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domingo, 28 de julho de 2013

Haja cartola para tanto coelho.

Qual será aproxima solução mágica proposta pelo governo para resolver caos da saúde?
No calor das manifestações populares, o governo federal anunciou medidas simbólicas e pouco efetivas para resolver o caos da saúde. Haja cartola para tanto coelho. Do chapéu de mágico saíram os 6 mil médicos cubanos que seriam enviados aos municípios onde os profissionais brasileiros não querem trabalhar. Poucas semanas depois, os cubanos voltaram para o fundo da cartola. O Ministério da Saúde não falou mais no assunto, mas a imprensa descobriu a razão da mudança de rumo.

A exportação de médicos é uma das principais fontes de renda para Havana. Eles são fornecidos em bloco, como numa empresa terceirizada. O governo contratante paga a Cuba pelos serviços e os médicos recebem só uma parte. Os profissionais trabalham num sistema cruel, em total desacordo com as leis trabalhistas brasileiras. Assunto encerrado. Furo n’água.

Num outro passe de mágica, executado por medida provisória, vieram à ampliação do curso de medicina de seis para oito anos e o serviço compulsório no SUS. Nesta semana, a longevidade desses dois coelhos também se mostrou ameaçada. Eles podem voltar para o fundo falso a qualquer momento.
No caminho, podem ser atropelados pela nova solução mágica que agora parece simpática ao governo: tornar compulsória a residência médica e, da mesma forma, obrigar os médicos há trabalhar dois anos no SUS.

Vamos dissecar mais esse coelho:
Hoje o curso de medicina tem seis anos de duração. Concluído esse período, o estudante recebe o diploma. Pode começar a trabalhar, mas no receituário só pode colocar a palavra “médico”. Para se tornar especialista em alguma coisa precisa fazer residência médica.

Dos quase 400 mil médicos do país, cerca de 30% não fazem residência porque não conseguem vagas nesses cursos ou simplesmente porque não têm interesse em concluí-lo. A especialização é um importante complemento da formação médica, mas ela só traz benefício ao profissional, ao paciente e à saúde pública se o curso for bom. É o óbvio ululante.
Agora o governo federal diz ter planos de criar mais 12 mil vagas de residência médica até 2017. Parece uma boa ideia? Parece, mas não é. Essa é a opinião do médico Antonio Carlos Lopes, diretor da Escola Paulista de Medicina. Ele coordenou a Comissão Nacional de Residência Médica, no Ministério da Educação, durante quatro anos do governo Lula.
“Para funcionar, a residência médica precisa ter estrutura necessária, preceptor e financiamento”, diz ele. “Cansei de fechar programas em instituições públicas e privadas. Eles não tinham a mínima condição de funcionamento.”
As razões: “Os residentes apanhavam dos pacientes, vários hospitais tinham goteira em cima da cama dos doentes, os médicos usavam saquinho plástico em vez de luvas”. No período em que esteve na coordenação, Lopes afirma que 200 vagas de residência foram criadas em regiões menos favorecidas (interior do Ceará, Belém, Rio Grande do Norte e outros estados). Em seis meses, 80% dos residentes haviam desistido. Não havia ambulatório, uma rede mínima de atenção básica e, em alguns casos, sequer receituário.
“Colocar médico para trabalhar em lugares remotos nessas condições é jogar dinheiro público no ralo”, diz Lopes. “Numa casa de sapé e mais nada, a contribuição do médico é menor que a do padre”.
A proposta também apresenta fragilidades jurídicas. “Obrigar um médico a fazer residência é inconstitucional. Primeiro o governo fala em ampliar o curso de medicina para oito anos. Quinze dias depois, vê com bons olhos a ideia de manter os seis anos e tornar a residência obrigatória. Isso demonstra a total falta de rumo e de conhecimento. É como pegar um paciente com ruptura do coração e não saber se é preciso operá-lo ou não”, diz Lopes.
A população de grande parte dos municípios brasileiros e das periferias sofre com a falta de médicos. É um problema grave e real. Nesses lugares, não falta só médicos. Falta tudo. É a falta de tudo que explica porque as cidades não conseguem atrair profissionais. Imputar aos médicos a culpa pelo descalabro da saúde pública brasileira é uma falácia pegajosa e perigosa.
Perpetuar a ideia de que as pessoas morrem nos rincões distantes ou nas periferias porque os médicos não têm sensibilidade nem consciência social é desviar o foco das reais causas da tragédia brasileira.
Há médicos bons e ruins. Com caráter e sem caráter. Com preocupação social ou sem ela. Assim como há jornalistas, advogados e engenheiros de todos os tipos. Trabalhar no SUS durante um período de formação pode ser uma experiência pessoal e profissional enriquecedora. Muitos estudantes e médicos diplomados já trabalham em serviços públicos e ali aprendem o que é ser médico – no sentido mais nobre do termo.

É assustador, porém, o caráter autoritário das soluções propostas até agora. Ninguém pode ser obrigado a trabalhar para o governo se quiser concluir um curso superior. Nem os médicos, nem os jornalistas, nem os advogados, nem os engenheiros.
Mesmo que os profissionais de todas as categorias fossem tratados como infratores da lei e, como eles, cumprissem um período compulsório de prestação de serviços, o resultado objetivo desse empenho, em termos de mudanças estruturais, seria questionável. Sem recursos materiais mínimos, não há força de trabalho capaz de mudar a história de uma população.
Até quinta-feira (25), 3,3 mil municípios haviam se inscrito no Ministério da Saúde com o objetivo de receber médicos. Apenas 3,1 mil profissionais haviam concluído a inscrição no programa Mais Médicos. A previsão inicial do governo era atrair cerca de 10 mil profissionais.
Se o governo quer realmente fixar médicos onde eles são necessários deveria criar uma comissão para avaliar as condições de trabalho nos municípios interessados. Se o governo complementasse a estrutura mínima necessária para atender a população talvez mais médicos aceitassem o desafio. “Nessa comissão precisaria ter gente que faz medicina de fato. E não gente que enxerga a medicina pela janela do gabinete”, diz Lopes.
Trabalhar sem conseguir fazer diferença gera frustração. Mais nada. Para o paciente que busca atendimento e não encontra, o médico representa o Estado. Quem está na linha de frente é visto como ministro da saúde, como a própria presidente. Se o médico não resolve o caso, sobre ele recairá toda a raiva que a população gostaria de lançar sobre quem tem o poder de transformar o SUS.
Quem tem esse poder? Os brasileiros gostam de repetir que a saúde vai mal por culpa dos governantes, dos políticos e gestores corruptos, dos apadrinhados que ocupam cargos públicos sem ter competência técnica para isso etc. Tudo isso é verdade, mas só uma meia verdade.
A saúde pública não vai melhorar enquanto a sociedade continuar evitando as discussões duras e objetivas sobre financiamento do sistema. O SUS foi criado em 1988 com a melhor das intenções. Se funcionasse como o previsto na Constituição, seria um belíssimo instrumento de justiça social. Para ser justo e universal, para oferecer tudo (todo e qualquer tipo de tratamento) para toda a população (dos mais pobres aos mais ricos), o SUS precisa receber mais dinheiro. E, ainda assim, talvez não fosse possível oferecer todas as novas e caríssimas soluções criadas pela indústria farmacêutica. Nenhum país do mundo consegue fazer isso.
Os cerca de 8% do PIB aplicado em saúde (somando-se os recursos públicos e privados) não sustentam o sistema imaginado em 1988. Como resolver a equação? Vamos aumentar impostos? Vamos tirar dinheiro de outros ministérios? Vamos melhorar a gestão? O que é preciso fazer exatamente para melhorá-la? Vamos limitar o atendimento público a determinadas faixas de renda? Vamos limitar os gastos a um determinado pacote de programas, tratamentos e drogas -- e só a eles? Vamos acabar com a hipótese de qualquer cidadão entrar na justiça e exigir dos governos qualquer remédio caríssimo – independentemente do preço?
Desde 1988, nenhum governo (PT, PSDB, PMDB e todas as outras siglas que chegaram ao poder) assumiu o ônus político de dizer que, do jeito que sonhamos e com o financiamento e a gestão atuais – o SUS nunca será justo e universal.
É uma verdade dura e impopular, daquelas que governante não diz e população não gosta de ouvir. Enquanto for assim, vamos continuar nos iludindo com os coelhos que brotam da cartola e voltam para o fundo dela sem aliviar o sofrimento de ninguém. Por Cristiane Segatto, 26/07/2013, www.época.com.br.

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