Na
vida, a gente vê coisas que se repetem e que se sucede com as estações do ano.
As tragédias ditas naturais tendem a ser sazonais. Temos as fatalidades de
verão e de inverno: morros que desabam com as chuvas, córregos poluídos que
transbordam, casas soterradas, vidas perdidas, insuportavelmente ceifadas cedo
demais. Depois do susto e do choque, autoridades esquecem as promessas e a vida
segue em frente até a próxima catástrofe. Tem sido assim na região serrana do
Rio de Janeiro ou nos alagamentos de São Paulo.
A palavra fatalidade aparece
rapidamente na boca de quem deveria rejeitá-la como um insulto ou um
desrespeito aos mortos.
Não há fatalidade quando todas as
providências não foram tomadas para tentar impedir o pior. Curiosamente sempre
tem alguém para condescendentemente relativizar:
– Não adianta buscar culpados.
– Como assim?
– Não vai trazer ninguém de volta.
– E a punição aos responsáveis?
– Não houve intenção. Foi uma
fatalidade.
Sim, adianta buscar os culpados. É uma
obrigação. Há culpados. Culpar hoje é uma maneira de prevenir o amanhã. Existem
crimes dolosos e crimes culposos. Não se pode absolver simplesmente por não ter
havido intenção. Os responsáveis são muitos: os proprietários relapsos, a banda
imprudente, a fiscalização deficiente. Se o recinto era para mil pessoas, como
tem sido divulgado, por que deixaram entrar 1.500 jovens? Se o alvará estava
vencido desde o final do ano, como foi possível abrir para uma megafesta? Se só
havia uma porta, sem saídas visíveis de emergência, como foi possível ter
recebido autorização para funcionar? Se havia espuma inflamável no teto, como
proteção acústica, quem permitiu o uso de um sinalizador, um emissor de
faíscas, um instrumento pirotécnico?
Todas essas perguntas já foram feitas e
continuarão a ser feitas por uma simples razão: continuamos na estupefação e na
perplexidade. Como diz a galera, ainda não caiu a ficha. Vamos continuar
fazendo as mesmas perguntas por impotência, desespero e ansiedade. Queremos uma
resposta convincente. Não aceitamos mais o clichê acintoso da fatalidade. Em
quantos lugares a gente vê construções de ricos ou pobres nas encostas de
morros? Em quantos lugares a gente vê cultivos em áreas de risco? Em quanto
lugares a gente vê estabelecimentos recreativos funcionando visivelmente sem as
condições necessárias de segurança? Por quê? Simplesmente porque empurramos com
a barriga, burlamos a lei, quando não a subornamos, e acreditamos que o raio
não cairá em cima de nós. Quem somos nós?
Aqueles por quem nos tornamos
responsáveis.
A noção de responsabilidade coletiva
parece, às vezes, neste Brasil ainda pré-moderno em muitas coisas, uma
aberração. O interesse imediato joga perigosamente com a calamidade futura. Por
toda parte a negligência ri da nossa cara: barcos transbordando de passageiros
em inocentes passeios praianos, muitos com coletes salva-vidas em número
insuficiente, motoqueiros sem capacete e com crianças na carona zumbindo pelas
ruas das cidades, crianças transportadas no banco da frente de carros
particulares e por aí vai. Precisamos enquadrar culpados.
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