Qual será aproxima solução mágica proposta pelo governo para resolver
caos da saúde?
No calor das manifestações
populares, o governo federal anunciou medidas simbólicas e pouco efetivas para
resolver o caos da saúde. Haja cartola para tanto coelho. Do chapéu de mágico
saíram os 6 mil médicos cubanos que seriam enviados aos municípios onde os
profissionais brasileiros não querem trabalhar. Poucas semanas depois, os
cubanos voltaram para o fundo da cartola. O Ministério da Saúde não falou mais
no assunto, mas a imprensa descobriu a razão da mudança de rumo.
A exportação de médicos é uma das principais fontes de renda para Havana. Eles são fornecidos em bloco, como numa empresa terceirizada. O governo contratante paga a Cuba pelos serviços e os médicos recebem só uma parte. Os profissionais trabalham num sistema cruel, em total desacordo com as leis trabalhistas brasileiras. Assunto encerrado. Furo n’água.
Num outro passe de mágica, executado por medida provisória, vieram à ampliação do curso de medicina de seis para oito anos e o serviço compulsório no SUS. Nesta semana, a longevidade desses dois coelhos também se mostrou ameaçada. Eles podem voltar para o fundo falso a qualquer momento.
A exportação de médicos é uma das principais fontes de renda para Havana. Eles são fornecidos em bloco, como numa empresa terceirizada. O governo contratante paga a Cuba pelos serviços e os médicos recebem só uma parte. Os profissionais trabalham num sistema cruel, em total desacordo com as leis trabalhistas brasileiras. Assunto encerrado. Furo n’água.
Num outro passe de mágica, executado por medida provisória, vieram à ampliação do curso de medicina de seis para oito anos e o serviço compulsório no SUS. Nesta semana, a longevidade desses dois coelhos também se mostrou ameaçada. Eles podem voltar para o fundo falso a qualquer momento.
No caminho, podem ser atropelados
pela nova solução mágica que agora parece simpática ao governo: tornar
compulsória a residência médica e, da mesma forma, obrigar os médicos há
trabalhar dois anos no SUS.
Vamos dissecar mais esse coelho:
Vamos dissecar mais esse coelho:
Hoje o curso de medicina tem seis
anos de duração. Concluído esse período, o estudante recebe o diploma. Pode
começar a trabalhar, mas no receituário só pode colocar a palavra “médico”.
Para se tornar especialista em alguma coisa precisa fazer residência médica.
Dos quase 400 mil médicos do país, cerca de 30% não fazem residência porque não conseguem vagas nesses cursos ou simplesmente porque não têm interesse em concluí-lo. A especialização é um importante complemento da formação médica, mas ela só traz benefício ao profissional, ao paciente e à saúde pública se o curso for bom. É o óbvio ululante.
Dos quase 400 mil médicos do país, cerca de 30% não fazem residência porque não conseguem vagas nesses cursos ou simplesmente porque não têm interesse em concluí-lo. A especialização é um importante complemento da formação médica, mas ela só traz benefício ao profissional, ao paciente e à saúde pública se o curso for bom. É o óbvio ululante.
Agora o governo federal diz ter
planos de criar mais 12 mil vagas de residência médica até 2017. Parece uma boa
ideia? Parece, mas não é. Essa é a opinião do médico Antonio Carlos Lopes,
diretor da Escola Paulista de Medicina. Ele coordenou a Comissão Nacional de
Residência Médica, no Ministério da Educação, durante quatro anos do governo
Lula.
“Para funcionar, a residência
médica precisa ter estrutura necessária, preceptor e financiamento”, diz ele.
“Cansei de fechar programas em instituições públicas e privadas. Eles não
tinham a mínima condição de funcionamento.”
As razões: “Os residentes
apanhavam dos pacientes, vários hospitais tinham goteira em cima da cama dos
doentes, os médicos usavam saquinho plástico em vez de luvas”. No período em
que esteve na coordenação, Lopes afirma que 200 vagas de residência foram
criadas em regiões menos favorecidas (interior do Ceará, Belém, Rio Grande do
Norte e outros estados). Em seis meses, 80% dos residentes haviam desistido.
Não havia ambulatório, uma rede mínima de atenção básica e, em alguns casos,
sequer receituário.
“Colocar médico para trabalhar em
lugares remotos nessas condições é jogar dinheiro público no ralo”, diz Lopes.
“Numa casa de sapé e mais nada, a contribuição do médico é menor que a do
padre”.
A proposta também apresenta
fragilidades jurídicas. “Obrigar um médico a fazer residência é
inconstitucional. Primeiro o governo fala em ampliar o curso de medicina para
oito anos. Quinze dias depois, vê com bons olhos a ideia de manter os seis anos
e tornar a residência obrigatória. Isso demonstra a total falta de rumo e de
conhecimento. É como pegar um paciente com ruptura do coração e não saber se é
preciso operá-lo ou não”, diz Lopes.
A população de grande parte dos
municípios brasileiros e das periferias sofre com a falta de médicos. É um
problema grave e real. Nesses lugares, não falta só médicos. Falta tudo. É a
falta de tudo que explica porque as cidades não conseguem atrair profissionais.
Imputar aos médicos a culpa pelo descalabro da saúde pública brasileira é uma
falácia pegajosa e perigosa.
Perpetuar a ideia de que as
pessoas morrem nos rincões distantes ou nas periferias porque os médicos não
têm sensibilidade nem consciência social é desviar o foco das reais causas da
tragédia brasileira.
Há médicos bons e ruins. Com
caráter e sem caráter. Com preocupação social ou sem ela. Assim como há
jornalistas, advogados e engenheiros de todos os tipos. Trabalhar no SUS
durante um período de formação pode ser uma experiência pessoal e profissional
enriquecedora. Muitos estudantes e médicos diplomados já trabalham em serviços
públicos e ali aprendem o que é ser médico – no sentido mais nobre do termo.
É assustador, porém, o caráter autoritário das soluções propostas até agora. Ninguém pode ser obrigado a trabalhar para o governo se quiser concluir um curso superior. Nem os médicos, nem os jornalistas, nem os advogados, nem os engenheiros.
É assustador, porém, o caráter autoritário das soluções propostas até agora. Ninguém pode ser obrigado a trabalhar para o governo se quiser concluir um curso superior. Nem os médicos, nem os jornalistas, nem os advogados, nem os engenheiros.
Mesmo que os profissionais de
todas as categorias fossem tratados como infratores da lei e, como eles,
cumprissem um período compulsório de prestação de serviços, o resultado
objetivo desse empenho, em termos de mudanças estruturais, seria questionável.
Sem recursos materiais mínimos, não há força de trabalho capaz de mudar a história
de uma população.
Até quinta-feira (25), 3,3 mil
municípios haviam se inscrito no Ministério da Saúde com o objetivo de receber
médicos. Apenas 3,1 mil profissionais haviam concluído a inscrição no programa
Mais Médicos. A previsão inicial do governo era atrair cerca de 10 mil
profissionais.
Se o governo quer realmente fixar
médicos onde eles são necessários deveria criar uma comissão para avaliar as
condições de trabalho nos municípios interessados. Se o governo complementasse
a estrutura mínima necessária para atender a população talvez mais médicos
aceitassem o desafio. “Nessa comissão precisaria ter gente que faz medicina de
fato. E não gente que enxerga a medicina pela janela do gabinete”, diz Lopes.
Trabalhar sem conseguir fazer
diferença gera frustração. Mais nada. Para o paciente que busca atendimento e
não encontra, o médico representa o Estado. Quem está na linha de frente é
visto como ministro da saúde, como a própria presidente. Se o médico não
resolve o caso, sobre ele recairá toda a raiva que a população gostaria de
lançar sobre quem tem o poder de transformar o SUS.
Quem tem esse poder? Os
brasileiros gostam de repetir que a saúde vai mal por culpa dos governantes,
dos políticos e gestores corruptos, dos apadrinhados que ocupam cargos públicos
sem ter competência técnica para isso etc. Tudo isso é verdade, mas só uma meia
verdade.
A saúde pública não vai melhorar
enquanto a sociedade continuar evitando as discussões duras e objetivas sobre
financiamento do sistema. O SUS foi criado em 1988 com a melhor das intenções.
Se funcionasse como o previsto na Constituição, seria um belíssimo instrumento
de justiça social. Para ser justo e universal, para oferecer tudo (todo e
qualquer tipo de tratamento) para toda a população (dos mais pobres aos mais
ricos), o SUS precisa receber mais dinheiro. E, ainda assim, talvez não fosse
possível oferecer todas as novas e caríssimas soluções criadas pela indústria
farmacêutica. Nenhum país do mundo consegue fazer isso.
Os cerca de 8% do PIB aplicado em
saúde (somando-se os recursos públicos e privados) não sustentam o sistema
imaginado em 1988. Como resolver a equação? Vamos aumentar impostos? Vamos
tirar dinheiro de outros ministérios? Vamos melhorar a gestão? O que é preciso
fazer exatamente para melhorá-la? Vamos limitar o atendimento público a
determinadas faixas de renda? Vamos limitar os gastos a um determinado pacote
de programas, tratamentos e drogas -- e só a eles? Vamos acabar com a hipótese
de qualquer cidadão entrar na justiça e exigir dos governos qualquer remédio
caríssimo – independentemente do preço?
Desde 1988, nenhum governo (PT,
PSDB, PMDB e todas as outras siglas que chegaram ao poder) assumiu o ônus
político de dizer que, do jeito que sonhamos e com o financiamento e a gestão
atuais – o SUS nunca será justo e universal.
É uma verdade dura e impopular,
daquelas que governante não diz e população não gosta de ouvir. Enquanto for
assim, vamos continuar nos iludindo com os coelhos que brotam da cartola e
voltam para o fundo dela sem aliviar o sofrimento de ninguém. Por Cristiane Segatto,
26/07/2013, www.época.com.br.