“O endurecimento da
legislação penal serve, sem dúvida, à diminuição da impunidade, para o que
devem concorrer também as leis as mais objetivas, com aplicação severa.
Mas ninguém inventou ainda um instrumento útil que
possa substituir a consciência individual”...
Mas ninguém inventou ainda um instrumento útil que
possa substituir a consciência individual”...
"Só é criminoso quem quer; trata-se de uma
escolha." Fiz essa afirmação no meu blog, em VEJA on-line, para escândalo de muitos.
Os esquerdistas ficaram furiosos. Como sempre, falam antes e pensam depois. A
esquerda, pouco importa o matiz, vive ainda no marxismo do século XIX. É
incapaz de entender o homem como um ser dotado de vontade, apto a fazer opções,
equipado para distinguir o bem do mal. Seu aparato analítico é fruto do
naturalismo do século retrasado, quando o pensamento foi dominado pelo
determinismo científico.
Imaginou-se, então, que tudo o que fosse humano
estava subordinado a um conjunto de variáveis alheias às vontades. Até a
economia, se bem se lembram, se inseria numa sequência mecânica, etapista,
decidida no mundo das ideias. Ah, quem diria que Karl Marx (1818-1883), um
materialista, era, de fato, um discípulo do pior platonismo! Quem se debruçou
sobre sua obra sabe disso: só resistia ao socialismo, "fantasma"
(termo apropriado) que rondava a Europa, quem estava a contrapelo da marcha da
civilização. Por isso, os que combatiam o modelo não eram apenas conservadores
de uma ordem moribunda (o capitalismo), mas reacionários. E não adiantava
espernear: como se diz em má poesia, ninguém conseguiria impedir a chegada da
primavera; no máximo, retardá-la. O socialismo estava inscrito em nossa
caminhada evolutiva. O "novo homem" era uma construção coletiva e um
destino.
A economia, a literatura, a psicologia, a
sociologia, a antropologia, todo conhecimento, enfim, à medida que cedia à
crítica da razão idealista e aderia a uma suposta razão iluminista, buscava
substituir o exame de consciência, estimulado pela fé cristã, por um conjunto
de causalidades exteriores: o homem já não precisava mais se confessar à sua
consciência ou a seu sacerdote: bastava que se justificasse no tribunal da
história. Um contemporâneo de Marx, o escritor russo Fiodor Dostoievski
(1821-1881), estava no limite dessas duas eras. Situa o homem na fronteira
entre a racionalização que justifica o crime e a consciência que produz a
culpa. Se não leram ainda, leiam um dia o romance Crime e Castigo. Juntamente
com o personagem Raskolnikov, cometam um homicídio (de fato, dois) por razões
até muito "justas". E percorram o calvário que conduz ao
arrependimento e, infelizmente no caso do romance, à redenção. Escrevo esse
"infelizmente" porque o fim empobrece a obra, embora engrandeça a
piedade que Dostoievski sentia de todos nós.
O que interessa em Raskolnikov? O sofrimento
posterior ao crime não deriva da pressão social ou das dificuldades que
encontra, na sociedade, por ser um assassino. O que lhe corrói a alma é sua
consciência e, eu ousaria dizer, uma espécie de ancestralidade humanista que o
confronta com o horror, tema também de outro romance do escritor russo, Os
Irmãos Karamazov. Nenhuma força é tão poderosa para conter a mão
assassina quanto uma interdição que está além da ordem prática do mundo, de seu
utilitarismo, das exigências pragmáticas. A isso chamamos "moral
individual", que pode ou não ser influente, que pode ou não estar ligada a
uma tradição cultural.
Atribui-se, aliás, a Dostoievski a frase: "Se
Deus não existe, tudo é permitido". Mais ou menos. É bom contextualizar.
Quem escreveu isso foi Sartre (1905-1980), em O Existencialismo É um
Humanismo. No autor russo, há coisa parecida. Aliocha Karamazov, o
santinho de Os Irmãos Karamazov, diz em tom de censura a Ivan,
o intelectual ateu e verdadeiro cérebro do parricídio praticado por Smerdiakov
(o quarto irmão é Dimitri): "Mas, se Deus não existe, então não há crime e
não há pecado; tudo é permitido". A afirmação era feita em tom de censura.
No Capítulo 9 do Livro 11, Ivan ouve a mesma afirmação, aí feita pelo diabo,
que vem a ser a razão cínica que dilui qualquer postulado moral.
Por que Dostoievski está, a meu juízo, alguns
degraus acima do que se produziu no século XIX – talvez, vá lá, nem tanto como
literatura, mas como indagação moral? Porque não se limitou a ser o cronista de
uma crise de valores ou o apologista de um novo saber, como era a moda. Sua
literatura só existe porque a moral religiosa sofria o assédio e o cerco da
razão avassaladora, com seus instrumentos de medição científica, diante dos quais
todos saber, considerado então convencional, era relativo e, para muitos,
descartável. Raskolnikov e Ivan Karamazov, nesse sentido, são homens
absolutamente modernos.
Quem me acompanhou até aqui deve imaginar qual é o
fato público que está na origem deste texto. Sim, é o assassinato brutal do
menino João Hélio, no Rio de Janeiro. Àquele episódio, seguiu-se a retórica
farisaica que tenta emprestar metáforas novas àquelas teses do século
retrasado: existiria uma ciência fora da consciência individual, privada, que
explicaria o crime; estaríamos diante de fatores, todos eles sociais, que
expropriariam dos assassinos a decisão de matar. O curioso é que a mesma
esquerda que pretende fazer dos facinorosos menores morais, incapazes de se
decidir entre o bem e o mal, não se atreve a pedir que lhes seja cassado, por
exemplo, o direito de voto. Quem não está equipado para escolher entre a vida e
a morte deve exercer que outro direito de escolha?
Voltemos, então, um pouco no tempo: "Quando as
leis forem fixas e literais, quando só confiarem ao magistrado à missão de
examinar os atos dos cidadãos, para decidir se tais atos são conformes ou
contrários à lei escrita; quando, enfim, a regra do justo e do injusto, que
deve dirigir em todos os seus atos o ignorante e o homem instruído, não for um
motivo de controvérsia, mas simples questão de fato, então não mais se verão os
cidadãos submetidos ao jugo de uma multidão de pequenos tiranos, tanto mais
insuportáveis quanto menor é a distância entre o opressor e o oprimido".
Trata-se de um trecho do Capítulo 4 de Dos
Delitos e das Penas, do italiano Cesare Beccaria (1738-1794). É justamente
o trecho da obra em que ele ataca o arbítrio dos juízes ao interpretar o
"espírito da lei", o que abre espaço para toda sorte de
subjetivismos. Notável pensador. Beccaria, que combateu a prática da tortura e
do tratamento cruel aos presos, não obstante, queria uma lei a mais objetiva,
voltada à proteção dos que não eram criminosos. E explicava por quê: "Com
leis penais executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os
inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento
poderá desviá-lo do crime. Gozará com segurança de sua liberdade e dos seus
bens; e isso é justo, porque é esse o fim da reunião dos homens em
sociedade".
As leis são manifestações do pacto que todos
firmamos em sociedade. Mas jamais terão o poder de incutir uma moral, por mais
tolerantes que sejam, a quem considera que tudo lhes é permitido. Aquela crise
que Dostoievski identificou no fim do século XIX, se quiserem saber, ainda é a
nossa. O endurecimento da legislação penal serve, sem dúvida, à diminuição da
impunidade, para o que devem concorrer também as leis as mais objetivas, com
aplicação severa. Mas ninguém inventou ainda um instrumento útil que possa
substituir a consciência individual. Eu, a exemplo de Aliocha, também considero
que, se Deus não existe, então não há crime e não há pecado. E até concedo que
possa haver uma outra religião, não revelada, mas construída, a que se possa
chamar, talvez, de humanismo.
Pouco importa se é Deus o ente a nos indagar ou um
outro valor igualmente constituído de respeito ao próximo e de tolerância. A
verdade é que a lei será sempre impotente para conter a mão criminosa se houver
algo em nossa consciência a dizer que tudo nos é permitido. Olhem à volta: o
que é que lhes diz o mundo contemporâneo. Artigo de Reinaldo Azevedo, e postado
em 15/04/2013, veja.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário