O Reino Unido assistiu a um confronto de abstrações: delírio coletivo
contra projeções apocalípticas. Que tal a realidade, temperada pela lógica?
Por Reinaldo
Azevedo, 25/06/2016,
www.veja.com.br
Não gosto de lidar com categorias
abstratas, como “ilusão” ou “delírio coletivo”, mas, francamente, não me ocorre
nada melhor — e tentei tomar emprestado de outros algo mais preciso e nada
encontrei — para definir a vitória do que ficou conhecido como “Brexit”, a
saída do Reino Unido da União Européia. E não pensem que a viagem delirante se
restringe aos que eram (atentem para o tempo do verbo) favoráveis à saída.
Também os contrários preferiram acenar com o apocalipse em vez de esgrimir
argumentos.
Dediquei um tempo à leitura dos
prosélitos do “Brexit”. Alguma razão haveria de ter para que tentassem
abandonar a União Européia, mesmo sendo o Reino Unido aquele aglomerado de
ilhas de que o continente europeu, apelo à graça, fazia questão de se manter
próximo… Afinal, o Reino Unido só se mantinha no bloco porque sempre fez
questão de deixar claro que a ele não pertencia de alma. Exceção feita à
independência espiritual seja lá o que isso signifique, não encontrei um só
argumento que justifique a separação.
Empresto aqui à palavra “argumento” o
sentido instrumental, utilitário, prático. O que os cidadãos do Reino Unido
efetivamente ganharão com a mudança? A resposta é uma só: nada. Todas as
projeções e análises objetivas apontam o contrário. A reação negativa dos
mercados, em cadeia, deixa isso muito claro. E, com algum bom senso, havemos de
achar que estes não primam por jogar dinheiro no lixo.
Acho sedutora a ideia de que “não
queremos burocratas de Bruxelas mandando em nós”, mas cabe a pergunta: isso
existe de fato, como realidade tangível, a pôr freios na liberdade virtuosa, ou
é só um espantalho retórico criado por teorias conspiratórias que prenunciam um
governo mundial, tendente a esmagar as liberdades individuais? Escrevo de outro
modo: se a saída do Reino Unido da União Européia não vai trazer nenhum
benefício econômico aos cidadãos, vai, ao menos, torná-los efetivamente mais
livres? De que ou de quê? Também não há resposta.
Lá no primeiro parágrafo, refiro-me aos
que “eram” favoráveis à mudança. Pois é… Se a votação fosse refeita 24 horas
depois de conhecidos os números, talvez o resultado fosse outro. Contam-me
amigos que moram na Inglaterra que muitos dos entusiastas da saída não
acreditavam no resultado positivo e agora se mostram mais assustados do que os
que se opunham à mudança. A primeira conseqüência está dada: o bom governo
(para os seus cidadãos; não gosto de sua política externa) de David Cameron já
está com data de validade marcada.
Se a vitória do “sim” veio ancorada
numa ilusão ou num delírio, a turma do “não”, antes e depois da votação,
preferiu deixar de lado o pragmatismo para investir numa espécie de guerra
ideológica. A se dar crédito a certa leitura, parece que a Europa está prestes
a mergulhar numa era de obscurantismo, asfixiada por xenofobia e fascismo, como
se vivêssemos o prenúncio de uma Terceira Guerra Européia — as outras duas
Guerras Européias foram chamadas de Mundiais… E não me parece que seja o caso.
Pode-se entender a confusão. A direita
moderada do Reino Unido, de corte mais propriamente liberal, se alinhou com o
“não”. A direita mais radical — incluindo os extremistas — preferiu o “sim”.
Mas daí a se enxergar, como fazem alguns apocalípticos, a ressurgência dos
vários fascismos europeus vai uma diferença brutal. Quanto menos, há um
problema de lógica elementar: os partidos de extrema direita têm experimentado
certa ascensão em plena Europa unida, não é mesmo? Logo, a união não é garantia
de que tais forças sejam eliminadas do espectro ideológico.
Não acredito num efeito dominó. Até
porque as primeiras conseqüências do resultado não estão sendo exatamente
positivas para o Reino Unido. Se votação tivesse “recall” imediato, o quadro
poderia ser outro já hoje. Isso certamente terá um peso na opinião dos cidadãos
dos demais países do bloco.
Mais corre risco o próprio Reino Unido
do que a União Européia. Afinal, com base na vontade dos seus cidadãos, a
Escócia pode reivindicar, desta feita, não o seu direito de se destacar da
pequena união, mas o de continuar na grande… Pergunta: nesse caso, os escoceses
estariam sendo separatistas ou integracionistas?
Tendo a rejeitar por princípio as
visões apocalípticas. Poucas coisas são tão efetivas para tornar moderado um
radical como a realidade. Será que o futuro governo do Reino Unido será liderado
por um fanático do “sim”? Nesse caso, fanático ele continuará?
Nos próximos dois anos, o governo vai
ter de se ocupar de um problema que não tinha: efetivar a desunião,
distribuindo entre os cidadãos as perdas decorrentes do entusiasmo da vitória,
que recairão principalmente sobre os mais jovens e mais produtivos.
A única maneira de a separação oficial
ser indolor será torná-la oficiosa, meramente retórica, de tal sorte que o
Reino Unido busque garantir, num acordo bilateral com a União Européia, o que
tinha antes como membro do bloco. Nesse caso, a vitória do “Brexit” será sua
maior derrota.
Vocês estão preparados para a
possibilidade de a vitória do “sim” no Reino Unido fortalecer a União Européia?
Vamos ver. O mundo não é plano.
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