Por Reinaldo Azevedo,
05/10/2015, www.veja.com.br
Ai, ai… A gente não é dono absoluto nem
da própria história, não é? O tempo pode ser cruel mesmo com quem tem um feito
notável ou outro. Ora por ideologia, ora por interesse, é grande, para usar uma
expressão de Graciliano Ramos em “Memórias do Cárcere”, o risco de
“acanalhamento” das biografias. Cecília Meireles até verteu isso em lirismo.
Querem ler? No poema “Retrato de uma Criança com uma Flor na Mão”:
Quem lhe ensinara o sorriso
e a graça de assim ficar
com as luzes do paraíso
sustentadas no olhar?
e a graça de assim ficar
com as luzes do paraíso
sustentadas no olhar?
Naquele instante divino,
com a tênue flor na mão.
recebeu seu destino
palma e galardão.
com a tênue flor na mão.
recebeu seu destino
palma e galardão.
Não se repete na vida
a hora clara existida
livre de tempo e dor.
a hora clara existida
livre de tempo e dor.
Era tão linda! E estou triste.
Deus, por que permitiste
sobrevivesse à flor?
Deus, por que permitiste
sobrevivesse à flor?
Pois
é… Capricho nas referências porque, com o tempo, de tanto falar do lixo da
política brasileira, corremos o risco, nós também, de acanalharmos os marcos
civilizatórios. Por que isso?
Marcelo
Lavenère, um dos dois que assinaram a denúncia que resultou no afastamento de
Fernando Collor, em 1992 — o outro foi Barbosa Lima Sobrinho, que morreu no dia
16 de julho de 2000, aos 103 anos —, concede uma entrevista à Folha nesta
segunda.
É
tal a quantidade de bobagens que diz sobre o eventual impeachment de Dilma que
melhor teria sido ficar calado para não macular a própria história.
Diz
ele, por exemplo:
“A
aparência engana e eu mesmo encontro poucas semelhanças sobre o que havia em
1992 e hoje. O Collor foi eleito, e a eleição foi aceita como legítima, não se
questionava. Diferente do que acontece atualmente, em que, mesmo antes de Dilma
tomar posse, já se dizia que sofreria o impeachment.”
É
verdade. É que Collor foi eleito, não reeleito. Dilma conquistou o segundo
mandato quando já havia denúncia de que sua campanha tinha sido irrigada com
dinheiro criminoso e quando já se conheciam as lambanças fiscais a que havia
recorrido para maquiar as contas do governo.
Mais
adiante, diz Lavenère:
“Diferente
daquela época, as acusações que vemos primeiro não se dirigem à presidente, mas
a pessoas do seu partido, ou da base do governo que estariam ou estão
envolvidas em investigações feitas pela Justiça.”
O
empresário Ricardo Pessoa, da UTC, acusa Edinho Silva, tesoureiro de Dilma, seu
ministro e um de seus homens fortes de tê-lo achacado.
Para
escândalo dos fatos, Lavenère continua:
“As
acusações contra Collor foram de fatos ocorridos durante a gestão dele. Ninguém
discutiu o que havia antes. Já no caso dela, ao que se sabe, as acusações são
de que na campanha teria havido isso e que ela teria feito pedalada fiscal. É o
que consta no pedido dos senhores Helio Bicudo e Miguel Reale.”
Chega
a ser cínico! As pedaladas, por acaso, não foram dadas com o objetivo de
maquiar as contas, garantir a continuidade dos programas sociais, convertidos,
então, em moeda eleitoral? A Dilma que pedalava não era a mesma que se
candidatava?
Como
a bobagem parece não ter limites, ele avança:
“O Congresso fez uma CPMI para apurar se ele tinha envolvimento e, quando veio o relatório, concluiu-se pela necessidade de um processo de impeachment, o que foi apoiado por praticamente a totalidade das entidades da sociedade. Não era partidário, político. Quem organizou? Ninguém. A orquestra tocou afinada sem maestro. Não tinha alguém para reger as senhoras que iam apoiando a gente.”
“O Congresso fez uma CPMI para apurar se ele tinha envolvimento e, quando veio o relatório, concluiu-se pela necessidade de um processo de impeachment, o que foi apoiado por praticamente a totalidade das entidades da sociedade. Não era partidário, político. Quem organizou? Ninguém. A orquestra tocou afinada sem maestro. Não tinha alguém para reger as senhoras que iam apoiando a gente.”
Ora,
doutor! Ninguém uma ova! Todos os partidos de esquerda, muito especialmente o
PT, estavam engajados no impeachment. As manifestações de rua de agora são
muito superiores às de 1992, em números absolutos e relativos.
O
que há, vamos ser claros, de diferente é outra coisa. Daquela vez, as esquerdas
apoiavam a queda da presidente; desta feita, elas são contrárias porque
beneficiárias do governo; porque mamam nas tetas oficiais. Naquele caso, elas
queriam assaltar o estado — e o impeachment é o pretexto. Desta feita, o estado
já foi assaltado, e a acusação de golpe serve de pretexto para que continuem se
locupletando do bem público.
Para
arrematar a imensa coleção de tolices, diz Lavenère:
“Existe uma preocupação de desestabilizar um governo legalmente eleito. Preocupação de invalidar o resultado das eleições. Eu acho que, neste caso, sim, significa uma tentativa de golpe. Já se falava em impeachment antes das eleições. Trinta dias depois, um partido político encomendou um parecer de um grande jurista de São Paulo de mentalidade muito conservadora. Essa articulação dos partidos de oposição, movidos pela insatisfação e pelo chororô de quem perdeu eleição, a mim tem cheiro de golpe, sim.”
“Existe uma preocupação de desestabilizar um governo legalmente eleito. Preocupação de invalidar o resultado das eleições. Eu acho que, neste caso, sim, significa uma tentativa de golpe. Já se falava em impeachment antes das eleições. Trinta dias depois, um partido político encomendou um parecer de um grande jurista de São Paulo de mentalidade muito conservadora. Essa articulação dos partidos de oposição, movidos pela insatisfação e pelo chororô de quem perdeu eleição, a mim tem cheiro de golpe, sim.”
Bem,
se a articulação da oposição tem cheiro de golpe, a entrevista do doutor
Lavenère tem cheiro de parecer encomendado.
O
fato de ele ter assinado o pedido de impeachment não lhe dá especial direito de
falar bobagem. Ou, então, diga para quem está trabalhando.
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