O advogado é o juiz inicial da causa. Não pode agir como comparsa de
cliente bandido
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MOMENTOS DE
2016
Publicado em
19 de janeiro
Os mentores do manifesto dos advogados a favor da
bandidagem do Petrolão deveriam ter promovido a primeiro signatário, in
memoriam, o mestre Márcio Thomaz Bastos, morto em novembro de 2014. Todos
sempre foram discípulos do jurista que transformou o gabinete de ministro da
Justiça em fábrica de truques concebidos para eternizar a impunidade dos
quadrilheiros do Mensalão. Todos são devotos do criminalista que, desde que o
freguês topasse pagar os honorários cobrados em dólares por hora trabalhada,
enxergava filhos extremosos até em parricidas juramentados.
Coerentemente, o manifesto dos bacharéis, na forma
e no conteúdo, é uma seqüência de exumações da fórmula aperfeiçoada por Márcio
para defender o indefensável. À falta de munição jurídica, seu tresoitão
retórico alvejava a verdade com tapeações, falácias e chicanas. Em artigos,
entrevistas ou discurseiras, ele primeiro descrevia o calvário imposto a
outro cidadão sem culpas por policiais perversos, promotores desalmados e
juízes sem coração. Depois, fazia o diabo para absolver culpados e condenar à
execração perpétua os defensores da lei. Foi o que fizeram os parteiros do
manifesto abjeto.
Os pupilos hoje liderados por um codinome famoso ─
Kakay ─ certamente guardam cópias do texto do mestre publicado na Folha
em junho de 2012. “Serei eu o juiz do meu cliente?”, perguntou Márcio no título
do artigo que clamava pela imediata libertação do cliente Carlinhos Cachoeira ("
Carlos Augusto Ramos, chamado de Cachoeira”, corrigiu o autor). “Não o
conhecia, embora tivesse ouvido falar dele”, explicou. Ouviu o suficiente para
cobrar R$15 milhões pela missão de garantir que o superbandido da vez
envelhecesse em liberdade.
A pergunta do título foi reiterada no quinto
parágrafo: “Serei eu o juiz do meu cliente?” Resposta: “Por princípio, creio
que não. Sou advogado constituído num processo criminal. Como tantos, procuro
defender com lealdade e vigor quem confiou a mim tal responsabilidade”. Conversa
fiada ensinara já em outubro de 1944, o grande Heráclito Fontoura Sobral Pinto;
num trecho da carta endereçada ao amigo Augusto Frederico Schimidt e
reproduzida pela coluna. Confira:
“O primeiro e mais fundamental dever
do advogado é ser o juiz inicial da causa que lhe levam para patrocinar.
Incumbe-lhe, antes de tudo, examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela
é realmente defensável em face dos preceitos da justiça. Só depois de que eu me
convenço de que a justiça está com a parte que me procura é que me ponho à sua
disposição”.
“Não há exagero na velha máxima: o acusado é sempre
um oprimido”, derramou-se Márcio poucas linhas depois. “Ao zelar pela
independência da defesa técnica, cumprimos não só um dever de consciência, mas
princípios que garantem a dignidade do ser humano no processo. Assim nos
mantemos fiéis aos valores que, ao longo da vida, professamos defender. Cremos
ser a melhor maneira de servir ao povo brasileiro e à Constituição livre e
democrática de nosso país”.
Com quase 70 anos de antecedência, sem imaginar
como seria o Brasil da segunda década do século seguinte, Sobral Pinto
desmoralizou esse blá-blá-blá de porta de delegacia com um parágrafo que coloca
em frangalhos também a choradeira dos marxistas voluntariamente reduzidos a
carpideiras de corruptos confessos. A continuação da aula ministrada por Sobral
pulveriza a vigarice:
“A advocacia não se destina à defesa
de quaisquer interesses. Não basta a amizade ou honorários de vulto para que um
advogado se sinta justificado diante de sua consciência pelo patrocínio de uma
causa. O advogado não é, assim, um técnico às ordens desta ou daquela pessoa
que se dispõe a comparecer à Justiça. O advogado é, necessariamente, uma
consciência escrupulosa ao serviço tão só dos interesses da justiça,
incumbindo-lhe, por isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que não
discutam aqueles casos nos quais não lhes assiste nenhuma razão”.
“A pródiga história brasileira dos abusos de
poder jamais conheceu publicidade tão opressiva”, fantasiou o artigo na Folha.
“Aconteceu o mais amplo e sistemático vazamento de escutas confidenciais.
(…) Estranhamente, a violação de sigilo não causou indignação.
(…) Trocou-se o valor constitucional da presunção de inocência pela
intolerância do apedrejamento moral. Dia após dia, apareceram diálogos
descontextualizados, compondo um quadro que lançou Carlos Augusto na fogueira
do ódio generalizado”.
Muitos momentos do manifesto que parecem
psicografados por Márcio. Onde o mestre viu fogueiras do ódio, os discípulos
enxergaram uma Inquisição à brasileira. Como o autor do artigo da Folha,
os redatores do documento se proclamam grávidos de indignação com “o
menoscabo à presunção de inocência (…), o vazamento seletivo de documentos e
informações sigilosas, a sonegação de documentos às defesas dos acusados, a
execração pública dos réus e a violação às prerrogativas da advocacia.
Sempre que Márcio Thomaz Bastos
triunfava num tribunal, a Justiça sofria mais um desmaio, a verdade morria
outra vez, gente com culpa no cartório escapava da cadeia, crescia a multidão
de brasileiros convencidos de que aqui o crime compensa e batia a sensação de
que lutar pela aplicação rigorosa das normas legais é a luta mais vã. A Lava
Jato vem mostrando ao país, quase diariamente, que ninguém mais deve
imaginar-se acima da lei.
Neste começo de 2016, todo gatuno corre o risco de
descobrir como é a vida na cadeia. O juiz Sérgio Moro, a força-tarefa de
procuradores e os policiais federais engajados na operação desafiaram a arrogância
dos poderosos inimputáveis ─ e venceram. O balanço da Lava Jato divulgado em
dezembro atesta que, embora a ofensiva contra os corruptos da casa-grande
esteja longe do fim, o Brasil mudou. E mudou para sempre.
Todo réu,
insista-se, tem direito a um advogado de defesa. Mas doutor nenhum tem o
direito de mentir para livrar o acusado que contratou seus serviços de ser
punido por crimes que comprovadamente cometeu. O advogado é o juiz inicial da
causa. Não pode agir como comparsa de cliente bandido.
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