A sociedade brasileira se esquece que muito mais eficaz do que criar
novas leis seria aplicar as que já existem
Por J. R.
Guzzo, 15/12/2016,
www.veja.com.br
Países subdesenvolvidos, sobretudo em matéria de
desenvolvimento mental, costumam ter em comum uma característica não muito
lembrada: a espetacular quantidade de questões cretinas presentes nas
discussões que fazem parte do seu dia a dia. O Brasil, que vive numa permanente
competição mundial para ver quem fica com os piores lugares em praticamente
todas as áreas da atividade humana, do tempo perdido pelo cidadão numa
repartição pública à capacidade de lidar com a aritmética elementar, pode estar
à beira do título de campeão neste quesito. Nada parece demonstrar tão bem
nosso potencial de criar, engordar e consumir bobagens fora de série quanto
essa história das “Dez Medidas” contra a corrupção, hoje debatida no mundo
político, jurídico e vizinhanças com a intensidade das paixões mais tórridas.
Ainda agora um ministro do Supremo Tribunal Federal, na situação de arruaça
descontrolada que envolve atualmente o ato de fazer leis neste país, acendeu
mais um holofote de escuridão em torno das tais medidas; mandou o Senado
Federal devolver à Câmara dos Deputados o projeto que recebera dela, já
aprovado, para novas discussões. Mais gritaria. Mais bate-boca. Mais desordem.
Menos, e cada vez menos, algum sinal de vida inteligente nesta baderna política
e legal.
O STF pode fazer isso? Não pode? A Câmara tem o
direito de fazer emendas num projeto de lei? Quais? O que está certo? O que
está errado? O público está recebendo neste preciso momento uma cordilheira
completa de notícias, opiniões, análises e tudo mais sobre as aventuras e
transmutações da “lei anticorrupção”; não há nenhuma necessidade, portanto, de
castigar o coita do com mais prosa e verso sobre o assunto. Ele precisa menos
ainda, Deus nos livre, de ser idiotizado com as hermenêuticas, e propedêuticas,
e bobagêuticas que compõem a abordagem “jurídica” do tema. Este artigo apenas
pede a devida “vênia” do leitor para registrar uma observação prática. O debate
sobre as “Dez Medidas” já era incompreensível porque nunca fez sentido nenhum;
agora fica garantido que continuará exatamente assim, mas com um carimbo do
Supremo Tribunal Federal. Como pode fazer sentido um conjunto de providências
contra a corrupção que não muda em nada, absolutamente nada, as condições que
tornam a corrupção praticamente inevitável no Brasil? Seus defensores acham que
a chave de tudo está em tornar mais pesadas as punições para quem rouba. Não
percebem, apesar de todas as provas que recebem diariamente, que ninguém se
assusta com as penas; a única coisa que realmente pode atrapalhar o ladrão é a
redução das oportunidades de roubar. Nisso não se mexe uma palha. O erário
público brasileiro continua sendo um imenso pernil, um dos maiores do mundo,
pronto o tempo todo para ser fatiado; a situação, na verdade, só piora, pois
quanto mais a autoridade pública se mete na vida do país, mais chance cria para
corruptos e corruptores.
“Cadeia”, como se vê, não faz ninguém roubar menos.
Nunca houve, em toda a história do Brasil, tanta gente investigada, processada,
presa e condenada por corrupção como há no presente momento. Nunca se furtou
tanto. Só nos últimos dias, a polícia prendeu professores por roubo de bolsas
de estudos, no Rio Grande do Sul, fez um rapa na prefeitura de Itu, em São
Paulo, por ladroagem no filão imobiliário, prendeu a prefeita e outros peixes
gordos em Ribeirão Preto – em suma, é algo que simplesmente não para mais, saiu
fora de qualquer controle e está contaminando um número cada vez maior de
áreas. Hoje se vai em minutos do primeiríssimo escalão da República a tudo
quanto é prefeitura de interior, da venda de alvarás ao roubo de bolsas de
estudo – sim, mete-se a mão até nisso, bolsas de estudo. Enquanto as malas de
dinheiro vivo voam de um canto para o outro, ferve o debate nacional,
gravíssimo, sobre a criação de mais dez regras contra a roubalheira. O que se
pode esperar de bom numa situação dessas? A sociedade brasileira continua
enganando a si mesma com a ideia de que vai resolver problemas através da
criação de novas leis – e se esquece que muito mais eficaz do que isso seria,
modestamente, aplicar as leis que já existem. Que leis novas tiveram de ser criadas
para permitir a atuação e o funcionamento da Operação Lava Jato? Nenhuma. O que
houve aí foi unicamente vontade, coragem e competência para se aplicar as
regras existentes. É, justamente, o que está faltando.
(Conteúdo coluna do Augusto Nunes)
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