ÉPOCA obteve a íntegra das
investigações arquivadas desde 2011. Os documentos demonstram como os processos
foram engavetados
Por
Juliana Dal Piva, 09/02/2018,
www.época.com.br
Segunda-feira, 11 de dezembro de 2017. Passava pouco das 10
horas da manhã quando começou a reunião dos procuradores no chamado Órgão
Especial do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o principal colegiado da instituição que
agrega 22 jurisconsultos. Naquele dia, a pressa por compromissos alheios ao
encontro fez o procurador-geral de Justiça, José Eduardo Gussem, pedir uma
inversão da pauta. Antes de avaliar os processos, ele pediu para começar o dia
pelo último item, os assuntos gerais.
DESCOBERTA
Sérgio Cabral governou o Rio de Janeiro
sem que a “farra dos guardanapos” ou os afagos a amigos com contratos públicos
fossem investigados pelo Ministério Público Estadual
A sala ampla destinada às reuniões fica situada no 9º andar
do prédio das procuradorias de Justiça, no centro do Rio. Durante esses
momentos de deliberação, os membros do colegiado ficam sentados em duas
bancadas postadas uma em frente à outra. Elas são unificadas em uma das pontas
por uma mesa ao centro, destinada ao procurador-geral. As reuniões são
obrigatoriamente públicas.
Logo depois da aprovação da ata, Gussem cedeu a palavra ao
procurador Alexandre Viana Schott, que veio apresentar ao grupo uma proposta.
Ele sugeria a criação de uma força-tarefa para dar celeridade a uma investigação
de improbidade administrativa contra o presidente da Assembleia Legislativa do
Rio, o deputado Jorge Picciani. Quatro dias antes, o Ministério Público Federal
havia denunciado criminalmente o deputado, que já estava preso. Desde 2016, o
MP do estado mantém sigilosamente uma investigação que envolve fatos
semelhantes. Por questão de competência judicial, só poderia processá-lo por
improbidade administrativa, o que não foi feito até agora. O pedido refletia a
tensão dos dias. Da tribuna, Schott defendeu que o MP estadual precisava agir.
As inúmeras denúncias contra o ex-governador Sérgio Cabral chegavam naquele momento aos
outros caciques do partido no estado; já tinham atingido antes os integrantes
do Tribunal de Contas do Estado
(TCE). Um dos quais, o ex-presidente Jonas Lopes, admitia participar de esquema
destinado a fraudar contratos e corromper agentes públicos.
Aos poucos, crescia um burburinho de que não era apenas o TCE que tinha feito vista grossa aos
desvios de Cabral e da cúpula do MDB
fluminense. Não demorou para que fossem lembrados os arquivamentos das
investigações pedidas desde o início da gestão de Sérgio Cabral. Um artigo do jurista Joaquim Falcão deixou os
membros do MP engasgados. Ex-membro do Conselho Nacional de Justiça, Falcão
descreveu a teia que envolvia Cabral e os órgãos de controle do estado e chamou
o MP de “necessário, mas inerte”. O texto logo virou debate em um grupo no
WhatsApp da instituição, com mais de 100 membros. “Cobra-se o MP por não ter
atuado”, disse Schott. E, no que pareceu um desabafo, o orador elencou o
histórico de procedimentos contra Cabral
arquivados pela instituição e, nas palavras dele, “amplamente denunciados
pela imprensa”. Schott passou então a lembrar o enredo das denúncias que
antecederam as ações da Operação Lava Jato, sobretudo a proximidade de Cabral com empresários como Fernando Cavendish e Eike Batista. Na
defensiva, o procurador-geral negou o pedido de Schott de instalação de uma
força-tarefa, alegando que o grupo de Combate à Corrupção do MP estadual estava
cuidando do caso aberto contra Picciani. Assegurou que a “resposta” seria dada.
Argumentou que a força-tarefa do MPF foi criada a partir das delações premiadas
em 2014. Por fim, se esquivou: “Fora isso desconheço qualquer denúncia contra
governador ou ex-governador deste estado”. O desabafo de Schott, porém,
encorajou outros colegas presentes na reunião a cobrar uma posição.
“Nós falhamos e temos
de reconhecer. Essa instituição e todos os seus integrantes só vão crescer
quando tiverem a coragem de enfrentar as próprias feridas”, admitiu, com uma
voz grave, a procuradora Márcia Tamburini. “Gostaria que a minha instituição tivesse ao menos
investigado as suspeitas”, criticou ela. O procurador Márcio Klang disse que
poderia parecer antipático, mas respaldava o pedido do colega. “Nunca é demais
pedir prioridade naquilo que é prioritário”, sustentou Klang, como se fosse o
conselheiro Acácio, o personagem das obviedades de Eça de Queirós.
A discussão durou quase uma hora e meia. Não teve
consequências práticas, nem mesmo marcou uma mudança em relação ao histórico de
decisões desde a gestão Cabral. Foi o máximo de autocrítica a que o Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro chegou.
"Nunca é demais
pedir prioridade naquilo que é prioritário" MÁRCIO
KLANG, PROCURADOR, NA TENTATIVA ACACIANA DE CONVENCER COLEGAS A INVESTIGAR
CABRAL/PICCIANI.
Há anos a temperatura dessas reuniões colegiadas se abrasa toda
vez que o assunto é a cúpula do MDB no Rio. E, embora as delações premiadas
tenham inaugurado um momento inédito do Judiciário brasileiro, um olhar atento
sobre os principais inquéritos abertos no Rio contra Cabral permite facilmente
identificar o que faltou para que fossem adiante.
ÉPOCA obteve, após um pedido de acesso à informação, a
íntegra das investigações arquivadas desde 2011. Os documentos demonstram que,
naquele período, os inquéritos se estendiam por cerca de um ano, mas se
resumiam a trocas de ofício entre o procurador-geral e o então governador. O
conteúdo das explicações apresentadas por Cabral era usado como base para os
pedidos de arquivamento sem que ele fosse, muitas vezes, sequer checado.
Seis anos depois, ao menos três procuradores que votaram ou
conduziram essas investigações integram o primeiro escalão da atual
administração do Ministério Público. O primeiro caso polêmico se instalou a
partir de 17 de junho de 2011, quando a queda de um helicóptero no litoral de
Porto Seguro, na Bahia, vitimou a namorada de Marco Antônio Cabral, filho do
ex-governador, e Jordana Kfuri, mulher de Cavendish. Na ocasião, todos se
dirigiam ao Jacumã Ocean Resort para a festa de aniversário de Cavendish.
Cabral deslocou-se para a Bahia em um jato Legacy do empresário Eike Batista.
O acidente tornou público o grau de proximidade do trio. Dez
dias depois do acidente, bombardeado pela imprensa, o então procurador-geral
Claudio Lopes abriu um inquérito. Em seguida, por ofício, solicitou que Cabral
fornecesse os “esclarecimentos” que julgasse “pertinentes” sobre os contratos
do estado com a Delta Construções S.A. e os benefícios fiscais concedidos ao
Grupo EBX. Não foi feito nenhum questionamento sobre os motivos pelos quais o
ex-governador usou o jato de Eike na viagem ou as circunstâncias da viagem. A
resposta do mandatário veio por meio de Régis Fichtner, secretário da Casa
Civil à época, e de Hudson Braga, então titular da Secretaria de Obras. Eles
listaram os benefícios fiscais obtidos por Eike, justificando que as empresas
atendiam os critérios estabelecidos pelo governo e listaram as obras pelas
quais a Delta era responsável. A principal explicação para a dispensa de
licitação naqueles contratos da empreiteira eram as tragédias em decorrência
das chuvas em Angra dos Reis, Niterói e na Região Serrana.
Depois do ofício, o promotor Emerson Garcia, responsável pela
condução do procedimento à época, sugeriu ao procurador-geral o arquivamento e
descreveu que as suspeitas de favorecimento aos empresários ficavam apenas no
plano das “conjecturas”. Claudio Lopes acatou a sugestão e decidiu pelo
arquivamento. Por força da lei, no entanto, um arquivamento do procurador-geral
precisa ser analisado pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Lá,
o caso foi relatado pela procuradora Dirce Ribeiro de Abreu, que deu seu
parecer em 13 de junho de 2012 – um ano depois da queda do helicóptero.
A BOLA DA VEZ
Preso em operação de procuradores
federais, Jorge Picciani também está longe de investigação estadual.
Ela concordou com a opção de Claudio Lopes e escreveu que “as
suspeitas sobre eventual promiscuidade na relação entre o governo do estado e
empresários foram devidamente rechaçadas pela presente investigação”. Para ela,
havia uma “ausência clarividente” de que “a amizade entre o governador e os
empresários teria redundado em favorecimentos ilícitos a estes últimos”. E
ainda completou que o governador estava “livre para manter laços de amizade e
companheirismo com quem bem entender”. O procurador Sérgio Ulhôa Pimentel,
então conselheiro, chegou a pedir vista do processo, mas, posteriormente,
concordou com Dirce Abreu e Claudio Lopes. Pimentel argumentou que não se
poderia fazer uma “devassa” nos contratos porque eles passaram pelo crivo do
TCE. Não se havia apontado nenhuma “irregularidade real”. Sob discordância de
alguns integrantes, o arquivamento foi confirmado por maioria no fim de junho
de 2012.
Nesse mesmo período, já havia sido aberto inquérito sobre as
viagens de Sérgio Cabral e seu secretariado a Paris, episódio que ficaria
conhecido como a “farra dos guardanapos”. A ausência de perguntas do MP se
repetiu. As diferentes imagens mostravam cenas de momentos distintos. Algumas
foram registradas em 2009, durante o aniversário de Adriana Ancelmo, mulher de
Cabral, em um jantar em Mônaco no qual o casal estava acompanhado de Cavendish.
Outras mostravam uma festa em Paris na qual alguns secretários de Cabral
apareceram dançando com guardanapos atados na cabeça – também em 2009. Em 8 de
maio de 2012, Claudio Lopes, ainda procurador-geral, encaminhou ao
ex-governador um pedido de informação sobre as viagens noticiadas na imprensa,
a comitiva que o acompanhou e a justificativa de cada uma delas.
RELAÇÕES PERIGOSAS
Marfan Vieira Martins foi
procurador-geral durante o governo de Sérgio Cabral e jantou com o deputado
Edson Albertassi, às vésperas da prisão deste em Operação da Polícia Federal.
Cabral emitiu um ofício de resposta logo no
dia seguinte. No documento, sustentou que as imagens publicadas tratavam de duas
viagens distintas ocorridas em 2009. Segundo o ex-governador, a primeira teria
sido custeada com recursos próprios e era privada, por ocasião do aniversário
de sua mulher. Ele não apresentou qualquer comprovante e sequer mencionou a
data específica dessa ocasião. Já a segunda viagem, em Paris, teria caráter
oficial e o ex-governador listou a série de compromissos relacionados à
campanha pela escolha do Rio como sede dos Jogos de 2016. Oito meses se
passaram sem que nenhum outro pedido de informação da procuradoria-geral a
Cabral fosse realizado. Em 9 de janeiro de 2013, o procurador Charles Van
Hombeeck Junior, designado por Claudio Lopes para o caso, “à míngua de qualquer
indício de ilegalidade”, opina pelo arquivamento.
Nesse período, terminou o mandato de Claudio Lopes e Marfan
Vieira Martins foi eleito procurador-geral de Justiça do Rio. De modo
irregular, o inquérito sobre as viagens não foi enviado para o Conselho
Superior do MP e ficou esquecido por outros quatro meses. Quando ele finalmente
chegou ao órgão, um ano depois de sua abertura, o relator Alexandre Araripe
Marinho não se deu por satisfeito e solicitou mais explicações. Questionou as
datas em que cada situação ocorreu e a declaração de que não houve pagamento de
passagens e diárias na viagem particular. Pediu comprovantes dos compromissos
oficiais. Mas as perguntas pararam por aí. Um novo ofício de Régis Fichtner,
chefe da Casa Civil, afirmou que não houve pagamento e foi o suficiente para o
relator do caso. Assim, em 15 de outubro de 2013, um ano e meio depois da
divulgação das fotos, Marinho pediu o encerramento dos trabalhos. Ele
considerou que o “noticiário sobre as viagens a Paris parece ser requentado ou
mais do mesmo” em relação ao publicado um ano antes e concluiu pela “inexistência
de indícios”, tanto para uma ação civil pública como para o prosseguimento das
investigações.
As conclusões receberam severas críticas de quatro
integrantes do conselho, já que Cabral nem sequer comprovou o pagamento das
despesas na viagem. Após a apresentação do voto, dois conselheiros pediram
vistas e quatro solicitaram que fosse apurada a origem dos recursos da viagem.
O pedido não foi aprovado e, após muito bate-boca, em 11 de novembro de 2013, o
inquérito foi, enfim, arquivado por 6 votos a 4. Marfan Vieira Martins chegou a
registrar seu voto nos autos. Escreveu à época que “nem mesmo as ilações
formuladas pela imprensa” ofereciam um caminho para a investigação e “seria no
mínimo inusitado que o MP requisitasse do Chefe do Executivo a apresentação de
provas de que não praticou um ilícito”.
Um dos últimos inquéritos de que Cabral foi alvo antes do fim
de seu mandato teve como foco o uso indiscriminado dos helicópteros do estado
para compromissos particulares, sobretudo as idas à casa de Mangaratiba. O
procedimento foi aberto na época em que se encerrava o das viagens a Paris, em
outubro de 2013, e seguiu o mesmo script. Foi arquivado sem delongas no ano
seguinte. Martins determinou que Sérgio Ulhôa Pimentel conduzisse a
investigação na procuradoria-geral. Paralelamente à apuração, os procuradores
sugeriram que o governador criasse uma norma para a utilização das aeronaves, o
que inexistia. Cabral atendeu por meio de um decreto.
O ex-governador informou ainda que o uso dos helicópteros se
deu devido a recomendações da Subsecretaria Militar da Casa Civil e da
Secretaria de Segurança devido a ameaças recebidas contra ele e a família por
causa da política de segurança implantada. A procuradoria chegou a solicitar à
Infraero as relações de voo dos seis meses anteriores aos flagrantes. Segundo
ele, foram identificadas três viagens em três meses. Assim, ao final, a
conclusão foi de que outra vez o assunto era tratado com exagero na imprensa. O
parecer de Pimentel aprovado por Martins afirma que o uso das aeronaves estava
“inteiramente justificado” tanto por “razões de segurança” como pela
“otimização de seu tempo, dado que é de conhecimento público a condição caótica
do trânsito da cidade do Rio”. O relator no conselho foi outra vez Alexandre
Marinho, que, igualmente, achou a explicação coerente. No caso de Mangaratiba,
segundo ele, seria até “questionável a economicidade da via terrestre em
relação ao transporte aéreo, tendo em vista o critério custo x
benefício”.
"É questionável a
economicidade da via terrestre em relação ao transporte aéreo, em vista do
custo/benefício" ALEXANDRE ARARIPE MARINHO, PROCURADOR, EM
DEFESA DO USO DE HELICÓPTEROS POR CABRAL.
Cabral nunca apresentou aos procuradores as
ameaças recebidas, as recomendações de segurança ou mesmo o custo aos cofres
públicos das viagens realizadas. Mas ele também não tinha sido questionado até
o momento. Novas rixas se instalaram. O procurador Claudio Henrique da Cruz
Viana pediu vistas e registrou que o MP, “lamentavelmente”, não investigou como
deveria. “Quis saber pouco.”
E m julho de 2014, foi mantido o arquivamento por 6 votos a
4. Pouco depois disso, a Operação Lava Jato chegava a Cabral, por meio da
delação premiada de Paulo Roberto Costa. Sérgio Ulhôa Pimentel, Alexandre
Araripe Marinho e Marfan Vieira Martins são todos subprocuradores-gerais de
Justiça, escolhidos pela atual chefia do MP. Dirce Abreu foi eleita para o
Órgão Especial do MP, e Claudio Lopes para o Conselho Superior do MP. Na outra
ponta, políticos e empresários estão envoltos até o pescoço com a Lava Jato.
Cabral foi condenado quatro vezes na primeira instância do Judiciário e acumula
sentenças que somam quase 90 anos de prisão.
Hudson Braga está preso. Cavendish e Eike Batista cumprem prisão domiciliar.
Régis Fichtner responde ao processo em liberdade. Claudio Lopes também é alvo
de investigações devido a ações em sua gestão como procurador-geral. Ele
responde uma sindicância interna e um inquérito penal no CSMP, sob acusação de
vazar uma operação de busca e apreensão em 2010. Já Marfan Vieira Martins foi
flagrado pela Polícia Federal, às vésperas da Operação Cadeia Velha, jantando
com o deputado estadual Edson Albertassi, preso naquela ocasião. Os mais
críticos temem que, no caso de Picciani, acusado de enriquecimento ilícito, a
história se repita e nada seja apurado pelos procuradores do estado.
O Ministério Público informou, por meio de nota,
que deve concluir até o final do mês a investigação de Picciani. Acrescentou
que as investigações de Cabral foram conduzidas de acordo com as informações
disponíveis à época e que novos elementos de provas só surgiram na Operação Lava
Jato. De acordo com a instituição, não cabe reavaliação das decisões tomadas anteriormente.