Torço para que a bandidagem toda vá em cana, só receio que os motivos
maiores de isso ainda não ter acontecido não estão onde os histéricos procuram
Por Augusto
Nunes, 07/05/2017,
www.veja.com.br
Texto de Valentina de Botas
Detento exemplar parece que José Dirceu, mostrou
como conseguir um habeas corpus sem perder a ternura. Se você vai ler este
texto, preciso te alertar: não tenho informações de bastidores; entendo de leis
apenas o suficiente para me manter do lado certo do Código Penal; não consigo
seguir rebanhos mansos ou revoltosos; não idolatro nada nem ninguém; além
disso, começo frases com pronome oblíquo misturo as pessoas do verbo, e estou
triste também com a morte do Belchior que canta agora a minha preferida,
“Coração Selvagem”: meu bem guarde uma frase pra mim dentro da sua canção.
O habeas corpus a José Dirceu transformou o Brasil
novamente em terreno do colapso da razão. Os criminosos pobres desimportantes,
esquecidos na cadeia aguardados a Justiça, foram citados para contrapor o poder
de JD na decisão frustrante do STF e só serão lembrados outra vez quando
convier. Frustrante decisão para o país indignado, mas legal. É desejável que o
Ministério Público Federal defenda seu trabalho, mas se o fizer por
enfrentamento político, vai dar no que deu: toda vez que o MPF ultrapassa os
limites institucionais, a bandidagem sorri. Agora fez política tentando
pressionar o STF e, me parece, isso determinou o tom do voto de Gilmar Mendes.
Nossa febre é a de sempre e quebrar o termômetro
peitando o frustrante STF é inútil e descabido. O Supremo foi peculiarmente
legalista? Ora, não foi também com peculiar legalismo – pois omitiu que a
gravidade não é quesito para HC, mas para o julgamento – que Deltan Dallagnol
usou o Facebook para listar casos menos graves em que o HC foi negado? Não
tenho competência para dizer qual dos legalismos peculiares é correto, o que
tento fazer é resistir à histeria da torcida. Torço para que a bandidagem toda
vá em cana, sobretudo o chefe, só receio que os motivos maiores de isso ainda
não ter acontecido não estão onde os histéricos procuram.
A Justiça brasileira mastodôntica e cara, que já
falha ao tardar, garante impunidade de ponta a ponta e a obsessão com a
lentidão do STF é só uma rima, não uma solução; some-se a isso o jogo político
sujo ou limpo num contexto de incertezas em que as tentativas do MPF para se
impor à custa da harmonia institucional e a conduta politiqueira de Rodrigo
Janot ameaça o que podem fazer – e não fizeram porque preferiram “medidas menos
gravosas”. Ou Lula (chefe da organização criminosa) e Dilma (chefe do
governo que garantia o funcionamento da organização criminosa) têm foro
privilegiado?
O juiz Sérgio Moro, lúcido diante do fanatismo de
que é objeto involuntário, evitou restrições a JD que poderiam ser descontadas
da pena final. Enquanto isso, hordas de extrema direita querem a cabeça de
Gilmar Mendes espetada num poste, e a turba de esquerda quer a de Sergio Moro
exibida em praça pública; para as esquerdistas, há uma conspiração que pretende
tirar Lula da disputa de 2018; para a extrema direita, a teoria da conspiração
é o jeca se candidatar e voltar à presidência: o Brasil, embrutecido pelo
fanatismo, cansa.
Deveria estar claro que não é necessária uma conspiração para
prender um criminoso (bastaria aplicar a lei) nem para ele se eleger
(bastar-lhe-iam votos); afinal, se são-todos-iguais, vida longa ao jeca! Não
são iguais e um duque (o Renato) veio lembrar, neste 5 de maio, quem são rei e
rainha na nobreza mafiosa que nos governou por quase 14 anos. A melancolia
dessa pornorroubalheira, não me desculpem os fanáticos à esquerda e à direta, é
a Lava Jato ter rendido livros, filme, PowerPoint, menos a prisão do rei
absolutista que continua liberado para destruir as provas da soberania dele.
Entre sites (sérios!) de notícias que estão a um
post de atear fogo ao STF e analistas de quem já não espero mais ponderação e
menos gritaria, grassam modernos Tirésias deformados que mal noticiam ou
observam o presente e preferem proclamar o futuro com a fluência do adivinho
original que era cego, em mais uma das tirações de sarro daqueles gregos
danados com essa alegoria de um homem que, sem olhos para o presente, via o
futuro. O vidente de Tebas acertava todas e quem o ignorou se deu mal; em
contraste, os nossos anunciam que o HC a JD tece a trama com que o STF atará a
Lava Jato eliminando as prisões alongadas.
Conseqüentemente, Palocci, decifrando o recado
cifrado no HC-JD, desistiu da delação premiada que ensaiava. É acusado de
defensor-de-bandido, inimigo da Lava Jato, esquerdista Fabiano (termo da moda
incompreendido por 10 entre 10 que o disparam) e outros “argumentos” quem
lembrar que, se o italiano não delatar, Moro o sentenciará a 50 anos de cadeia.
O embrutecimento dos fanáticos cansa, mas é impotente se nos dispusermos a
pensar: o italiano vai se lascar caso não delate; que tipo de criminoso idiota
troca os benefícios definitivos da delação pelos efêmeros do HC? O tipo idiota.
OK, então. Alguns afirmam que JD solto destruirá provas e obstruirá a Justiça;
ora, o que ele ainda precisa fazer nesse sentido que o chefe em liberdade ainda
não tenha providenciado? Incertezas são exasperantes, mas é o que temos num
país em transição; só ela – a transição – é a certeza. Não é pouco.
Atravessamos 2014 e 2015 procurando alguma luz
entre a escuridão do “ta tudo dominado” a cada batalha ganha pela súcia e a do
“a casa caiu” a cada passo da nação indignada para se livrar do governo
petista; no final de 2015, o STF, numa operação inconstitucional capitaneada
pelo ministro Roberto Barroso, praticamente abortou o impeachment. Todavia,
afastamos Janete e o Brasil está se depurando. Mesmo achando natural a agonia
de um regime podre e forte frente ao país decente que rascunhamos se dar num
fluxo e refluxo de forças antagônicas, rejeito o fanatismo que sagra intocáveis
por radicais que vêem no impeachment um golpe para impedir a volta de Lula ou
para sabotar a Lava Jato e o governo atual e anterior como a mesma coisa. Fosse
assim, Temer governaria por pedaladas fiscais em vez de fazer reformas para
organizar a catástrofe fiscal; o ministro da Justiça ameaçaria a Polícia
Federal; o ministro da Fazenda achacaria empresários para garantir o projeto de
poder do PMDB e germinar governos conservadores pela vizinhança; a intimidação
ao jornalismo independente vigoraria; etc.
Não piore minha tristeza me censurando algum
otimismo ou pessimismo. Sou brasileira demais, vivi tempo no Brasil demais,
sempre pegando duas conduções para ir e duas para voltar, passei tempo demais
em filas, perdi muito do que já tive e vi poucas promessas serem cumpridas
para, diante de um tremendo golpe de sorte chamado Lava Jato numa nação tão
maltratada, reduzir essa transição a um simplista otimismo x pessimismo. A
trajetória é irregular, mas é impossível detê-la; temos tido perdas e ganhos,
mas o novo Brasil soterrará o velho, será devagar e com recuos, com fanatismo e
a resistência a ele, com a casca e o caroço, mas será. Não é a porção Tirésias
que não tenho o que me leva a essa constatação, mas Belchior: meu bem, o mundo
inteiro está naquela estrada ali em frente/Tome um refrigerante, coma um
cachorro-quente/Sim, já é outra viagem e o meu coração selvagem tem essa pressa
de viver.
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