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quinta-feira, 24 de setembro de 2015

De Tito Costa, ex-prefeito de São Bernardo do Campo, para Lula: ‘Você abandonou um projeto de Brasil para dedicar-se a um ambicioso e impatriótico projeto de poder’



Por Augusto Nunes, 21/09/2015, www.veja.com.br

Prefeito de São Bernardo do Campo na época em que Lula debutava como líder metalúrgico, o advogado Tito Costa publicou na Folha uma carta endereçada ao amigo que foi presidente de janeiro de 2003 a dezembro de 2010. Aos 93 anos, ele evoca os primeiros capítulos da história que acompanhou como testemunha privilegiada para externar a decepção provocada pelo desfecho desastroso das sucessivas metamorfoses: o personagem que parecia destinado a moralizar a prática política jaz na cova rasa dos estadistas de galinheiro. Confira. (AN)

Meu caro Lula permito-me escrever-lhe publicamente, diante da impossibilidade de nos falarmos em pessoa, com a franqueza dos tempos de nossos seguidos contatos – você na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos e eu prefeito de São Bernardo do Campo.
Não vou falar das greves que ocorreram de 1979 a 1981, que projetaram seu nome no Brasil e no exterior. Não quero lembrar os dias angustiantes da intervenção no sindicato pelo ministro do Trabalho, em março de 1979, e da violência que se seguiu com prisões, processos e a sua detenção pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social).
Todos esses fatos sempre foram acompanhados por mim juntamente ao senador Teotônio Vilela, a Ulysses Guimarães e a numerosos políticos do então MDB.
Na véspera da intervenção no sindicato, você ligou no meu gabinete me pedindo ajuda para retirar estoques de alimentos ali guardados. Enviei caminhões da prefeitura para retirá-los e o material foi depositado na igreja matriz da cidade.
Não falo das reuniões, madrugadas adentro, em meu apartamento em São Bernardo, com figuras expressivas do mundo político e também de outras esferas, como dom Cláudio Hummes, nosso amigo, então bispo de Santo André, hoje pessoa de confiança do papa Francisco, em Roma. Éramos todos preocupados com a sua sorte, a do sindicato e também a das nossas instituições em pleno regime militar.
Prefiro não falar dos dias em que o acolhi em minha chácara na pequena cidade de Torrinha, no interior de São Paulo, acobertando-o de perseguições do poder militar da época: você, Marisa, os filhos pequenos, vivendo horas de aflição e preocupantes expectativas.
Nem quero me lembrar das assembléias do sindicato, depois da intervenção no estádio de Vila Euclides, cedido pela Prefeitura de São Bernardo, fornecendo os aparatos possíveis de segurança.
Era os primórdios de uma carreira vitoriosa como líder operário que chegou à Presidência da República por um partido político que prometia seriedade no manejo da coisa pública e logo decepcionou a todos pelos desvios de comportamento e de abusos na condução da máquina administrativa do Estado.
E aqui começa o seu desvio de uma carreira política que poderia tê-lo consagrado como autêntico líder para um país ainda em busca de desenvolvimento. Você deixou escapar-lhe das mãos a oportunidade histórica de liderar a implantação de urgentes mudanças estruturais na máquina do poder público.
Como bem lembrou Frei Betto, seu amigo e colaborador, você, liderando o Partido dos Trabalhadores, abandonou um projeto de Brasil para dedicar-se tão somente a um ambicioso e impatriótico projeto de poder, acomodando-se aos vícios da política tradicional.
Assim, seu partido, em seus alargados anos de governo, com indissimulada arrogância, optou por embrenhar-se na busca incessante, impatriótica e irresponsável do aparelhamento do Estado em favor de sua causa que não é a do país.
Enganou-se você com a pretensão equivocada de implantar uma era de bonança artificial pela via perversa do paternalismo e do consumismo em favor das classes menos favorecidas, levando-as ao engano do qual agora se apercebem com natural desapontamento.
Por isso, meu caro Lula, segundo penso, você perdeu a oportunidade histórica de se tornar o verdadeiro líder de um país que ainda busca um caminho de prosperidade, igualdade e solidariedade para todos. Alguma coisa que poderia beirar a utopia, mas perfeitamente factível pelo poder político que você e seu partido detiveram por largo tempo.
Agora, perdido o ensejo de sua consagração como grande liderança de nossa história republicana recente, o operário-estadista, resta à população brasileira o desconsolo de esperar por uma era de dificuldades e incertezas.
Seu amigo, Tito Costa.

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