Janete e Donald só precisam de
uma oportunidade para descobrir afinidades
Por Augusto
Nunes, 09/11/2016,
www.veja.com.br
Texto de Valentina de Botas
Era mar que era ilha, a de Itamaracá, cercada de
horizontes por toda a parte, bordados de umas garcinhas azuis e brancas, quando
vi o mar pela primeira vez. Lá em Itamaracá, no meu Pernambuco, na casa
perfumada de cajus da tia Ninha que vai completar logo mais 85 anos de tanta
doçura. A irmã mais velha de mamãe está conosco há uns 10 dias, ficará outro
tanto adoçando tudo em volta e me ensina a fazer o mais delicioso doce do
mundo: ‒ Caju é caju, açúcar é açúcar, água é água, pronto: tem mistério não,
minha fulô. O mais importante, meu amô, é reconhecer o ponto certo da calda pra
botar os cajus na panela, visse?
Foi perturbador contemplar a nudez de Dilma
Rousseff na entrevista à Folha de S.Paulo e tive pena dela: sem
comitivas, assessores, pompas e circunstâncias, parlatório, microfone e tudo aquilo
que maquiava o vazio por baixo do terninho, a pessoa que até outro dia
governava um país inteiro vive um cotidiano oco que culmina em informar um nome
falso – Janete – a atendentes de telemarketing que telefonam para o apartamento
dela em Porto Alegre. Despida da cenografia palaciana que fazia a criatura
medíocre parecer medíocre porque instalada num cargo que exige o inexistente
numa Dilma Rousseff, a ex-presidente vai pouco a pouco nos deixando ver, no
meio de tudo e em qualquer cenário ou condição, a extensão desse espanto que é
termos feito, duas vezes, Janete presidente.
Num comentário a um texto meu publicado nesta
coluna ensolarada, comandada por um democrata absoluto dono de um texto
magnífico a quem serei sempre grata por olhar com vagar e benevolência meus
textos desgalhados, afirmei que Donald Trump é radical; um leitor respondeu que
eu cavara minha cova ao dizer isso. Não sei se foi ameaça, desejo dele ou
profecia. Mas não tenho medo, não dou importância e quase tenho pena de alguém
tão inábil com a própria nudez a ponto de, por uma questão menor como são as
questões políticas, insinuar uma ameaça, um desejo ou uma profecia sobre a cova
de uma pessoa que não adora o ídolo dele nem qualquer outro. Só faço este
registro porque quero esclarecer: Trump e o leitor (que não direi quem é; se
ele quiser, que se identifique) são radicais e radicais de qualquer campo
ideológico se igualam na escrotice.
Não quero morrer, não é por nada, claro que um dia
acontecerá – e tudo bem, pois a imortalidade nos mataria de certo modo –, só
que, apesar de não ser nenhum broto (e usar essa palavra o comprova), queria
viver até conseguir o mais importante e que talvez só a idade trará; não é
minha opinião serenamente irrelevante ou meu texto naturalmente transitivo, nem
a concordância dos leitores que o generoso grande Augusto Nunes me empresta,
tampouco o que acham de mim pessoas que não me conhecem (e mesmo algumas que me
conhecem): o mais importante é descobrir o ponto exato, preciso, perfeito da
calda para botar os cajus.
Claro que a eleição do presidente americano é
importante; para o Brasil, particularmente porque, depois de ficarem 13 anos
ausentes do mundo que presta, o país começa a se reabrir para a economia global
e é uma pena a vitória de Trump, entre outras razões, porque, junto com o
Brexit, sinaliza um mundo mais fechado. É a direita populista conseguindo acuar
a democracia liberal, o que as esquerdas radicais tentam inutilmente desde o pós-guerra.
Ainda assim, é preciso considerar que Trump tem um US Congresso no caminho, que
em nada se parece com certa casa do
espanto seduzida por coisas como mensalão.
De todo modo, é patético que cidadãos brasileiros,
que pouco ou nada contam para qualquer presidente dos Estados Unidos,
aproveitem mais uma oportunidade para exercer a intolerância e a obtusidade
chegando a sonhar com a cova para quem afirma que Trump é radical. Radical,
obtuso e obscuro. Ah, mas Dilma também não gosta de Trump. Ora, e daí? Até
relógio parado consegue acertar. Janete e Donald só precisam de uma
oportunidade para descobrir afinidades: radicais se esfregam no escurinho
ideológico.
Quem escolheu continuar vivendo depois de morrer de
amor, de felicidade, de tristeza, de gozo, até de arrependimento, de raiva ou
indignação já aprendeu a reconhecer na nudez uma roupa intrínseca à nossa
condição de humanos e sabe que o perturbador não é a nudez, mas não saber
vestir nossa nudez como uma roupa intrínseca à nossa condição de humanos. Juro
que não consegui evitar a compaixão quando vi que a ex-presidente, apesar da
maturidade etária e de experiências agudas como a tortura e a dolorosa expulsão
do poder – ainda que justa e legal –, tem da realidade uma elaboração que
produz uma Janete.
Fiquei numa espécie de torcida humanitária para que
Dilma encontrasse em alguma gaveta imaginária qualquer retalho da fantasia da
mulher arrogante que, na ignorância da própria ignorância, fez da comédia
pessoal a tragédia do país. Então, além do prazer que todo texto do meu querido
Celso Arnaldo enseja, este me deixou aliviada porque mostra que a Dilma
Rousseff nua vestiu outra fantasia e se recompôs: Janete é palestrante. Que se
abrigue aí da própria nudez que não suporta.
Meninota queria pegar as garcinhas, que pousavam na
beira da praia e ficou em mim a leveza daquilo: este ruflar de asas ansiando o
horizonte; esta delicadeza de seres ariscos quando contidos; esta fugacidade do
que é intenso numa urgência resignada de quem descobriria que tudo pode acabar
agora mesmo e observaria a própria nudez até saber, vez ou outra, cobrir-se com
ela. Quando segurei uma delas, num segundo era minha; no outro, da amplidão em
horizontes sucessivos. Ela me ensinava outro jeito para retê-la: deixando em
mim o desejo pelo horizonte perfumado de cajus na calda. O que pode ser mais
importante?
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