"Não custa lembrar: Nixon teve de
renunciar ao segundo mandato por causa de uma besteira feita no primeiro. Foi
eleito pelo povo. Foi deposto pelas instituições"
Um novo refrão anda "nas cabeças,
anda nas bocas", poderia dizer o lulista Chico Buarque: a possível
reeleição do presidente absolve os petistas de todos os seus crimes. As urnas
fariam pelo PT o que o ditador soviético Josef Stalin fez por si mesmo: apagar
a história. É um embuste. A vantagem do presidente se deve à economia, à
inépcia e inapetência das oposições, às políticas assistencialistas, tornadas
uma eficiente máquina eleitoral, e à ignorância, agora a serviço do tal
"outro mundo possível". O povo é, sim, um tipinho suspeito, mas não
vota para livrar a cara dos marcolas da ideologia.
O voto do ignorante vale menos? Não.
Mas também não vale mais. Nem muda a natureza das instituições. E não absolve
ninguém, tarefa que continuará a ser da Justiça. A vacina contra o
autoritarismo virótico de quem pretende cair nos braços do povo para ser
absolvido de seus crimes está em Origens do Totalitarismo, da
pensadora judia-alemã Hannah Arendt. Aprende-se ali que não devemos permitir
que os inimigos da democracia cheguem ao poder, negando-nos, uma vez lá, em
nome dos seus princípios, as liberdades que lhes facultamos em nome dos nossos.
A tese da absolvição serve ao propósito
de pautar a imprensa com uma agenda virtuosa. O programa de governo do PT prevê,
diga-se, o incentivo oficial à "mídia independente". Em lulês,
significa financiar, com o dinheiro dos desdentados, a sabujice disfarçada de
jornalismo. A prática já está em curso. Felizmente, a democracia é um regime
legitimado pela maioria, mas sustentado pelas elites, de que a imprensa faz
parte. As esquerdas se arrepiam diante dessa afirmação. Entendo.
A alternativa histórica às elites
esclarecidas é o déspota esclarecido. Se, no passado, ele podia ser um homem,
no presente, tem de ser um "partido", um ente de razão com poder de
se sobrepor às leis, embora não dispense o demiurgo. Lula é o Tirano de
Siracusa (aquele que Platão tentou converter à filosofia, coitado!) dos
intelectuais petistas. A decana do delírio é a filósofa Marilena Chauí. No
livro Simulacro e Poder: uma Análise da Mídia, ela afirma que
o discurso da direita se sustenta no senso comum. À esquerda caberia
desmontá-lo para criar uma "nova fala".
Marilena é a Tati Quebra-Barraco da
academia. Seu funk filosófico apela à barbárie, mas tem o charme da
resistência, a exemplo de certas canções de Chico – Lula é o "meu
guri" que chegou lá. Ela ressuscita a tara do marxismo vagabundo de que o
senso comum existe como falsa consciência, a ser superada pela iluminação de
uma razão transformadora. Conclui-se que o povo, deixado à própria sorte, vai
para a direita. Se educado pela militância, pode atravessar os umbrais da
liberdade. Na China de Mao Tse-tung, 70 milhões morreram sob o efeito dessa
luz.
Mas eu estou com ela. E com
Shakespeare. Também acho que o povo não é de confiança. O bardo diz o que pensa
no discurso de Marco Antônio diante do corpo de Júlio César, assassinado havia
pouco. Leiam a peça ou vejam o filme dirigido por Joseph L. Mankiewicz – um
judeu de origem alemã nascido nos EUA. Um minicoquetel de figuras retóricas
transformou o tirano assassinado num herói, e o herói republicano, Brutus, num
tirano. César era intuitivo, sentimental e tolerante com os de baixa estirpe;
Brutus era tímido, racional e ensimesmado.
Açulada pelos conspiradores, a massa
primeiro tripudia diante do corpo inerme; chamada por Marco Antônio à sua natureza
amorosa e primitiva, adora a memória do ditador. Afinal, "quando os pobres
deixavam ouvir suas vozes lastimosas, César derramava lágrimas", discursa
Marco Antônio. Ocorre-me que o rechonchudo Getúlio Vargas foi o nosso César
shakespeariano, e o magricela Carlos Lacerda, o nosso Cássio, o chefe dos
conspiradores. Antes de seu trágico fim, César havia dito a Marco Antônio:
"Quero homens gordos em torno de mim, homens de cara lustrosa e que durmam
durante a noite. Ali está Cássio com o aspecto magro e esfaimado. Pensa demais.
Tais homens são perigosos". O mal está no pensamento.
Se eu, Marilena e Shakespeare não
confiamos no povo, onde está a diferença? O dramaturgo o trata como o vulgo
instável de sempre, e Marilena quer educá-lo segundo os rigores de uma razão
supostamente iluminista; ele só passará a ser uma categoria relevante quando
acordar de seu sono e aderir a uma utopia finalista. Trata-se de um embuste
utópico em nome do qual se institui o presente eterno na política, que passa a
ser um jogo sem regras previamente definidas justamente para que qualquer
conveniência possa ser considerada uma regra do jogo.
Quando, para defender o PT, um ator diz
que a política pressupõe enfiar a mão na sujeira ou um músico dá um pé no
traseiro da ética, ambos estão pondo em termos muito práticos o que a intelligentsia petista
urdiu como teoria de poder: a superação do senso comum (de direita?), segundo o
qual não se deve roubar dinheiro público. A "nova fala" do barraco de
Marilena acena então com a pior de todas as tiranias: aquela exercida pelos
servos.
E o "meu" povo? Ele é a fonte
legitimadora das instituições democráticas e, portanto, tem de ser protegido de
si mesmo se atentar contra os códigos que guardam seus direitos – e isso inclui
absolver ladrões. Esse é, aliás, o aparente paradoxo das sociedades modernas,
em que vigora o estado de direito: a cultura da reclamação, da permanente
mobilização, da constante reivindicação de direitos resulta em grupos de
pressão que querem impor a sua agenda, ainda que o preço seja o fim da
universalidade das leis. A esquerda, faceira, torna-se porta-voz desse novo
humanismo de tribo. O paradoxo é aparente porque uma democracia não proíbe a
existência de tais movimentos, mas também não cede. E seu limite é a lei, sem
as "acomodações táticas" de Márcio Thomaz Bastos.
O tucano Geraldo Alckmin diz que o povo
nunca erra. Está errado. Houvesse um modo mais seguro de governar, seria o caso
de aposentar a democracia. Mas não há. Basta olhar para os números das
pesquisas para constatar que, pela primeira vez desde a redemocratização, há um
divórcio entre a escolha dos mais pobres e menos instruídos e a dos chamados
"formadores de opinião". O neo-iluminismo petista se constrói tendo
em uma das mãos a miséria tornada cativa da caridade oficial – os servos
senhores de servos – e, na outra, a desinformação, a ignorância. Não chega a
ser uma luta de classes. É só um arranca-rabo, mas é o bastante para alimentar
as ilusões redentoras de quem usa a Ética do filósofo holandês Spinoza para
justificar a ética de Delúbio Soares e Paulo Betti.
Ademais, só é esse o estado geral das
artes porque, vá lá, se é verdade que o senso comum é "de direita",
como quer Tati Marilena, a voz dominante do establishment, hoje,
foi seqüestrada pela esquerda. Esta tem projeto de poder, produz valores e
ideologia; os democratas, que "eles" chamam de "direita",
acreditam que basta conquistar o comando, sem fazer a guerra cultural.
Urna não é tribunal. Não absolve
ninguém. E não custa lembrar: Nixon teve de renunciar ao segundo mandato por
causa de uma besteira feita no primeiro. Foi eleito pelo povo. Foi deposto
pelas instituições. As primeiras palavras da Constituição americana explicam
tudo: "Nós, o povo...". Foi escrita para durar. Afronta, se preciso,
o povo que há em nome do povo a haver. Se reeleito, Lula que se cuide. A luta
continua.
Artigo de Reinaldo Azevedo,
colunista veja.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário