será que somos um povo sem-vergonha? Muitos autores atestam que o povo tem
muita vergonha, mas nossa classe dirigente tem pouca ou nenhuma.
Há
controvérsias, como sempre. A falta de vergonha não é exclusividade de nenhum
dos três poderes. Embora seja costume nacional atribui-la apenas aos políticos,
ninguém pode negar que o brasileiro adora uma sem-vergonhice.
Todo
sem-vergonha teve muitos que votaram nele para que fosse eleito! E eleito quer
dizer escolhido! Quem escolheu o sem-vergonha, é sem-vergonha também ou foi
enganado? Por isso, é importante o eleitor saber se está bem representado, se
soube escolher. Porque depois não adianta se queixar! Nem do vice! Pois no
Brasil, desde Floriano Peixoto, vice assume! José Sarney assumiu, Itamar
assumiu e Michel Temer assumiu! Três vices assumiram desde 1985. De dez em dez
anos, em média, no Brasil um vice assume!
Entretanto,
uma das mais severas admoestações feitas a nós, brasileiros, desde a infância,
proferidas por pais, irmãos mais velhos, avós, outros parentes, professores e
amigos, está contida numa pergunta singela: não tem vergonha na cara, não?
Ninguém
tipificava o crime ou conferia a lei ou o artigo onde o sem-vergonha se
encalacrara. O infeliz reconhecia a transgressão, tão logo fosse admoestado e
procurava emendar-se. Hoje, ele recorre!
O bordão
“é uma vergonha” tornou-se ainda mais popular depois de tomado como
fecho-padrão pelo jornalista Boris Casoy em seus comentários na apresentação de
telejornal.
Mas por
que “vergonha na cara?”. Aí é que está. Ditados muito antigos dão conta de que
facada, tiro, porrada e bomba são menos graves do que um tapa na cara. O tapa
(no Sul é masculino) e a tapa (no Norte é feminino) são humilhantes em qualquer
estado brasileiro.
O soco,
murro de mão fechada, não é tão humilhante. Olho roxo pode ser sinal de
valentia. Nem o famoso pontapé na bunda é mais humilhante do que receber um
tapa na cara. Capistrano de Abreu observa que, de acordo com as crenças
populares, “Nosso Senhor tudo sofreu, mas não teve pontapés” e que “os escravos
reclamavam” deste castigo, pois “pontapé é pra cachorro”.
O
problema está na cara! César, quando em guerra civil contra Pompeu, recomendou
a seus soldados, quase todos veteranos, que procurassem feri-los no rosto (Miles, faciem feri!). Vaidosos de sua juventude e
beleza, os recrutas de Pompeu debandariam como, de fato muitos deles o fizeram.
Morrer em combate, tudo bem! Mas voltar com o rosto sangrando por ter apanhado
na cara, não!
Nem
faltou a justificativa bíblica de que Deus fez o Homem à sua imagem e
semelhança. As cortes católicas trouxeram para o Brasil o conceito de que a
cara da pessoa é sagrada.
Em suma,
está na cara que ter vergonha na cara é importante sob qualquer ponto de vista.
E é indispensável que os brasileiros que perderam a vergonha – eis aí outra
expressão muito interessante – voltem a tê-la. E voltem a tê-la na cara!
Nenhum comentário:
Postar um comentário