Por
Reinaldo Azevedo, 05/11/2008,
www.veja.com.br.
"Os petistas não reconhecem
os direitos de um sujeito na sua particularidade. Não existem indivíduos, mas
categorias. É uma sindicalização do espírito, de corporativismo anímico".
A campanha a que o PT
recorreu contra o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, indagando se ele
tinha mulher e filhos é expressão da amoralidade de seus promotores. Mas também
é fruto de uma mentalidade que antecede os amorais da hora: nela, o indivíduo
está morto. Voltarei a este ponto. Antes, convido o leitor a um passeio pela
paisagem ideológica que abriga esta narrativa. Na semana passada, em entrevista
a um jornal paulistano, a petista disfarçada de intelectual Maria Victoria
Benevides explicou a reeleição do prefeito do DEM segundo a ótica da patologia
social: para ela, estivesse o eleitor mais bem informado sobre os seus próprios
interesses, e fossem as elites paulistanas menos reacionárias, a eleita teria
sido a petista Marta Suplicy. Para essa senhora, ou os vitoriosos são de seu
partido, ou a democracia está com uma doença regressiva. Algo a estranhar?
Não. A história da esquerda
é a história do esmagamento do indivíduo e do homem que há, com suas
precariedades, em nome do homem a haver, livre de "deformações". Seus
utopistas nunca viram o horror, o massacre e a morte de milhões como empecilhos
para construir esse "novo homem". "Só à esquerda?", logo
indagaria um inconformado. Não. A direita também cometeu crimes hediondos. A
diferença, o que não a perdoa moralmente, é que nunca reivindicou a condição de
um novo humanismo. Em termos um tanto especulativos, pode-se dizer que a
direita reacionária – já que existe a reformista – matou para tentar
reconstruir o passado, e a esquerda revolucionária, dezenas de vezes mais para
construir o futuro. Outra diferença nada ligeira é que o fascismo, felizmente,
não deixou senão defensores residuais e sem importância. Já os epígonos
intelectuais do socialismo homicida, como se nota acima, estão na academia, na
imprensa, nos governos e integram o establishment das democracias, construídas
à sua revelia. Afinal, o regime democrático é obra do liberalismo. "Que
papo mais antigo, Reinaldo! O muro já caiu!" É fato. Mas a amoralidade da
esquerda sobreviveu aos escombros. aquele mesmo aparelho
intelectual que sustentou a sua facinorosa trajetória continua vivo, ainda que
se adapte às circunstâncias de cada país e consiga disfarçar o seu caráter
deletério. A débâcle socialista obrigou os "engenheiros de
gente" a procurar outro lugar onde pôr a sua "luta de classes".
Os esquerdistas desviaram o foco das relações econômicas para a esfera das
relações sociais. De certo modo, inverteu-se a equação clássica segundo a qual,
para ser muito sintético, seria preciso fazer a revolução na economia para
mudar as mentalidades. Incapazes de operar na base econômica decidiram tentar o
contrário: "Primeiro mudamos as mentalidades; o resto vem como conseqüência".
Bem, "o resto" não veio nem virá. O máximo que esse esquerdismo bocó
consegue é tornar o mundo mais xucro. De comum com o seu passado remoto, o
mesmo desprezo pelos indivíduos.
Comecemos a ligar os fios.
Mergulhemos, ainda que com o devido cuidado, na mentalidade do PT, caudatário
desse pensamento que aposta na reengenharia do homem. Uma das vertentes
formadoras do partido são os chamados "movimentos sociais", onde se
incluem as "minorias organizadas", antigamente chamadas de
"coletivos": havia o das mulheres, o dos negros, o dos homossexuais
etc. Hoje, converteram-se em ONGs subordinadas ao partido. Os petistas,
sabemos, não viram mal nenhum em fazer ilações sobre a vida pessoal de Kassab.
Tentaram ainda conferir ao que pretendiam ser uma pecha o caráter de coisa
escusa, sub-reptícia, ilegal.
Por que o partido que um dia
se notabilizou pela defesa dos chamados "direitos dos homossexuais"
atribui tal condição a um adversário, fazendo-o de maneira oblíqua, covarde e
com o óbvio objetivo de desqualificá-lo? Essa gente sabe que, diante do preconceito,
todas as respostas se igualam: negar, ignorar ou confirmar tem peso idêntico. O
que se quer é disparar a máquina do medo ou da repulsa irracionais. Nas
batalhas mediadas por uma ética – e até as guerras têm a sua –, há coisas que
não podem ser feitas. Mas, para tanto, é preciso ter uma ética. Trata-se
daquele conjunto de interdições e permissões que tanto eu como meu adversário
reconheci como aceitáveis e justas. Se esse acordo entre desiguais está
presente até na guerra, isso significa que, sem ele, também não se faz a paz –
e a democracia se torna impossível. A ditadura nada mais é do que um
desequilíbrio de valores: "Eu posso fazer o que ao outro é vedado". O
PT substituiu a ética pela administração das necessidades da hora, pelo presente
eterno. Retomo a questão na conclusão do texto.
Creio ter a resposta para a
pergunta que abre o parágrafo anterior. Os petistas não reconhecem os direitos
de um sujeito na sua particularidade. Aceitam, por exemplo, a homossexualidade,
mas como condição geradora de demandas, o que está longe de ser sinônimo de
respeito ao homossexual na sua especificidade. Assim, o gay, para ser admitido
no mundo dos justos, precisa ser um militante: exposto, "assumido",
porta-voz de uma causa, carregando bandeira. Um negro tem de trazer a
escravidão estampada na alma. Ou negará a si mesmo. Também à mulher cabe se
organizar contra o seu feitor. Não existem indivíduos, mas categorias. É uma
espécie de sindicalização do espírito, de corporativismo anímico. É preciso que
as "minorias" sejam dotadas de um rancor escravo que as torne
dependentes existenciais de seus algozes. O ódio impotente, que tem de
conquistar na marra o que supostamente lhe falta, está na origem de uma nunca
contada história sentimental das esquerdas. Uma das filhas de Karl Marx relata
que o pai lhes ensinava que Cristo era o filho de um carpinteiro pobre
assassinado pelos ricos... Não tinha como dar em boa coisa.
Estaria eu surpreso ou
chocado com a baixaria do PT? Não. Como vêem, considero isso um ponto numa
longa trajetória. E o partido repetirá o procedimento, com conteúdo novo, tão
logo considere necessário. Nessa mesma campanha, os valentes fizeram coisa
ainda pior: acusaram a prefeitura de São Paulo de discriminar negras na hora do
parto. E que fique claro: não me alinho àqueles que acreditam ou defendem que a
política deva ter receio de tratar deste ou daquele tema. Em princípio, todas
as questões são "politizáveis" e podem passar pelo escrutínio
popular. Num país em que a nova aristocracia sindical, ora abraçada ao velho
mandonismo, pretende chamar de vida privada o que não passa de vício público, é
preciso tomar especial cuidado ao estabelecer as justas fronteiras entre o
individual e o coletivo.
Se a amante de um
parlamentar com poder de interferência nos negócios da República tem a pensão
alimentícia paga por uma empreiteira; se uma concessionária de serviço público
faz negócio com o filho de um político com autoridade sobre essa empresa; ou,
ainda, se a vida privada de um homem público influente está em flagrante
contradição com sua pregação, tanto o jornalismo como os adversários desses
"representantes do povo" têm o direito – e o dever – de levar a
questão à arena, à ágora da democracia. Errado é silenciar. Se, no sentido em
que trato, todos os assuntos cabem à política, isso não significa ausência de
medidas.
E qual é a régua? Justamente
a ética, que estabelece as regras, muitas delas não escritas, da convivência
pública entre as diferenças. Não se vendo o PT, no entanto, obrigado a
dispensar ao outro o respeito que exige para si mesmo, também não se sente
comprometido com a sua própria trajetória, rendendo-se à lei da necessidade: "Perca-se
a vergonha, mas não a eleição". Nesse juízo perturbado, o
escrúpulo é uma herança da cultura que deve incomodar apenas as sandálias da
"direita", assim como a coerência é uma cruz que deve pesar
exclusivamente sobre os seus ombros. De um modo muito particular, o PT acerta
neste caso: ter princípios é mesmo algo próprio da direita democrática, tanto
quanto não os ter constitui a verdadeira tradição das esquerdas.
Mas São Paulo disse
"não" à campanha suja. E Maria Victoria Benevides considerou isso uma
coisa de direita. Talvez ela esteja certa.
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