Do cartão pré-pago para vetar o
consumo de guloseimas ao chip para escolher a hora do primeiro beijo. Como
criar uma geração de eternos bebês:
Que tal arranjar um cartão pré-pago
para controlar o que os filhos comem na cantina? A ideia foi adotada em algumas
escolas da elite paulistana, segundo uma reportagem do colega Jairo Marques,
publicada nesta semana na Folha
de S. Paulo. Os pais estabelecem um valor de
consumo diário, mensal ou como acharem melhor. Pela internet, escolhem quais
alimentos e em qual quantidade os filhos podem comprar. Na hora do recreio, o
aluno paga as despesas com o cartão. Caso escolha um produto não aprovado pelos
pais, a compra é travada. Neca de pitibiriba. Passa amanhã. Preciso admitir que
o sistema é prático. Uma comodidade que evita o manuseio de dinheiro, contorna
os esquecimentos da molecada avoada e facilita o controle dos gastos. Educar
para a vida, no entanto, não combina com comodidade. É uma tarefa bem incômoda,
trabalhosa, que exige uma paciência de Jô. O cartão pré-pago é mais uma medida
desesperada para dar aos pais a sensação de falso controle sobre as escolhas
dos filhos. A obesidade atingiu níveis alarmantes, as crianças têm colesterol,
triglicérides e glicemia elevados, é uma geração que aos 10 anos tem saúde de
quem já passou dos 60? É a mais pura e estarrecedora verdade. Sinto dizer que
impingir (e aqui repito: impingir) alimentos saudáveis na hora do recreio será
pouco eficaz para reverter à situação. Em geral, uma criança passa 20 horas
semanais na escola. O que ela come nas outras 148 horas? Qual é o exemplo que
os pequenos recebem dos pais? O que há na geladeira e nos armários? Como são as
refeições em casa e nos momentos de lazer? É inadmissível que uma mãe diga que
a filha precisa emagrecer enquanto ela própria enche a casa de todo tipo de
bugiganga calórica, açucarada, gordurosa. Crianças não se tornam obesas aos 10
anos sem que os pais tenham negligenciado sua educação alimentar. A não ser é
claro, nos raros casos em que a doença é provocada por questões orgânicas, como
disfunção hormonal ou tumores. Assim como a religião, a visão de mundo, a
escolha do time, a construção do paladar infantil é fortemente influenciada
pela cultura e pelos hábitos da família. Minha filha e as amigas dela sabem o
que por no prato porque simplesmente aprenderam a fazer de uma determinada
forma. Se tivessem nascido na Mongólia, na Alemanha ou no Japão, fariam
diferente.
Como nasceram no Brasil, uma terra na
qual tudo dá, aprenderam a comer arroz, feijão, carne, peixe, legumes, verduras
e frutas. Chegam da escola cheias de apetite, lavam as mãos e, felizes da vida,
dizendo “adoro isso”, “adoro aquilo”, comem comida de verdade. Todas têm peso
normal. Todas consomem guloseimas em momentos especiais. Um passeio ao shopping
uma vez por semana, um sorvete, um chocolate, pipoca e batata fria de vez em
quando. É uma delícia perceber que o paladar dessas meninas está formado. Não precisam
de cartão pré-pago. Simplesmente aprenderam a escolher. Vão levar esse
aprendizado para sempre e incrementá-lo com os novos sabores que a vida lhes
apresentar. Com esse excesso de descontrole camuflado de controle, a molecada
de hoje está tendo a oportunidade de crescer e de aprender com seus próprios
erros e acertos? Creio que não. Do jeito que a coisa vai, daqui a pouco alguma
empresa vai inventar um chip para controlar o primeiro beijo dos filhos e tudo
o que vem depois. Se algo do gênero estiver em desenvolvimento em algum
laboratório de tecnologia, não tenho notícia. Mas acredito que seja o sonho de
consumo de muitos pais. Já pensou? Colocar um chip sob a pele da garota ou
preso à roupa para controlar o momento em que ela seria promovida do estágio BV
(boca virgem, no vocabulário adolescente) para BVL (boca virgem de língua)?
Posso até imaginar alguns pais barganhando as primeiras experiências amorosas
dos filhos em troca de desempenho escolar. “Só vou liberar o BD (beijo de
Drácula) se você tirar a nota máxima no Enem”. Tempos estranhos esses em que
nos colocaram para viver e educar. Educar é permitir que as crianças tomem
decisões gradativamente e aprendam a assumir a responsabilidade decorrente de
suas escolhas. Quanto desse aprendizado estamos roubando de nossos filhos? Nas
mãos de muitas famílias, o celular se transformou em instrumento de controle e
coerção. Quando tenho minhas dúvidas de mãe (e elas não são poucas), procuro
olhar para trás e pensar na minha própria infância. É sempre instrutivo. Como
aprendemos o que era certo ou errado, aceitável ou reprovável? Como escolhíamos
o que fazer nos momentos que exigiam decisões rápidas? Como agíamos quando
alguma coisa escapava do previsível? Ligávamos para o celular da mãe? Felizmente
não fazíamos isso. Quando eu tinha 10 anos, celular não existia. Tampouco
tínhamos telefone em casa. Comunicações de emergência eram feitas pelo orelhão.
Sempre brevemente porque a ficha caía e deixava o recado pela metade. Inúmeras
vezes tive de decidir por conta própria. E depois arcar com as consequências.
Às vezes tomava broncas homéricas da minha mãe na volta para casa. “Você não
podia ter feito isso... O que você tem na cabeça?”. Hoje acho graça e agradeço
pelas broncas, pelas lambadas que a vida me deu e por ter tido tantas
oportunidades de decidir. De erro em erro, de acerto em acerto, aprendi a não
ter medo de arriscar. Foi assim que entendi o que é aceitável socialmente e o
que não pode ser negligenciado. E também pude reconhecer os pontos que não eram
aceitos socialmente, mas contra os quais valia a pena me rebelar. Tudo por
minha conta e risco. Assim se constrói um ser autônomo. Não uma extensão de
quem veio antes. Criamos filhos para o mundo, por mais doloroso que esse fato
possa parecer. O que você acha? Controlar as escolhas dos filhos é uma boa
forma de educá-los? Qual é a sua experiência? Conte pra gente. Queremos ouvir
sua opinião. Por Cristiane Segatto, 08/03/2013, www.época.com.br.
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