Publicado no Estadão desta quarta-feira,
25/09/2013.
Por José Neumanne.
Na teoria, os seis ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) que votaram pela aceitação dos embargos
infringentes dos condenados do mensalão que tiveram quatro votos contra a
sentença majoritária se inspiraram na mais nobre das intenções, a de garantir
plena defesa a réus julgados não em última, mas em única instância. Os
ex-dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) e no primeiro governo federal
deste José Dirceu, José Genoino e João Paulo Cunha, entre outros, foram
beneficiados por um princípio jurídico cuja definição – “garantismo” – não
consta do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Mas tem sido tão
usado em discursos no mais alto tribunal que pode até ter entrado no pequeno
universo vocabular da grande massa da população. No “juridiquês”, o termo
pomposo significa direito à defesa total. No popular, empurrão com a barriga ou
impunidade.
A reportagem de Valmir Hupsel
Filho e Fausto Macedo na edição de domingo (22 de setembro) deste jornal não
deixa dúvida quanto a isso. Pelas contas dos repórteres, “chance de novo
julgamento no STF pode adiar sentença de mais 306 ações penais”. Ou seja, a
oportunidade dada por seis em 11 ministros supremos aos petralhas-em-chefe, num
processo que dura mais de sete anos para julgar delitos de que são acusados há
mais de oito, esticará a delonga notória de que gozam réus em 306 ações penais
e 533 inquéritos criminais, alguns dos quais se tornarão ações desde que as
denúncias sejam aceitas pela Corte.
Entre estes há ex-inimigos do PT
convertidos à grei dos comensais do poder socialista. De acordo com o
levantamento dos dois repórteres, o deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), que
de acusado de “filhote da ditadura” passou a aliado fiel na campanha vitoriosa
de Fernando Haddad à prefeitura paulistana, responde a duas ações por crimes
contra o sistema financeiro nacional. Numa delas, a 461, de 2007, também é
acusado por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e ocultação de bens.
Caso similar é o de Fernando
Collor de Mello, a quem a bancada petista negou até o direito de renunciar para
lhe impor a humilhação do impeachment, interrompendo mandato que ganhou nas
urnas contra o principal líder dela, Luiz Inácio Lula da Silva. De volta à
política como senador de Alagoas pelo PTB, depois de absolvido por inépcia da denúncia
que o defenestrou do cargo máximo do Poder Executivo, pertence à base de apoio,
na qual tem prestado relevantes serviços ao governo do PT, PMDB e outros
aliados. Ele é réu em duas ações desde 2007: numa é acusado por cinco crimes,
entre os quais corrupção passiva e ativa, e em outra, por delitos contra a
ordem tributária.
Outro beneficiário da decisão da
maioria do plenário do STF é o maior partido da oposição ao governo a que Maluf
e Collor dão apoio parlamentar – o Partido da Social Democracia Brasileira
(PSDB). Desde 2009 o deputado federal Eduardo Azeredo (MG) responde à Ação
Penal 536 pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e ocultação de bens e
valores. O caso é conhecido como “mensalão mineiro” e inspira o mantra com que
os petistas cobram tratamento igualitário da Justiça.
Pois é exatamente de tratamento
desigual que se trata. Dirceu, Genoino, João Paulo, Maluf, Collor e Azeredo,
entre tantos outros, gozam de dois privilégios negados aos lambões de caçarola
das periferias metropolitanas e aos mutuários do Bolsa Família nos sertões. O
primeiro é o acesso à última instância do Judiciário, reservada para quem possa
pagar – ou quem tenha amigos dispostos a fazê-lo – os advogados mais caros.
Outro, ainda mais incomum, é o da instância única. Mandatários do governo e da
oposição são poupados dos contratempos dos julgamentos em baixas instâncias da
Justiça pelo chamado “foro privilegiado” e respondem direto à Corte máxima do
Judiciário.
Não foi, então, por coincidência
que a sexta e decisiva adesão ao recebimento dos embargos – e é bom que se diga
que há fundamento jurídico para qualquer decisão que ele tomasse – tenha sido
feita pelo decano Celso de Mello, autor do mais candente voto contra a compra
de apoio político no julgamento propriamente dito. O infecto sistema prisional
brasileiro, de que reclama o ministro petista da Justiça, José Eduardo Martins
Cardozo, o causídico casuísta, é um inferno onde só entram os velhos três pés
de sempre: pobres, pretos e prostitutas. Clientes de clubes, alfaiates e
restaurantes frequentados por maiorais do Poder republicano que julga são
poupados de dissabores como o cumprimento de pena em insalubre prisão fechada.
Sem ser injusto com o decano –
cinco pares votaram com ele –, mas apenas para aproveitar a oportunosa ensancha
da citação com que abriu seu voto de desempate (e não de Minerva, pois a deusa
romana, coitada, nada tem que ver com isso), o patrono dos majoritários na
decisão foi trazido a lume por ele. Poderia ter sido o udenista (condição
política execrada pelos réus beneficiários) Adaucto Lúcio Cardoso, que preferiu
abdicar da toga a submeter-se à arbitrariedade da ditadura militar que chegou a
apoiar. Mas foi José Linhares, o presidente do Supremo que passou à História
por ter sido alçado à chefia do Executivo pelos militares nos 93 dias entre a
queda do Estado Novo e a posse do primeiro presidente que governou sob a
Constituição de 1946. E que ganhou a jocosa alcunha de Zé Milhares, dada pelo
populacho que não tem acesso ao Supremo por causa da profícua nomeação de
parentes, pela qual sua curta e medíocre gestão se tornou notório.
Parece lógico ter-se o voto
decisivo pela aceitação dos embargos inspirado no juiz que simboliza o nepotismo
nesta República em que nomear parentes para o serviço público é uma das piores
pragas. Não tem esse vício DNA idêntico ao da impunidade de poucos no império
da lei para todos?
Fonte: Postado em Feira livre, de
Augusto Nunes, 25/09/2013, www.veja.com.br.
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