De volta
ao Brasil de sempre, resignaram-se há oito anos as paredes do gabinete
presidencial depois de uma ligeira contemplação do novo inquilino. Desde Jânio
Quadros, a grande sala no terceiro andar do Palácio do Planalto já abrigou
napoleões de hospício, generais de exército da salvação, perfeitas
cavalgaduras, messias de gafieira, gatunos patológicos, vigaristas provincianos
e outros exotismos da fauna brasileira. Por que não um Luiz Inácio Lula da
Silva?
Quem
conhece a saga republicana sabe que a ascensão ao poder de um ex-operário metalúrgico
só restabeleceu a rotina da anormalidade que vigora, com curtíssimos
intervalos, desde o fim do governo Juscelino Kubitschek. Na galeria dos
retratos dos presidentes, Lula está à vontade ao lado dos vizinhos de parede.
Sente-se em casa. A discurseira delirante e ininterrupta está em perfeita
afinação com a ópera do absurdo. O acorde dissonante é Fernando Henrique
Cardoso. Lula confirma a regra. FHC é a exceção.
O
migrante nordestino que chegou à Presidência sem escalas em bancos escolares
tem tudo a ver com o país dos 14 milhões de analfabetos, dos 50 milhões que não
compreendem o que acabaram de ler nem conseguem somar dois mais dois, da
imensidão de miseráveis embrutecidos pela ignorância endêmica e condenados a
uma vida não vivida. Esse mundo é indulgente com intuitivos que falam sem parar
sobre assuntos que ignoram. E é hostil a homens que pensam e agem com sensatez.
É um mundo que demora a alcançar em sua exata dimensão a lucidez do sociólogo
nascido no Rio que tinha escrito muitos livros quando se instalou no Planalto.
O Brasil
de Lula tem a cara primitiva de sempre. O Brasil de FHC provou que a
erradicação do atraso não é impossível. Pareceu até civilizado no primeiro dia
de 2003, quando se completou um processo sucessório exemplarmente democrático.
Durante a campanha eleitoral, o presidente fez o contrário do que faria o
sucessor oito anos mais tarde. Embora apoiasse José Serra, não mobilizou a
máquina administrativa em favor do candidato, não abandonou o emprego para animar palanques e
consultou os principais concorrentes antes de tomar decisões cujos efeitos
ultrapassariam os limites do mandato prestes a terminar. Consumada a vitória do
adversário, FHC pilotou o período de transição e ajudou a conter a fuga de
investidores inquietos com a folha corrida do PT.
NEM RUTH
CARDOSO FOI POUPADA
O Brasil de janeiro de 2003 tinha poucas semelhanças com o que Itamar Franco encontrou depois do despejo de Fernando Collor. Em 1994, então ministro da Fazenda do governo Itamar, Fernando Henrique comandou a montagem do Plano Real. Nos oito anos seguintes, fez o suficiente para entregar a Lula um Brasil alforriado da inflação e da irresponsabilidade fiscal, modernizado pela privatização de mamutes estatais deficitários e livres de tentações autoritárias.
O Brasil de janeiro de 2003 tinha poucas semelhanças com o que Itamar Franco encontrou depois do despejo de Fernando Collor. Em 1994, então ministro da Fazenda do governo Itamar, Fernando Henrique comandou a montagem do Plano Real. Nos oito anos seguintes, fez o suficiente para entregar a Lula um Brasil alforriado da inflação e da irresponsabilidade fiscal, modernizado pela privatização de mamutes estatais deficitários e livres de tentações autoritárias.
“Aqui
você deixa um amigo”, disse o sucessor com a faixa verde e amarela já
enfeitando o peito. Foi a primeira das mentiras, vigarices, trapaças e traições
que alvejariam a assombração que está para o Super-Lula como a kriptonita verde
para o Super-Homem. Criminosamente solidário com José Sarney, a quem chamava de
ladrão, obscenamente amável com Fernando Collor, a quem chamava de corrupto, o
ressentido incurável, incapaz de absorver as duas derrotas no primeiro turno e
conformar-se com a inferioridade intelectual, guardou o estoque inteiro de
truculências e patifarias para tentar destruir um adversário leal e um homem
honrado.
Lula
nunca pronuncia o nome do antecessor. Evita até identificá-lo pelas iniciais.
Delega as agressões frontais a grandes e pequenos canalhas, que explicitam o
que o chefe insinua. Há sempre os e sarneys, dirceus, jucás, berzoinis,
collors, dutras, renans, mercadantes, tarsos, gilbertinhos, dilmas erenices
prontos para a execução do trabalho sujo que não poupou sequer Ruth
Cardoso, vítima do papelório infame forjado em 2008 na fábrica de dossiês da
Casa Civil. A cada avanço dos farsantes correspondeu uma rendição sem luta do
PSDB, do PPS e do DEM. FHC não é atacado pelos defeitos que tem ou pelos erros
que cometeu, mas pelas qualidades que exibe e pelas façanhas que protagonizou.
Ele
merecia adversários menos boçais, aliados mais corajosos e uma plateia sem tantos
ressentidos à caça de pretextos para atribuir-lhe culpas alheias. Há algo de
muito errado com a oposição oficial quando um grande presidente, para
ressuscitar verdades reiteradamente assassinadas desde 2003, tem de defender
sozinho um patrimônio político-administrativo que deveria ser festejado pelos
partidos que o apoiaram. Há algo de muito estranho com um PSDB que não ouve o
que diz seu presidente de honra. Nem lê o que escreve como atestam dois artigos,
antológicos publicados no Estadão.
O PONTO FORA DA CURVA
No primeiro artigo, em outubro de 2008, FHC avisou que a democracia brasileira estava ameaçada pelo “autoritarismo popular” do chefe de governo, que poderia descambar numa espécie de subperonismo amparado nas centrais sindicais, em movimentos ditos sociais e nas massas robotizadas. “Para onde vamos?”, perguntava o título. A Argentina de Juan Domingo Perón foi para os braços de Isabelita e acabou no colo de militares hidrófobos. O Brasil de Lula foi para Dilma Rousseff. É cedo para saber onde acabará.
No primeiro artigo, em outubro de 2008, FHC avisou que a democracia brasileira estava ameaçada pelo “autoritarismo popular” do chefe de governo, que poderia descambar numa espécie de subperonismo amparado nas centrais sindicais, em movimentos ditos sociais e nas massas robotizadas. “Para onde vamos?”, perguntava o título. A Argentina de Juan Domingo Perón foi para os braços de Isabelita e acabou no colo de militares hidrófobos. O Brasil de Lula foi para Dilma Rousseff. É cedo para saber onde acabará.
Em
fevereiro, com 968 palavras, FHC enterrou no jazigo das malandragens
eleitoreiras a fantasia costurada durante sete anos. “Para ganhar sua guerra
imaginária, o presidente distorce o ocorrido no governo do antecessor, auto glorifica-se
na comparação, nega o que de bom foi feito e apossa-se de tudo que dele herdou
como se dele sempre tivesse sido”, resumiu no segundo artigo. Depois de ensinar
que o Brasil existia antes de Lula e existirá depois dele, recomendou que se
apanhasse a luva atirada pelo sucessor: “Se o lulismo quiser comparar, sem
mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer”.
Em vez de
seguir o conselho e sugerir a Lula que topasse um debate com Fernando Henrique,
José Serra reincidiu no crime praticado em 2002 — com agravantes. Além de
esconder o líder que aumentou a distância entre o país e a era das cavernas,
apareceu no horário eleitoral ao lado de Lula, convertido num Zé decidido a
prosseguir a obra do Silva. Aloysio Nunes Ferreira fez o contrário. Tinha 3%
das intenções de voto quando transformou FHC em principal avalista da
candidatura. Elegeu-se senador com a maior votação da História. Saudado por
sorrisos, cumprimentos e aplausos quando caminha nas ruas de São Paulo, FHC
nunca foi hostilizado em público. Depois da vaia no Maracanã, Lula não voltou a
dar as caras fora do circuito das plateias amestradas.
Desde o
dia da eleição, FHC tem exortado o PSDB a transformar-se num partido de
verdade, com um programa que adapte à realidade brasileira a essência da social
democracia, combata sem hesitações a corrupção institucionalizada e, sobretudo,
aprenda que o papel da oposição é opor-se, como ele próprio tem feito há oito
anos. “Por enquanto, o único partido que temos é o PT”, repetiu há dias. “Sem
uma linha política clara a seguir, o PSDB continuará a agir segundo as
circunstâncias e a perder tempo com questões pontuais”. Pode perder de vez
também o respeito e a confiança do eleitorado oposicionista, adverte a reação
provocada pela Carta de Maceió. O teor vergonhoso do documento comprova que os
governadores tucanos não captaram o recado do patriarca.
Na
trajetória desenhada pelos presidentes da República, FHC é o ponto fora da
curva. Pode ser esse o seu destino, sugere a paisagem deste fim de 2010.
Assegurada a vaga na História, poupado da obsessão pelo poder, ainda assim não
recusa o combate, não faz acordos, não capitula. Em respeito à própria
biografia, e por entender que a nação merece algo melhor, continua a apontar a
nudez do pequeno monarca. Oito anos mais velho, ficou oito anos mais novo:
nenhum líder político é tão parecido com a oposição real — rejuvenescida e
revigorada neste outubro por 44 milhões de votos — quanto Fernando Henrique
Cardoso. Direto ao Ponto, por Augusto Nunes, 19/12/2012, www.veja.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário