Por Augusto Nunes, 30/08/2015,
www.veja.com.br
Texto
de J. R. Guzzo
O Brasil pode estar ganhando muito mais
do que perdeu com a descida da Petrobras aos nove círculos do inferno para onde
foi arrastada durante os três últimos governos da República. Nunca se roubou
tanto da brava gente brasileira, embora se tenha roubado sempre ─ e
provavelmente se continuará roubando enquanto o país, na prática, for
propriedade do “Estado” e obedecer à sua regra número 1, pela qual é
obrigatório, para quem quer produzir alguma coisa, pedir licença a quem não
produz nada.
Mas há sinais concretos de que o
espetacular surto de corrupção dos últimos anos, quando nossos atuais
governantes decidiram transformar o uso privado do patrimônio público em
programa, método e sistema de administração estão oferecendo uma oportunidade
inédita ao Brasil do futuro ─ a de deixá-lo mais resistente do que jamais foi
às epidemias de criminalidade oficial causadas pelos que mandam no governo,
dentro e em volta dele, e que agora chegaram ao seu grau de intensidade máxima.
Essa recompensa será a passagem do país
a uma situação até agora praticamente desconhecida na história brasileira: a de
funcionamento pleno de um estado de direito no território nacional. O trabalho
para isso está sendo feito numa modesta jurisdição local, a de Curitiba, pelo
juiz Sérgio Moro, titular da 13ª Vara da Justiça Federal, pelo Ministério
Público Federal e pela Polícia Federal. Ninguém está dizendo aqui que o Brasil
perdeu pouco, porque a verdade é que perdeu muito. Provavelmente nunca se
saberá ao certo ─ a conta começa num número mínimo de 6 bilhões de reais, estimativa
oficial da própria Petrobras para o prejuízo sofrido com esse redemoinho de
corrupção que a empurrou para o precipício, e vai até cifras não mapeadas pela
aritmética comum.
Mas, por maior que seja a perda, sempre
será apenas dinheiro ─ e a sabedoria popular diz que tudo o que pode ser pago
com dinheiro é barato. Caras, mesmo, são aquelas coisas que o dinheiro não
consegue comprar. Uma das mais preciosas é a segurança trazida pelos regimes em
que o cidadão vive, no dia a dia da vida real, sob o comando da lei. Não é
possível haver civilização se não há estabilidade, e não é possível haver
estabilidade sem um sistema judicial que funcione com clareza, para todos e
durante o tempo inteiro. Onde a aplicação da lei é incerta, não há lei. Onde
não há lei, não pode haver liberdades públicas ou individuais, nem igualdade
entre as pessoas, nem proteção verdadeira aos direitos de ninguém; não pode
haver democracia.
O esforço do juiz Moro no processo do
petrolão, junto com os procuradores federais e os agentes da PF, está colocando
a sociedade brasileira sob o império da lei ─ the rule of Law, como se
diz no direito público dos Estados Unidos e da Inglaterra. Isso não tem preço.
A força que realmente sustenta os procedimentos da Justiça Federal na Operação
Lava-Jato é a obediência permanente à letra da lei por parte dos responsáveis
pelo processo. Não adianta nada buscar a justiça se não há nessa busca o
respeito às leis em vigor no país. Elas são as únicas que existem, e é com elas
que o Poder Judiciário tem de trabalhar; combater a impunidade não autoriza
ninguém a passar por cima do direito de defesa, da obrigação de provar
claramente cada acusação feita e de qualquer regra escrita nos códigos da
Justiça penal.
Agir dentro da lei ─ é o que o
Judiciário federal está fazendo, e é por isso, justamente, que sua conduta está
sendo tão decisiva para o avanço do estado de direito no Brasil de hoje. Os
fatos, aí, são perfeitamente claros. Todas as decisões do juiz Moro, sem
nenhuma exceção, estão sujeitas ao julgamento de tribunais que ficam acima
dele; os advogados dos acusados têm o direito de recorrer a essas autoridades
superiores contra qualquer dos seus despachos, e vêm fazendo isso desde que o
processo começou. Em praticamente todos esses recursos as decisões de Moro
foram confirmadas.
Seu trabalho está sendo vigiado o tempo
todo pelos 27 desembargadores das oito turmas do Tribunal Regional Federal da
4ª Região, com sede em Porto Alegre, mais os 33 ministros do Superior Tribunal
de Justiça, em Brasília, e, no fim da linha, os onze ministros do Supremo
Tribunal Federal. Além disso, ele despacha sob o olhar direto dos onze
procuradores federais e dez delegados da PF, pelo menos, que dão expediente na
Operação Lava-Jato ─ ao todo, contando com ele próprio, um exército de 93
pessoas. O que mais estaria faltando?
O processo do petrolão, na verdade, é o
exato contrário do que têm afirmado desde o começo muitos dos advogados que
lideram a defesa ─ mais, naturalmente, o governo e todo o seu sistema de apoio.
Sua ideia-mãe, com variações aqui e ali, é que Moro, o Ministério Público e a
Polícia Federal estão criando um “regime de exceção” no Brasil, um “estado
policial” que nega o direito de defesa, persegue cidadãos sem culpa formada,
age com crueldade e prepara um golpe para a “volta da ditadura”. Estariam
mancomunados para tirar a liberdade de empreiteiros de obras, diretores da
Petrobras, doleiros, o tesoureiro nacional do PT e quem mais estiver sendo
investigado por corrupção na Justiça Federal do Paraná. Como assim? Ninguém explica,
pois não dá para explicar como seria possível montar uma conspiração secreta
com a participação de quase 100 pessoas sem que ninguém falasse nada.
É incompreensível, também, alegar
arbitrariedade, violência contra os acusados ou descaso com a produção de
provas quando nada menos que 28 cidadãos, todos altamente postados na vida,
concordaram até agora, com a plena assistência de seus advogados, em confessar
suas culpas, devolver dinheiro ganho ilegalmente e denunciar cumplicidades nos
delitos que praticaram. Réus já receberam sentenças das quais não vão apelar.
Mais: a “delação premiada”, que levou os envolvidos a colaborar com a Justiça
para aliviar suas penas, só existe porque foi criada por lei. Não é uma lei da
“ditadura” ou do ex-presidente Fernando Henrique ─ é a Lei 12850, sancionada
em 2013 por ninguém menos que a própria presidente Dilma Rousseff, que ainda na
campanha eleitoral do ano passado a apresentava como uma das suas grandes
realizações e hoje se diz indignada com ela.
Uma discreta informação surgida no
noticiário recente talvez seja a comprovação mais luminosa, pois também é a
mais simples, da mudança real que o avanço do estado de direito está produzindo
no Brasil. O empresário Emílio Odebrecht, segundo a notícia, queixou-se aos ex-presidentes
Lula e Fernando Henrique, em conversas particulares, por não estar conseguindo
fazer nada pela libertação de seu filho Marcelo, acusado de corrupção na
Petrobras e preso há dois meses em Curitiba. Lula e FHC disseram-lhe palavras
de consolo ─ e isso foi tudo que puderam fazer. Não é preciso pensar mais do
que dois minutos para ver que a ação da Justiça está fazendo aparecer um país
que jamais existiu antes por aqui.
A Odebrecht é o quarto maior grupo
empresarial do Brasil; faturou perto de 34 bilhões de dólares em 2014, emprega
cerca de 170 000 pessoas diretamente e influi nos negócios de centenas de
outras empresas. Desde quando um dos empresários mais potentes do Brasil,
íntimo do primeiríssimo escalão do poder, fala com dois ex-presidentes da República
e não consegue tirar o próprio filho da cadeia? Não é assim que este país vem
funcionando há 500 anos. Temos leis que não acabam mais, mas para que servem se
não são aplicadas sempre, por igual e para todo mundo? A Rússia comunista
também tinha belíssimas leis ─ previam até a liberdade de imprensa, o voto
livre e a independência de poderes. E daí? Lei não é justiça.
Só poderá haver esperança de uma
sociedade justa se estiver em funcionamento genuíno um sistema judiciário
independente, previsível e capaz de aplicar a lei sempre da mesma maneira ─ e
em que os donos do poder não possam demitir os juízes que os incomodam. É o que
está acontecendo no petrolão. Marcelo Odebrecht não está preso porque é rico e
preside uma empresa gigante. Está preso porque a Justiça, com apoio em fatos,
investiga quanto ele está devendo ao Código Penal.
O tiroteio disparado contra Sérgio Moro
é uma das mais agressivas campanhas em favor da negação da Justiça que o Brasil
já conheceu. É também a comprovação de quanto à idéia de viver sob o império da
lei é inaceitável para as forças que mandam na vida pública brasileira.
Trata-se do condomínio formado por coronéis da política, que operam nas grandes
capitais e andam de jatinho, mas continuam dentro do seu carro de boi mental de
sempre, por empresas que vivem de fazer negócios com o governo e por toda a
extensa população de parasitas cujo bem-estar material depende, de um jeito ou
de outro, da máquina pública. São representados hoje, melhor do que nunca, pelo
governo do PT, seu aliado, sócio, protetor e protegido ─ e para manterem o
fazendão que chamam de “Estado” estão convencidos de que tudo serve.
Vale, por exemplo, dizer que o combate
à corrupção na Petrobras está fazendo o Brasil perder “1% do PIB”, como
descobriu a presidente Dilma. A Lava-Jato não pode “paralisar” a economia
brasileira, dizem lideranças do PT e do governo ─ por essa maneira de ver as
coisas, a economia só crescerá se a ladroagem estiver liberada. A delação de um
dos acusados, algum tempo atrás, foi vista como uma manobra internacional para
“prejudicar a viagem da presidente aos Estados Unidos”. O ex-presidente Lula
compara o combate judicial à corrupção com a perseguição aos judeus na Alemanha
nazista.
Vale tudo, também, na tentativa
permanente de denunciar o juiz, procuradores e policiais que investigam o
petrolão como delinqüentes dispostos a violar a lei para satisfazer a “opinião
pública”. Personalidades tidas como juristas de elevado saber mostram-se tão
convencidas de suas próprias certezas que não pensam mais direito no que estão
falando. Uma delas, recentemente, sustentou que o juiz Moro é “um cidadão do
sul com volúpia para prender pessoas” ─ e que as confissões dos acusados estão
sendo feitas “sob tortura”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário