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sexta-feira, 19 de maio de 2017

Troco a razão pela liberdade de pensar livre



Torço para que a bandidagem toda vá em cana, só receio que os motivos maiores de isso ainda não ter acontecido não estão onde os histéricos procuram

Por Augusto Nunes, 07/05/2017,
 www.veja.com.br

Texto de Valentina de Botas

Detento exemplar parece que José Dirceu, mostrou como conseguir um habeas corpus sem perder a ternura. Se você vai ler este texto, preciso te alertar: não tenho informações de bastidores; entendo de leis apenas o suficiente para me manter do lado certo do Código Penal; não consigo seguir rebanhos mansos ou revoltosos; não idolatro nada nem ninguém; além disso, começo frases com pronome oblíquo misturo as pessoas do verbo, e estou triste também com a morte do Belchior que canta agora a minha preferida, “Coração Selvagem”: meu bem guarde uma frase pra mim dentro da sua canção.

O habeas corpus a José Dirceu transformou o Brasil novamente em terreno do colapso da razão. Os criminosos pobres desimportantes, esquecidos na cadeia aguardados a Justiça, foram citados para contrapor o poder de JD na decisão frustrante do STF e só serão lembrados outra vez quando convier. Frustrante decisão para o país indignado, mas legal. É desejável que o Ministério Público Federal defenda seu trabalho, mas se o fizer por enfrentamento político, vai dar no que deu: toda vez que o MPF ultrapassa os limites institucionais, a bandidagem sorri. Agora fez política tentando pressionar o STF e, me parece, isso determinou o tom do voto de Gilmar Mendes.

Nossa febre é a de sempre e quebrar o termômetro peitando o frustrante STF é inútil e descabido. O Supremo foi peculiarmente legalista? Ora, não foi também com peculiar legalismo – pois omitiu que a gravidade não é quesito para HC, mas para o julgamento – que Deltan Dallagnol usou o Facebook para listar casos menos graves em que o HC foi negado? Não tenho competência para dizer qual dos legalismos peculiares é correto, o que tento fazer é resistir à histeria da torcida. Torço para que a bandidagem toda vá em cana, sobretudo o chefe, só receio que os motivos maiores de isso ainda não ter acontecido não estão onde os histéricos procuram. 

A Justiça brasileira mastodôntica e cara, que já falha ao tardar, garante impunidade de ponta a ponta e a obsessão com a lentidão do STF é só uma rima, não uma solução; some-se a isso o jogo político sujo ou limpo num contexto de incertezas em que as tentativas do MPF para se impor à custa da harmonia institucional e a conduta politiqueira de Rodrigo Janot ameaça o que podem fazer – e não fizeram porque preferiram “medidas menos gravosas”. Ou Lula (chefe da organização criminosa) e Dilma (chefe do governo que garantia o funcionamento da organização criminosa) têm foro privilegiado? 

O juiz Sérgio Moro, lúcido diante do fanatismo de que é objeto involuntário, evitou restrições a JD que poderiam ser descontadas da pena final. Enquanto isso, hordas de extrema direita querem a cabeça de Gilmar Mendes espetada num poste, e a turba de esquerda quer a de Sergio Moro exibida em praça pública; para as esquerdistas, há uma conspiração que pretende tirar Lula da disputa de 2018; para a extrema direita, a teoria da conspiração é o jeca se candidatar e voltar à presidência: o Brasil, embrutecido pelo fanatismo, cansa. 

Deveria estar claro que não é necessária uma conspiração para prender um criminoso (bastaria aplicar a lei) nem para ele se eleger (bastar-lhe-iam votos); afinal, se são-todos-iguais, vida longa ao jeca! Não são iguais e um duque (o Renato) veio lembrar, neste 5 de maio, quem são rei e rainha na nobreza mafiosa que nos governou por quase 14 anos. A melancolia dessa pornorroubalheira, não me desculpem os fanáticos à esquerda e à direta, é a Lava Jato ter rendido livros, filme, PowerPoint, menos a prisão do rei absolutista que continua liberado para destruir as provas da soberania dele. 

Entre sites (sérios!) de notícias que estão a um post de atear fogo ao STF e analistas de quem já não espero mais ponderação e menos gritaria, grassam modernos Tirésias deformados que mal noticiam ou observam o presente e preferem proclamar o futuro com a fluência do adivinho original que era cego, em mais uma das tirações de sarro daqueles gregos danados com essa alegoria de um homem que, sem olhos para o presente, via o futuro. O vidente de Tebas acertava todas e quem o ignorou se deu mal; em contraste, os nossos anunciam que o HC a JD tece a trama com que o STF atará a Lava Jato eliminando as prisões alongadas. 

Conseqüentemente, Palocci, decifrando o recado cifrado no HC-JD, desistiu da delação premiada que ensaiava. É acusado de defensor-de-bandido, inimigo da Lava Jato, esquerdista Fabiano (termo da moda incompreendido por 10 entre 10 que o disparam) e outros “argumentos” quem lembrar que, se o italiano não delatar, Moro o sentenciará a 50 anos de cadeia. O embrutecimento dos fanáticos cansa, mas é impotente se nos dispusermos a pensar: o italiano vai se lascar caso não delate; que tipo de criminoso idiota troca os benefícios definitivos da delação pelos efêmeros do HC? O tipo idiota. OK, então. Alguns afirmam que JD solto destruirá provas e obstruirá a Justiça; ora, o que ele ainda precisa fazer nesse sentido que o chefe em liberdade ainda não tenha providenciado? Incertezas são exasperantes, mas é o que temos num país em transição; só ela – a transição – é a certeza. Não é pouco.

Atravessamos 2014 e 2015 procurando alguma luz entre a escuridão do “ta tudo dominado” a cada batalha ganha pela súcia e a do “a casa caiu” a cada passo da nação indignada para se livrar do governo petista; no final de 2015, o STF, numa operação inconstitucional capitaneada pelo ministro Roberto Barroso, praticamente abortou o impeachment. Todavia, afastamos Janete e o Brasil está se depurando. Mesmo achando natural a agonia de um regime podre e forte frente ao país decente que rascunhamos se dar num fluxo e refluxo de forças antagônicas, rejeito o fanatismo que sagra intocáveis por radicais que vêem no impeachment um golpe para impedir a volta de Lula ou para sabotar a Lava Jato e o governo atual e anterior como a mesma coisa. Fosse assim, Temer governaria por pedaladas fiscais em vez de fazer reformas para organizar a catástrofe fiscal; o ministro da Justiça ameaçaria a Polícia Federal; o ministro da Fazenda achacaria empresários para garantir o projeto de poder do PMDB e germinar governos conservadores pela vizinhança; a intimidação ao jornalismo independente vigoraria; etc. 

Não piore minha tristeza me censurando algum otimismo ou pessimismo. Sou brasileira demais, vivi tempo no Brasil demais, sempre pegando duas conduções para ir e duas para voltar, passei tempo demais em filas, perdi muito do que já tive e vi poucas promessas serem cumpridas para, diante de um tremendo golpe de sorte chamado Lava Jato numa nação tão maltratada, reduzir essa transição a um simplista otimismo x pessimismo. A trajetória é irregular, mas é impossível detê-la; temos tido perdas e ganhos, mas o novo Brasil soterrará o velho, será devagar e com recuos, com fanatismo e a resistência a ele, com a casca e o caroço, mas será. Não é a porção Tirésias que não tenho o que me leva a essa constatação, mas Belchior: meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente/Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente/Sim, já é outra viagem e o meu coração selvagem tem essa pressa de viver.

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