Texto de Claudia Penteado
Na 'Visita' de hoje, Claudia diz que voto não é só
esperança. É um momento de reconexão com as nossas raízes.
Todo dia de eleição é assim. Desde os 18 anos,
Nelito (hoje com 44) sai de casa para votar na mesma escola em Rocha Miranda,
bairro onde passou a infância. Hoje mora no Alto da Boa Vista, mas gosta de
voltar à escola onde estudou e à praça em que costumava ficar. Quase nada
mudou, tudo continua pobre. Até recentemente, aproveitava para visitar a mãe, e
em algumas ocasiões levou a filha para mostrar um pouco da sua história. Flávio
mora na Zona Sul há muitos anos, mas vota até hoje no Lins, onde aproveita para
rever o prédio onde cresceu, o primeiro apartamento que conseguiu comprar,
esbarra com conhecidos e conta histórias à namorada. Por lá, muita coisa mudou.
A lembrança é mais amena, menos rude que o bairro que encontra hoje.
Martha nasceu e vota na Tijuca, e gosta de rever os
parentes nesses domingos alegres de ruas movimentadas e repletas de santinhos.
Isabel vota desde os 16 anos em Vila Isabel, onde ainda vivem seus pais, no
mesmo endereço. Tamanho o apego, não transferiu o título nem quando morou em
Brasília, durante cinco anos. Renata mora em Ipanema, mas manteve o
título no Méier para ter uma desculpa para visitar a avó. Como Bianca, hoje em
Copacabana, que mantém o título no Grajaú para rever a avó e da madrinha. Em
dia de eleição, Eduardo e Taísa rumam para a Ilha do Governador, onde moraram
boa parte da vida, e gostam de retornar para visitar a família. Taísa mora na
Lagoa, mas vota na escola onde tantas vezes foi com a mãe professora, quando
criança. Hoje, domingo, ela combinou um grande almoço com as amigas daqueles
tempos.
Para Sandra, eleição é dia de reencontrar amigos de
infância e vizinhos. Fernando vive na Vila Madalena, mas vota em Perdizes, onde
aproveita para “filar o almoço da mama e rever amigos de escola e
vizinhos”. O percurso de duas quadras entre a casa dos pais e o local de
votação, ele conta, é recheado de paradinhas para rever gente, colocar a
conversa em dia e reencontrar uma parte muito boa da sua história.
Marcelo vota em Copacabana para “respirar um pouco
da atmosfera gostosa da infância, quando a maior preocupação era saber se ia
dar onda no Arpoador”. Para Hugo, de São Paulo, o "eterno retorno" a
Santos trazem sentimentos de conquista: o voto é no antigo colégio, onde tirou
zero na primeira prova do primeiro ano, mas formou-se com louvor, sem nunca ter
ficado de recuperação.
Rafael é do Rio, mora em São Paulo, e nunca
transferiu o título. Gosta de votar justamente no colégio onde estudou, refazer
o trajeto dos tempos de moleque, ver o movimento das ruas, visitar os pais e o
bairro. Também por razões ideológicas e políticas, não vê sentido em votar em
São Paulo. “Me sinto realmente voltando para casa”, diz. Carla é outra carioca
na terra da garoa, e nunca conseguiu transferir seu título porque de alguma
forma, sente estar fazendo algo "pela sua casa", ela diz.
Eu mesma vivi essa sensação durante muito tempo: a
de não ver sentido ou familiaridade em votar longe do lugar onde cresci. Também
não transferi meu título de Petrópolis para o Rio, onde moro há uns 25 anos. De
alguma forma, durante anos e anos, voltar lá e votar num pequeno colégio perto
da casa da minha mãe, me deu uma quentura na alma e a sensação de que eu nunca,
de fato, fui embora de lá. Refazia meus laços, passava o fim de semana com
mamãe, sentia o cheiro do pertencimento, renovava energias, aprumava
prioridades.
Percebo agora que embora tenha adotado um novo
discurso diante da questão da transferência do título - o da inércia e da
preguiça -, há algo mais forte que me mantém conectada ao passado: o desejo de
não me desligar das minhas raízes. Aquele pedacinho de papel, que me diz de
onde eu sou, é uma espécie de Madeleine de Proust: materializa e legitima o
lugar de onde vim, quem sou, me aponta o fragmento de história que influencia
minhas escolhas do presente. Como disse Freud, não somos apenas o que pensamos
ser. Somos
mais: somos também o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos.
Esquecemos?
O que une todas essas
histórias - verdadeiras - é o desejo da reconexão com as raízes. Gosto muito de
uma frase de Victor Hugo que aconselha: "troque suas folhas, mantenha suas
raízes". É bom mudar opiniões, mas manter princípios molda quem somos, nos
dá consistência na vida. Faz todo sentido revisitar o passado e reforçar
crenças, convicções e princípios, nesse momento de pensar o futuro.
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