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quinta-feira, 11 de maio de 2017

Radicais de qualquer campo ideológico se igualam na escrotice



Janete e Donald só precisam de uma oportunidade para descobrir afinidades

Por Augusto Nunes, 09/11/2016,
 www.veja.com.br

Texto de Valentina de Botas

Era mar que era ilha, a de Itamaracá, cercada de horizontes por toda a parte, bordados de umas garcinhas azuis e brancas, quando vi o mar pela primeira vez. Lá em Itamaracá, no meu Pernambuco, na casa perfumada de cajus da tia Ninha que vai completar logo mais 85 anos de tanta doçura. A irmã mais velha de mamãe está conosco há uns 10 dias, ficará outro tanto adoçando tudo em volta e me ensina a fazer o mais delicioso doce do mundo: ‒ Caju é caju, açúcar é açúcar, água é água, pronto: tem mistério não, minha fulô. O mais importante, meu amô, é reconhecer o ponto certo da calda pra botar os cajus na panela, visse?

Foi perturbador contemplar a nudez de Dilma Rousseff na entrevista à Folha de S.Paulo e tive pena dela: sem comitivas, assessores, pompas e circunstâncias, parlatório, microfone e tudo aquilo que maquiava o vazio por baixo do terninho, a pessoa que até outro dia governava um país inteiro vive um cotidiano oco que culmina em informar um nome falso – Janete – a atendentes de telemarketing que telefonam para o apartamento dela em Porto Alegre. Despida da cenografia palaciana que fazia a criatura medíocre parecer medíocre porque instalada num cargo que exige o inexistente numa Dilma Rousseff, a ex-presidente vai pouco a pouco nos deixando ver, no meio de tudo e em qualquer cenário ou condição, a extensão desse espanto que é termos feito, duas vezes, Janete presidente.

Num comentário a um texto meu publicado nesta coluna ensolarada, comandada por um democrata absoluto dono de um texto magnífico a quem serei sempre grata por olhar com vagar e benevolência meus textos desgalhados, afirmei que Donald Trump é radical; um leitor respondeu que eu cavara minha cova ao dizer isso. Não sei se foi ameaça, desejo dele ou profecia. Mas não tenho medo, não dou importância e quase tenho pena de alguém tão inábil com a própria nudez a ponto de, por uma questão menor como são as questões políticas, insinuar uma ameaça, um desejo ou uma profecia sobre a cova de uma pessoa que não adora o ídolo dele nem qualquer outro. Só faço este registro porque quero esclarecer: Trump e o leitor (que não direi quem é; se ele quiser, que se identifique) são radicais e radicais de qualquer campo ideológico se igualam na escrotice.

Não quero morrer, não é por nada, claro que um dia acontecerá – e tudo bem, pois a imortalidade nos mataria de certo modo –, só que, apesar de não ser nenhum broto (e usar essa palavra o comprova), queria viver até conseguir o mais importante e que talvez só a idade trará; não é minha opinião serenamente irrelevante ou meu texto naturalmente transitivo, nem a concordância dos leitores que o generoso grande Augusto Nunes me empresta, tampouco o que acham de mim pessoas que não me conhecem (e mesmo algumas que me conhecem): o mais importante é descobrir o ponto exato, preciso, perfeito da calda para botar os cajus.

Claro que a eleição do presidente americano é importante; para o Brasil, particularmente porque, depois de ficarem 13 anos ausentes do mundo que presta, o país começa a se reabrir para a economia global e é uma pena a vitória de Trump, entre outras razões, porque, junto com o Brexit, sinaliza um mundo mais fechado. É a direita populista conseguindo acuar a democracia liberal, o que as esquerdas radicais tentam inutilmente desde o pós-guerra. Ainda assim, é preciso considerar que Trump tem um US Congresso no caminho, que em nada se parece com certa casa do espanto seduzida por coisas como mensalão.

De todo modo, é patético que cidadãos brasileiros, que pouco ou nada contam para qualquer presidente dos Estados Unidos, aproveitem mais uma oportunidade para exercer a intolerância e a obtusidade chegando a sonhar com a cova para quem afirma que Trump é radical. Radical, obtuso e obscuro. Ah, mas Dilma também não gosta de Trump. Ora, e daí? Até relógio parado consegue acertar. Janete e Donald só precisam de uma oportunidade para descobrir afinidades: radicais se esfregam no escurinho ideológico.

Quem escolheu continuar vivendo depois de morrer de amor, de felicidade, de tristeza, de gozo, até de arrependimento, de raiva ou indignação já aprendeu a reconhecer na nudez uma roupa intrínseca à nossa condição de humanos e sabe que o perturbador não é a nudez, mas não saber vestir nossa nudez como uma roupa intrínseca à nossa condição de humanos. Juro que não consegui evitar a compaixão quando vi que a ex-presidente, apesar da maturidade etária e de experiências agudas como a tortura e a dolorosa expulsão do poder – ainda que justa e legal –, tem da realidade uma elaboração que produz uma Janete.

Fiquei numa espécie de torcida humanitária para que Dilma encontrasse em alguma gaveta imaginária qualquer retalho da fantasia da mulher arrogante que, na ignorância da própria ignorância, fez da comédia pessoal a tragédia do país. Então, além do prazer que todo texto do meu querido Celso Arnaldo enseja, este me deixou aliviada porque mostra que a Dilma Rousseff nua vestiu outra fantasia e se recompôs: Janete é palestrante. Que se abrigue aí da própria nudez que não suporta.

Meninota queria pegar as garcinhas, que pousavam na beira da praia e ficou em mim a leveza daquilo: este ruflar de asas ansiando o horizonte; esta delicadeza de seres ariscos quando contidos; esta fugacidade do que é intenso numa urgência resignada de quem descobriria que tudo pode acabar agora mesmo e observaria a própria nudez até saber, vez ou outra, cobrir-se com ela. Quando segurei uma delas, num segundo era minha; no outro, da amplidão em horizontes sucessivos. Ela me ensinava outro jeito para retê-la: deixando em mim o desejo pelo horizonte perfumado de cajus na calda. O que pode ser mais importante?

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