Para o coordenador da Lava Jato em Curitiba, o combate à corrupção exige
mudanças nas leis
Por Flávia
Tavares, 06/08/2015,
www.época.com.br
O procurador
Deltan Dallagnol, um dos responsáveis pela Operação Lava Jato. Contra a corrupção,
ele lembra que punição dura e garantia de punição são medidas distintas, ambas
necessárias
O procurador da República Deltan Dallagnol,
coordenador da Operação Lava Jato em Curitiba, lançou em 27 de julho um vídeo em que
convoca os cidadãos a participar de um abaixo-assinado. A iniciativa é parte de
uma campanha do Ministério Público Federal, que propõe 10 medidas contra
a corrupção. Se forem colhidas 1,5 milhão ou mais de
assinaturas, as medidas podem se tornar um projeto de lei de iniciativa
popular, como aconteceu com a Ficha Limpa. O vídeo de Dallagnol passou a
ser compartilhado em redes sociais. O procurador falou com ÉPOCA sobre a
campanha e sobre a esperança que a Lava Jato trouxe aos brasileiros. "A
Lava Jato traz esperança, porque pela primeira vez estão sendo atingidas
pessoas de alto nível econômico e político de modo simultâneo. E porque nunca
vimos cifras de recuperação de valores nem perto do que estamos vendo nesse
caso. Mas a esperança de transformação profunda só vai ser alcançada por
meio de mudanças sistêmicas", diz Dallagnol.
ÉPOCA - Qual o objetivo final das dez medidas
propostas pelo Ministério Público Federal de combate à corrupção?
Deltan Dallagnol - As medidas têm três enfoques principais. O
primeiro é preventivo, é evitar que a corrupção aconteça. O segundo enfoque é
conseguir a punição e a recuperação desses valores desviados de modo adequado.
E o terceiro é acabar com a impunidade. Não adianta termos a punição adequada
se a impunidade persistir. Existe uma relação muito estreita entre corrupção e
impunidade. É um círculo vicioso. Quem diz que a impunidade estimula a
corrupção não é o Deltan, mas são as pessoas que mais estudam corrupção no
mundo. São autores como Susan-Rose Ackerman, referências mundiais no assunto.
Eles dizem que a pessoa que pratica corrupção faz uma análise de custo e
benefício. Nos custos, a pessoa analisa o tamanho e a probabilidade de punição.
Autores de criminologia americana que estudam o crime de colarinho branco
também citam a punição séria e efetiva uma política sadia de enfrentamento
desse tipo de crime. Digo isso porque há o discurso de que a punição não
resolve o crime. Mas depende do tipo de crime cometido. A criminalidade de rua
não segue essa regra. Crimes passionais ou praticados por pessoas viciadas,
fora do eixo, são diferentes. A corrupção é um crime racional e envolve essa
análise de custo benefício.
ÉPOCA - E quais são as principais medidas?
Dallagnol - Na parte preventiva, nós propusemos a vinculação
de um percentual da publicidade da União, dos Estados e dos municípios a
campanhas de marketing contra a corrupção, como existem em outros países. Hong
Kong é uma inspiração, porque tinha uma corrupção endêmica, como no Brasil, e
hoje ocupa a 17ª posição no ranking de honestidade e transparência
internacional. Eles fizeram várias campanhas, anualmente, tanto para o cidadão
comum quanto para o alto executivo. Existe uma aparente cultura de intolerância
com a corrupção, mas quando olhamos pesquisas de institutos sérios, observamos
que as coisas estão muito longe do ideal e que nós precisamos desenvolver uma
cultura em que a pessoa vincule a corrupção de modo muito prático com
malefícios a si, às pessoas que ele ama e à sociedade. São os pequenos atos de
corrupção que abrem brecha para atos maiores e mais sérios como aqueles que a
gente vê na nossa investigação. Também queremos a fixação em toda repartição
pública de cartazes que digam quais as taxas que são cobradas ali e seu valor,
para evitar cobrança de taxas indevidas. Essa é uma medida recomendada
internacionalmente. Propomos ainda programas de conscientização em escolas e
universidades e estabelecimento de códigos claros de conduta.
ÉPOCA - O MPF propõe aumento nas penas aos
corruptos?
Dallagnol - Eu disse publicamente na semana passada que a
pena é uma piada de mau gosto. Hoje, a pena para os corruptos gira em torno da
mínima, de dois anos, dificilmente passa dos quatro anos. Ela normalmente é
substituída por prestação de serviços à comunidade, e é perdoada depois de
cumprida um quarto dela, por um decreto de indulto natalino. As penas não
freiam ninguém. O freio que existe hoje é apenas o ético, não o jurídico. A
corrupção hoje é um crime de baixo risco a alto benefício. Se a pessoa não tem
o freio ético, hoje a corrupção vale à pena. A idéia dessas medidas é tornar a
corrupção um crime de alto risco, porque os danos que ela produz são muito
graves. Para que a própria pessoa queira ficar longe da corrupção. Nós
propusemos uma pena mínima de quatro anos. E penas gradativas, de acordo com o
volume desviado. Quando o valor desviado supera os R$ 80 mil, a pena passa a
ser de 7 a 15 anos.
ÉPOCA - Por que R$ 80 mil?
Dallagnol - São cem salários mínimos, é cem vezes o
que vários brasileiros ganham para viver. A partir desse valor, a corrupção
passa a ser crime hediondo e não cabem mais aqueles indultos que perdoam a pena
depois do cumprimento de pequena parte dela. Quando a corrupção for superior a
R$ 800 mil, a pena passa a ser de 10 a 18 anos. Acima de R$ 8 milhões, passa a
ser de 12 a 25. Para termos de comparação, a pena de um homicídio qualificado
vai de 12 a 30. Isso significa que a corrupção ainda continuaria tendo pena
menor do que a do homicídio qualificado, sendo que com esses valores ela mata muito
mais do que um homicídio. Ela mata quando tira R$ 200 bilhões dos cofres
públicos por ano no Brasil. Ela mata quando a estrada fica esburacada porque o
administrador corrupto não pode aplicar uma multa na empresa porque está com o
rabo preso com aquela empresa. Aquele buraco na estrada vai gerar uma morte. A
corrupção tem efeitos concretos e drásticos. Também propomos fechar as brechas
por onde o dinheiro escapa. Uma das medidas prevê que seja possível recuperar o
recurso desviado ainda que o criminoso morra ou que o caso prescreva.
ÉPOCA - Na frente da impunidade, o que o MPF
propõe?
Dallagnol - A demora de julgamento de um réu de crime de
colarinho branco é de 10 a 20 anos. Temos três instâncias recursais. Desconheço
outro país em que isso exista. Em diversos países, a execução da pena acontece
após o julgamento de segunda instância. E nossa corte superior julga 100 mil
casos por ano, quando a Suprema Corte americana, com número parecido de
ministros, julga 100. Essa demora, combinada com o modo como funciona nosso
sistema de prescrição, é uma máquina de impunidade. A prescrição foi criada
como um remédio para obrigar o Estado a se mexer para punir alguém. O problema
é que hoje, ainda que o Estado faça de tudo para punir alguém que cometeu um
crime, pela simples demora do Judiciário, acaba acontecendo à prescrição. Esse
é um dos flancos em que as propostas atuam.
ÉPOCA - Por que o senhor se tornou uma espécie de
garoto-propaganda da campanha?
Dallagnol - A campanha é institucional, a Procuradoria Geral da
República (PGR) assumiu. Mas é claro que, na força-tarefa, nós temos um pouco
de senso de paternidade das medidas, porque elas foram concebidas ali. Elas
foram levadas à PGR, que gostou, consultou diversos especialistas das diversas
matérias e, por fim, foi feita uma consulta ao público, para fechar um pacote
final. Nós percebemos que a sociedade estava colocando sobre a operação Lava
Jato uma esperança de transformação tal que nós não somos capazes de entregar.
A Lava Jato traz esperança, sim, porque pela primeira vez estão sendo atingidas
pessoas de alto nível econômico e político de modo simultâneo. E porque nunca
vimos cifras de recuperação de valores nem perto do que estamos vendo nesse
caso. Mas a esperança de transformação profunda só vai ser alcançada por
meio de mudanças sistêmicas. Nós já tivemos outros casos grandes de corrupção.
Mas um caso não impediu o outro. Se nós queremos atuar sobre a corrupção de
modo a diminuir seus níveis, nós efetivamente precisamos atuar sobre estruturas
sistêmicas, sobre a forma como o sistema funciona. São medidas que surgiram do
desejo do nosso coração, que foram encampadas pela PGR, porque é um desejo do
coração de todos os procuradores e do coração do brasileiro. Em razão disso,
acabei atuando de maneira ativa nas instâncias institucionais, junto com a
Câmara, com a PGR, para angariar pessoas dentro do MPF que possam ser
multiplicadoras, para fazer essa divulgação. Naqueles eventos de 2013, havia
uma grande indignação popular. Mas não havia uma ponte para alcançar a
transformação. Essas medidas funcionam como uma espécie de ponte de ouro. Ou,
ainda, é como se nós tivéssemos um grande banhado de indignação em 2013 e o que
precisamos fazer é canalizar essa indignação em rios que nos levem a algum
lugar.
ÉPOCA - Como o senhor responde às críticas de que a
campanha surge contra um determinado governo ou contra alguns partidos?
Dallagnol - A partidarização da corrupção é um erro. É algo
conhecido na ciência como teoria da maçã podre. É uma teoria errada de
enfrentamento da corrupção, porque parte da idéia de que a corrupção é produto
de uma maçã podre dentro de uma cesta de maçãs sadias. Então, para resolver,
seria só remover a estragada. Mas isso esconde o fato de que a corrupção é
produto de uma série de fatores e condições. E que, se nós quisermos alterar a
forma como as coisas têm funcionado, temos de alterar esses fatores e
condições. Há duas formas erradas de aplicar essa teoria. Um jeito é o
governante falar que o problema da corrupção é de um indivíduo específico do
órgão que se corrompeu, negando o contexto. O outro jeito é o cidadão olhar
para o governante e falar que a corrupção é um problema do governante A ou B,
do partido A ou B.
ÉPOCA - A corrupção está pior hoje do que foi no
passado?
Dallagnol - A corrupção não é de hoje no nosso país. A
expressão "mar de lama" foi cunhada no governo Getúlio Vargas e foi
utilizada até hoje nos mais variados governos. Existe notícia de corrupção na
ditadura e, mesmo lá atrás, o Padre Antonio Vieira, no sermão do Bom Ladrão, diz
que pessoas da Coroa vinham ao Brasil não para buscar o nosso bem, mas para
buscar os nossos bens. Nós já erramos uma vez no Brasil, esperando que um
governante mudasse nossa história. Elegemos uma pessoa que seria caçadora de
corruptos, de marajás, e sabemos que essa história não acabou bem. Então, se
quisermos transformação, precisamos atuar no sistema, independentemente do
partido que esteja no poder ou da pessoa do governante. Se fosse outro
governante, é bem possível e provável que esquemas idênticos ou similares
estivessem acontecendo.
ÉPOCA - Há apoio para as medidas propostas pelo MPF
no Legislativo?
Dallagnol - Nesta fase, estamos apresentando essas medidas
para a sociedade, para que, caso a sociedade entenda que elas são boas como nós
entendemos que elas são, a própria sociedade encampe e peça a seus
representantes no parlamento a sua aprovação. Não estamos numa articulação com
congressistas. Se a sociedade se manifestar de forma consistente, com mais de
um milhão de assinaturas, acredito nas instituições, creio que as medidas vão
ser aprovadas pelo Congresso. Essas medidas repercutem diretamente na nossa
atividade. Nós não temos o papel de propor medidas dentro do Congresso. Mas
qualquer entidade social pode levar sugestões ao parlamento. O que fazemos é o
que diversos entes da sociedade fazem: conhecendo muito bem uma realidade,
pensar soluções que possam melhorar a realidade social brasileira e trazer
essas sugestões para a sociedade para sua avaliação. Não estamos fazendo
atividade política.
ÉPOCA - O senhor recebeu críticas sobre o fato de
ter ido a uma igreja evangélica falar da campanha na segunda-feira passada.
Dallagnol - Eu fui a um seminário expor, como expus para
você, as medidas contra a corrupção, para que, se assim entendessem, essas
pessoas encampassem isso e buscassem que essas medidas sejam aprovadas pelos
nossos representantes. Eu tenho uma fé. Essa fé tem base em princípios que
afetam quem eu sou. Quando eu converso com pessoas que têm a mesma fé, tenho a
liberdade de me expressar pelo ponto de vista da minha fé. Eu jamais misturaria
a minha fé com a minha profissão para adotar critérios não racionais. Meu
trabalho como procurador é guiado pela lei e pela Constituição, de modo laico.
Eu tenho falado em procuradorias, em congressos de empresários, para a
maçonaria, temos contato com a Igreja Católica, com Rotary Clubs, fizemos
palestras em congressos totalmente laicos, de contadores, médicos, ONGs. É um
contexto muito maior de diálogo com a sociedade.
ÉPOCA - O senhor pretende usar a manifestação do
dia 16 de agosto para divulgar a campanha?
Dallagnol - Não, a gente não vai se vincular a essa
manifestação, porque ela já está com uma característica de manifestação por
impeachment e a gente não acredita que a mudança da corrupção endêmica vai ser
alcançada pela mudança de um governante. Nossa atuação não é política. Então,
não temos ligação com essa manifestação. É claro que pessoas e entidades que
queiram aproveitar que pessoas estão nas ruas para colher assinaturas, vão
poder colher, mas nós não vamos nos vincular a isso por um risco de má
interpretação da nossa postura e da nossa atuação.
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