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terça-feira, 16 de maio de 2017

Vem comigo que no caminho eu te explico



Mayer e Blat chamam de brincadeira o que chamariam de abuso se o alvo fosse a filha, a sobrinha, a mulher, a mãe deles, uma amiga querida

Por Augusto Nunes, 10/04/2017,
 www.veja.com.br

“Quantas vezes tivemos e teremos que nos sentir despidas pelo olhar de um homem, e ainda assim — ou por isso mesmo - sentir medo de gritar e parecer loucas? Quantas vezes teremos que ouvir, inclusive de outras mulheres: ‘ai que exagero! Foi só uma piada’. Quantas vezes vamos deixar passar, constrangidas e enojadas, essas ações machistas, elitistas, sexistas e maldosas?” - Susllem Tonani, figurinista da Rede Globo que acusou o ator José Mayer de assédio. 

Texto de Valentina de Botas

Já se falou muito do caso envolvendo José Mayer e Susllem Tonani, mas eu queria comentar um aspecto que acho relevante e do qual não vi ainda ninguém se ocupar. De tudo fica um pouco, constata Drummond no poema “Resíduo”; o presente também se faz de passados que remanescem e desconfio que isso não é bom nem ruim, isso apenas é. Pois somos seres históricos, preenchidos de memória, e é impossível e mesmo indesejável descartar o passado como realidade monolítica.

Especialmente por isso é compreensível, sem ser aceitável, que José Mayer, recusando acertadamente o figurino arcaico de culpar a vítima, tenha errado ao diluir a responsabilidade individual e intransferível num caldo geracional, esse biombo cultural que não esconde mais o caráter ou a falta dele. É inaceitável também porque ofende a multidão de homens decentes da mesma geração e é desmentido por Caio Blat que, tão mais jovem, defendeu o colega provando que arcaísmos não têm idade: era tudo brincadeira, afinal, o jovem antigo decidiu.

Blat soma a esse improvável machismo lúdico o arcaísmo atualizado em coágulos ideológicos ao absolver Mayer e achar genial (sic) que Jair Bolsonaro seja processado por ter dito a então deputada Maria do Rosário que não a estuprava porque ela não merecia. Sem se dar conta, Blat se alinha a essa infame meritocracia do abuso estabelecendo o que é brincadeira, quem pode e com quem se pode brincar. Susllem, por exemplo, merecia que Mayer passasse a mão nela por brincadeira, claro, mas Bolsonaro não poderia, nem por brincadeira, dizer (apenas dizer) o que disse à deputada. Considero a fala do deputado grave, mas o que Mayer fez – em falas e atitudes – não é menos grave.

Um amigo me falou de casos em que a acusadora mentia, o que destruiu a vida dos acusados e, ainda que eles tenham sido inocentados depois, o desgaste para um homem de bem e a família é avassalador. Claro que há mulheres farsantes e manipuladoras, numa sordidez que merece punição. Mas não é este o caso já que o próprio Mayer desistiu de negar o inegável e não sei qual parte do “não” ele não entendeu quando Susllem o alertou que denunciaria a situação se ele não parasse, o não consentimento da figurinista e as progressivas investidas do ator configuram o abuso.

Entre tudo o que fica dessa história, e alcanço finalmente o que pretendo explicar, é argumentação, em favor de Susllem, segundo a qual Mayer e Blat chamam de brincadeira o que chamariam de abuso se o alvo fosse a filha, a sobrinha, a mulher, a mãe deles, uma amiga querida, enfim, alguma mulher com quem tivessem uma ligação afetiva. Essa antiga e recorrente defesa provavelmente traduz uma realidade em que à mulher, para ter o direito ao respeito básico no trabalho, na universidade ou na rua, ainda não é atribuída uma individualidade plena e, portanto, ela tem de ser vista nos papéis de filha, esposa, mãe, etc., como se fosse necessário agregar valor à nossa individualidade ralinha de, desculpem, indivíduos.

Mas e se ela – a assediada, a abusada, a estuprada – for somente ela mesma, e não esposa, mãe, filha, sobrinha, santa, diaba, etc.? Somente um indivíduo a quem não se pode, sob alegação de nenhum tipo (a roupa ou o comportamento, por exemplo), cassar o direito de não passar por uma coisa dessas. Pois esse direito pertence ao indivíduo, não a papéis sociais ou culturais. E daí que ela provocou, está usando uma roupa que cobre quase nada? O homem que tentar “dar o que ela está querendo”, apesar de ela dizer “não”, será somente um canalha e um criminoso, e não um super-homem restabelecendo a glória do macho. Não é glorioso infringir o código penal nem ser um covarde, certo? Certo.

O poema de Drummond é um clássico publicado em “A Rosa do Povo”, na edição que tenho da Record fica na página 94, e fala, com desencanto lírico e irônico, das cápsulas do passado que ficam, transfigurando-se numa atualidade dicotômica quanto à herança negativa e positiva a um só tempo. Talvez o poema tenha pouco a ver com este texto, talvez tenha muito; não sei. O fato é que me lembrei dele e se ainda não o conhece, caro eventual leitor, eu te convido a fazê-lo e a vir comigo nesta reflexão: pouco ficará dos direitos das mulheres se eles forem defendidos porque, puxa vida, poderíamos ser tua filha-ou-mãe-ou-namorada. Esse resíduo desvitaliza nossa individualidade e, sem ela, não há mulheres nem homens, apenas bichos definidos pela violência atrás de biombos precários.

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