Por Augusto Nunes, 23/01/2016,
www.veja.com.br
Texto de J.R.
Guzzo
A
fotografia que aparece foi tirada durante um encontro de estudantes em
Brasília, em novembro do ano passado, e mostra a presidente da União Brasileira
dos Estudantes Secundaristas, um desses grupos chapa-branca que se apresentam
ao público como “movimento social”, pregando num megafone. A foto diz muito, ou
talvez diga tudo, sobre a situação atual da luta de classes no Brasil. A moça
bonita (aliás, se fosse feia, nenhum fotógrafo iria perder seu tempo com ela,
não é mesmo?) que cavalga esse pobre-diabo é da classe dominante ─ basta olhar
cinco segundos para a figura. O rapaz é da classe dominada ─ o “tipo
brasileiro”, ou “moreno”, desses que se encontram aos milhões na fila do ônibus
ou esperando a bondade de um atendimento na porta do hospital público. Estão
na posição em que sempre estiveram neste nosso Brasil, e que treze anos de
governo popular de esquerda comandado por Lula, Dilma e o PT não mudaram em um
milímetro: ela montada, ele servindo de montaria. Seus mundos não se comunicam
─ depois da manifestação, esgotada a utilidade que o homem do povo teve para a
garota da elite, ela retorna à sua classe, ele volta à sua periferia. Serve de
cavalgadura ─ é essa a sua função, e apenas essa. O que mais poderia mostrar
com tanta clareza quem está por cima e quem está por baixo? Ninguém planejou
para que as coisas ficassem assim, claro. Mas foi assim que ficaram.
A líder
estudantil tecnicamente é de esquerda; seu papel na luta de classes, segundo a
boa teoria, seria servir aos deserdados da terra. Mas na prática o que ela faz
é servir-se do deserdado da foto como o seu burro de carga. Olhe-se de novo
para a cena: poderíamos estar diante de uma gravura de Rugendas, Debret ou
Taunay, que retrataram com tanta exatidão o Brasil de 200 anos atrás, com os
seus senhores e os seus escravos. Ninguém está dizendo aqui que o “movimento
estudantil” é a favor da escravidão, ou coisa parecida, porque obviamente não é
isso que acontece. Mas também não dá para fazer de conta que basta pegar um
megafone e tirar carteirinha de membro dessa ou daquela organização “social”,
“progressista” ou de “esquerda” para emigrar da elite e virar “povo”; não é
assim que funciona. Como mostra a foto, certas coisas não mudam, salvo nas
aparências. O resto é uma monumental conversa fiada.
“No primeiro
dia nós falamos com a… a primeira coisa que nós fizemos foi falar, além de nos
preparar no dia anterior, foi falar com a primeira-ministra da Noruega, que
estava contribuindo para um fundo, para o nosso fundo de florestas, com 650 000
dólares, aliás, desculpa, com 650 milhões. Fiquei modesta. A Alemanha também
tem uma contribuição para o fundo de 100 milhões de dólares ─ no caso da
Alemanha é euros, não é? De euros.”
Nem é
preciso dizer quem falou isso aí ─ ela mesma, claro, com o facho de escuridão que
joga sobre quase tudo o que diz sempre que se dirige ao público sem ler uma
folha de papel. No caso, o conjunto de sons transcrito acima foi emitido
recentemente em Paris, durante uma dessas viagens espetacularmente inúteis que
vive fazendo ao exterior. Mas tanto faz onde foi, ou quando, ou por quê. É a
mesma coisa desde que entrou para o governo, especialmente depois que assumiu a
Presidência ─ suas falas de improviso, nas quais vai empilhando frases sem pé
nem cabeça e empulhando os ouvintes com informações incompreensíveis, num
português que seria reprovado em qualquer prova de primeiro grau, tornaram-se a
grande grife da sua passagem pelo comando da nação. A presidente Dilma Rousseff
não ficará conhecida apenas por falar desse jeito, até porque governa ainda
pior do que fala, mas jamais terá uma biografia séria que não registre com
alarme a seguinte extravagância: entre os anos 2011 e 2018 (possivelmente) da
era cristã o Brasil teve uma presidente da República incapaz de expressar-se no
idioma oficial do país, segundo o artigo 13 da Constituição.
É
possível que Dilma saiba expressar-se corretamente em português, mas não
queira. É possível que queira, mas não saiba. É possível que queira e saiba,
mas não consiga. O fato real é que não se expressa ─ e que o patoá utilizado
por ela, tão volumoso que já rendeu até livro com a coleção das tiradas mais
alucinantes, virou parte inseparável da cena brasileira de hoje. Alguém vai
morrer por causa disso? É pouco provável. Mas dá para prever com razoável
chance de acerto que os observadores do futuro, ao olharem para o Brasil dos
nossos dias, façam a pergunta que se segue: por que os brasileiros de 2016
achavam normal aceitar na Presidência de seu país alguém que apresentava uma
patente disfunção nos circuitos que ligam o cérebro às cordas vocais? É aí que
o pensamento se transforma em palavra; se alguma coisa errada está acontecendo
nessa engrenagem, parece claro que temos um problema, sobretudo quando a
engrenagem em questão está na cabeça da presidente da República. Nossos
descendentes também poderão estranhar que pouca gente, no Brasil de hoje,
parecesse se importar com o cumprimento de uma regra clara: não dá para se
expressar mal e pensar bem. Acharão particularmente curioso, enfim, que o mundo
político discutisse com paixão o impeachment de Dilma sem jamais tocar na
demência dos seus discursos de improviso. (Demência dos discursos, que fique
bem claro; só dos discursos, certo?) Debatia-se a sua deposição, basicamente,
por ter cometido fraude na contabilidade oficial, ou por ter mentido em
excesso, ou ainda por outras razões, ao gosto de cada um. Mas e o sanatório
geral de onde saem às coisas que fala ─ tudo bem aí? É complicado. Não está
previsto na lei, como se sabe, impeachment de presidente por tratar a população
como uma manada de idiotas, para a qual se pode dizer qualquer tipo de
disparate. Uma futura Constituição talvez devesse pensar nisso.
Qual
seria a reação do ex-presidente Lula, do PT e da esquerda nacional se em
janeiro de 2003 alguém dissesse que treze anos depois, e já em seu quarto
governo seguido, hospitais e prontos-socorros do Rio de Janeiro fechariam suas
portas com tapumes de madeira para impedir a entrada da população? Foram cenas
de país africano em tempo de calamidade: às vésperas do Natal, gente
desesperada implorando por atendimento de urgência, macas amontoadas em
corredores, cirurgias canceladas, médicos e enfermeiros sem remédios, ataduras,
luvas, soro, material cirúrgico, anestesia, roupa de cama e, ainda por cima,
sem salários. Nem o inimigo mais desesperado do “governo popular” que então
fazia sua estréia seria capaz de imaginar um desastre desses na segunda maior
cidade do Brasil. E se alguém tivesse imaginado seria logo acusado de
sabotador, golpista, fascista, inimigo do povo, inconformado em ver um operário
chegar pela primeira vez à Presidência da República neste país, etc. etc. Mas
aí está: é exatamente o que acabamos de ver no mundo dos fatos.
Treze
anos depois, é nisso que vieram dar as “políticas de saúde pública” de Lula, de
Dilma Rousseff e do PT. Segundo já confessaram as próprias autoridades da área,
a saúde brasileira está simplesmente em colapso ─ e não só no Rio de Janeiro,
que vai organizar, daqui a seis meses, nada menos que uma Olimpíada. Há
hospitais federais parcialmente paralisados em São Paulo e outras capitais. O
governo vem fracassando, ano após ano, no controle de epidemias da pobreza; em
vez de sair, o Brasil se afunda cada vez mais no Terceiro Mundo em matéria de
saúde pública. Com todo o tempo que já teve para resolver o problema, não
apenas não resolveu nada; também não tem competência, nem energia, para lidar
com desgraças novas. Ainda agora, o país se vê diante de um crescente surto de
microcefalia, doença típica da miséria e da inépcia dos serviços sanitários. Em
suma: o “Estado Forte”, que tanto encanta a presidente e a esquerda brasileira,
não tem esparadrapo para um curativo. É óbvio que alguma coisa, ou tudo, deu
profundamente errado aí.
Para
adicionar insulto à injúria, o governo acha que não tem culpa de nada. No
primeiro grande mistério de 2016, diz que a culpada “é a oposição”, que há
treze anos não manda sequer numa bica de água no mundo federal. Pior: diz que
está sem dinheiro e, sinistramente, alega que a população tem de “escolher”
entre pagar mais impostos ou ficar sem assistência médica ─ e, já que estamos
no assunto, também sem escola, sem serviços, sem obras, sem emprego. A
população brasileira não tem de “escolher” nada. Já pagou, na forma de impostos
que lhe consomem 40% de tudo o que ganha, o atendimento hospitalar mais todas
as obras que não foram feitas e todos os serviços que não foram prestados. Vai
ter de pagar de novo? Dinheiro, como os demais corpos da natureza, não some ─
apenas muda de lugar. No caso, mudou de onde deveria estar para o bolso de
empreiteiras de obras, “prestadoras de serviço”, estrelas da Operação Lava
Jato, vendedores de “sondas”, empresários-companheiros e outros tantos amigos
dos amigos. O que sobrou foi jogado fora pela incompetência.
Eis aí o Brasil das realidades.
Nenhum comentário:
Postar um comentário