O assassinato de Marielle Franco
urdiu-se nas entranhas do desgoverno em que se atolou o estado do Rio de
Janeiro. Foi planejado e executado por aqueles que se acham inatingíveis pelas
leis
Época,
22/03/2018,
www.época.com.br
Dos Editores
A definição de crime político
justificou muitas ações contrárias a regimes totalitários. Por muito tempo,
tornou-se bandeira de movimentos democráticos que reagiram com força a opressões brutais. A filósofa Hannah Arendt
analisou com rigor motivações que podem legitimar atos fora da lei. A definição
de crime de origem política, entretanto, é controversa e inconclusiva.
No Brasil pós-redemocratização,
muitos dos valores e slogans empunhados por atores políticos tornaram-se
anacrônicos. Foram abandonados porque tinham o passado impregnado em si. A
justificativa de crime político para o que se chamava de “expropriações” e
“justiçamentos”, por exemplo, perdeu-se no tempo. A definição moderna de crime
político está associada mundialmente à questão do combate ao terrorismo e à
proteção dos direitos humanos.
Tal apanhado jurídico se faz
necessário em razão do brutal assassinato da vereadora carioca Marielle Franco
(PSOL). Muitas foram as vozes que se levantaram para apontá-lo como “crime
político”, numa acepção nova. Seria político porque vitimizou uma parlamentar
com uma agenda de defesa de minorias e excluídos. Seria político porque se
suspeita que agentes públicos, em especial policiais militares denunciados por
ela, possam estar entre os executores e mandantes do crime.
Marielle Franco era uma liderança
política emergente e talentosa. Vida exemplar ao ancorar na formação escolar e
política seu crescimento pessoal e público. Defensora de bandeiras
comportamentais progressistas, alinhada aos segmentos mais sacrificados pela
desigualdade e pela violência. Era um quadro cuja vida longa enobreceria o
sistema político brasileiro.
É preciso deixar claro, no entanto,
que a morte de Marielle Franco não foi um crime político, uma forma suave e
desvirtuada de desqualificá-la. Foi um crime comum, e isso o faz mais grave,
não menos. Foi comum porque é usual numa sociedade que se acostumou à
violência. Foi comum porque repete a barbárie invisível tornada costumeira na
periferia. Foi comum porque os suspeitos são os de sempre em muitos dos
assassinatos ocorridos nos anos recentes. Foi comum por trazer em si a certeza
da impunidade que seus perpetradores acumularam ao longo do tempo.
O assassinato urdiu-se nas entranhas
do desgoverno em que se atolou o estado do Rio de Janeiro. Foi planejado e
executado por aqueles que se acham inatingíveis pelas leis — não por estarem
acima dela, mas, sim, por viverem em seus subterrâneos. Dar ares de crime
político a ação que apenas reflete a barbárie e o desregramento do sistema
policial repressivo brasileiro seria elevá-la a uma discussão jurídica
improcedente.
Espera-se agora a pronta resposta do
estado a um crime nascido da inapetência de seus principais gestores. A polícia
do Rio antecipa à imprensa cada passo da investigação. Pretende assim combater
as críticas de inação. No entanto, movimentações ruidosas são contraproducentes
para investigações técnicas e eficientes. A solução do assassinato de Marielle
Franco — com a prisão e condenação dos culpados — dimensionará a capacidade do
estado em proteger seus líderes e a própria democracia. O fracasso indicará
instituições débeis, à beira do colapso, alvo fácil de um batalhão de assassinos
que perpetrarão impunes novos crimes. Crimes cada vez mais comuns.