Mayer e Blat chamam de brincadeira o que chamariam de abuso se o alvo
fosse a filha, a sobrinha, a mulher, a mãe deles, uma amiga querida
Por Augusto
Nunes, 10/04/2017,
www.veja.com.br
“Quantas vezes tivemos
e teremos que nos sentir despidas pelo olhar de um homem, e ainda assim — ou
por isso mesmo - sentir medo de gritar e parecer loucas? Quantas vezes teremos
que ouvir, inclusive de outras mulheres: ‘ai que exagero! Foi só uma piada’. Quantas
vezes vamos deixar passar, constrangidas e enojadas, essas ações machistas,
elitistas, sexistas e maldosas?” - Susllem Tonani, figurinista da Rede Globo
que acusou o ator José Mayer de assédio.
Texto de Valentina de Botas
Já se falou muito do caso envolvendo José Mayer e
Susllem Tonani, mas eu queria comentar um aspecto que acho relevante e do qual
não vi ainda ninguém se ocupar. De tudo fica um pouco, constata Drummond no
poema “Resíduo”; o presente também se faz de passados que remanescem e desconfio
que isso não é bom nem ruim, isso apenas é. Pois somos seres históricos,
preenchidos de memória, e é impossível e mesmo indesejável descartar o passado
como realidade monolítica.
Especialmente por isso é compreensível, sem ser
aceitável, que José Mayer, recusando acertadamente o figurino arcaico de culpar
a vítima, tenha errado ao diluir a responsabilidade individual e intransferível
num caldo geracional, esse biombo cultural que não esconde mais o caráter ou a
falta dele. É inaceitável também porque ofende a multidão de homens decentes da
mesma geração e é desmentido por Caio Blat que, tão mais jovem, defendeu o
colega provando que arcaísmos não têm idade: era tudo brincadeira, afinal, o
jovem antigo decidiu.
Blat soma a esse improvável machismo lúdico o
arcaísmo atualizado em coágulos ideológicos ao absolver Mayer e achar genial
(sic) que Jair Bolsonaro seja processado por ter dito a então deputada Maria do
Rosário que não a estuprava porque ela não merecia. Sem se dar conta, Blat se
alinha a essa infame meritocracia do abuso estabelecendo o que é brincadeira,
quem pode e com quem se pode brincar. Susllem, por exemplo, merecia que Mayer
passasse a mão nela por brincadeira, claro, mas Bolsonaro não poderia, nem por
brincadeira, dizer (apenas dizer) o que disse à deputada. Considero a fala do
deputado grave, mas o que Mayer fez – em falas e atitudes – não é menos grave.
Um amigo me falou de casos em que a acusadora
mentia, o que destruiu a vida dos acusados e, ainda que eles tenham sido
inocentados depois, o desgaste para um homem de bem e a família é avassalador.
Claro que há mulheres farsantes e manipuladoras, numa sordidez que merece
punição. Mas não é este o caso já que o próprio Mayer desistiu de negar o
inegável e não sei qual parte do “não” ele não entendeu quando Susllem o
alertou que denunciaria a situação se ele não parasse, o não consentimento da
figurinista e as progressivas investidas do ator configuram o abuso.
Entre tudo o que fica dessa história, e alcanço
finalmente o que pretendo explicar, é argumentação, em favor de Susllem,
segundo a qual Mayer e Blat chamam de brincadeira o que chamariam de abuso se o
alvo fosse a filha, a sobrinha, a mulher, a mãe deles, uma amiga querida,
enfim, alguma mulher com quem tivessem uma ligação afetiva. Essa antiga e
recorrente defesa provavelmente traduz uma realidade em que à mulher, para ter
o direito ao respeito básico no trabalho, na universidade ou na rua, ainda não
é atribuída uma individualidade plena e, portanto, ela tem de ser vista nos
papéis de filha, esposa, mãe, etc., como se fosse necessário agregar valor à
nossa individualidade ralinha de, desculpem, indivíduos.
Mas e se ela – a assediada, a abusada, a estuprada
– for somente ela mesma, e não esposa, mãe, filha, sobrinha, santa, diaba,
etc.? Somente um indivíduo a quem não se pode, sob alegação de nenhum tipo (a
roupa ou o comportamento, por exemplo), cassar o direito de não passar por uma
coisa dessas. Pois esse direito pertence ao indivíduo, não a papéis sociais ou
culturais. E daí que ela provocou, está usando uma roupa que cobre quase nada?
O homem que tentar “dar o que ela está querendo”, apesar de ela dizer “não”,
será somente um canalha e um criminoso, e não um super-homem restabelecendo a
glória do macho. Não é glorioso infringir o código penal nem ser um covarde,
certo? Certo.
O poema de Drummond é um clássico publicado em “A
Rosa do Povo”, na edição que tenho da Record fica na página 94, e fala,
com desencanto lírico e irônico, das cápsulas do passado que ficam,
transfigurando-se numa atualidade dicotômica quanto à herança negativa e
positiva a um só tempo. Talvez o poema tenha pouco a ver com este texto, talvez
tenha muito; não sei. O fato é que me lembrei dele e se ainda não o conhece,
caro eventual leitor, eu te convido a fazê-lo e a vir comigo nesta reflexão:
pouco ficará dos direitos das mulheres se eles forem defendidos porque, puxa
vida, poderíamos ser tua filha-ou-mãe-ou-namorada. Esse resíduo desvitaliza
nossa individualidade e, sem ela, não há mulheres nem homens, apenas bichos definidos
pela violência atrás de biombos precários.
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