O documento de título
oitocentista contra a operação, publicado nesta sexta-feira, ensina uma lição:
aprenda como juntar 1016 palavras para produzir um silêncio estrondoso
Por André Petry, 16/01/2016,
www.veja.com.br
Manifesto acusa o juiz Moro de uma longa lista de
barbaridades, mas não diz quase nada sobre os magistrados dos tribunais
superiores que têm mantido suas decisões de pé
Quem nunca teve a oportunidade de ler uma peça de
defesa escrita por um advogado não pode perder o manifesto que noventa
causídicos publicaram na imprensa na sexta-feira. O manifesto tem oito
parágrafos e um título oitocentista: "Carta aberta em repúdio ao regime de
supressão episódica de direitos e garantias verificado na operação Lava
Jato". É uma lição sobre como driblar certas inconveniências factuais e
juntar 1016 palavras para produzir um silêncio estrondoso.
O manifesto denuncia "violações de regras
mínimas para um justo processo" e lista o que estaria sendo desrespeitado:
presunção de inocência, direito de defesa, garantia da imparcialidade, abuso de
prisão provisória, vazamento seletivo de informações sigilosas, sonegação de
documentos aos acusados, execração pública dos réus e violação de prerrogativas
da advocacia "dentre outros graves vícios". Resumindo, Lava Jato é
"uma espécie de inquisição".
Exemplificando, acusa a imprensa - VEJA em
especial, embora não nomeia a revista - de participar de uma
"estratégia" para desmoralizar os acusados e pressionar os
magistrados a jogar duro contra eles, negando-lhes habeas-corpus e mantendo-os
sob prisão provisória. Acusa o juiz Sergio Moro - igualmente sem nomeá-lo - de
atuar com parcialidade, e termina declarando que, diante de tamanhas violações
legais e constitucionais, "o Estado de Direito está sob ameaça".
A Lava Jato tem provocado controvérsias reais no
meio jurídico e fora dele. Serão justas as longas e numerosas prisões
provisórias de meros suspeitos? Serão válidos acordos de delação feitos por
acusados devastados pela ameaça de prisão? Será papel da imprensa divulgar
informações sigilosas previamente peneiradas por policiais, procuradores,
juízes? Caberá a um juiz o protagonismo de presidir uma investigação e depois
ele mesmo julgá-la? São questões complexas que, num debate honesto, fazem todo
o sentido.
O manifesto, porém, dribla todas. Acusa a imprensa
de publicar fotografias e informações sigilosas, mas nada diz sobre as
autoridades públicas que as vazam. A imprensa tem o dever de publicar o que
julga de interesse público. Podem-se questionar seus critérios editoriais, mas
é indiscutível que seu papel é trazer informações à luz do sol, e não o
contrário. Cabe às autoridades públicas - policiais, servidores da Justiça,
delegados, procuradores - garantir sigilo ao que é sigiloso. O que o manifesto
diz sobre isso? Silêncio.
Mais: acusa a imprensa de pressionar os magistrados
publicamente, mas nada diz sobre os magistrados que supostamente se curvam à
pressão. Na democracia, a pressão pública não é apenas livre; sendo dentro da
lei, é bem-vinda. A imprensa pressiona. Os bancos pressionam. Os agricultores
pressionam. Os estudantes pressionam. Os atores, os padres, os advogados
pressionam. Até os magistrados pressionam, alguns, inclusive, com a verve dos
glossolálicos. A questão é: as autoridades que são alvo das pressões estão
descumprindo seu dever, violando suas consciências ou a lei? O que o manifesto
diz sobre juízes que se acovardam diante das pressões? Silêncio.
Mais ainda: acusa o juiz Moro de uma longa lista de
barbaridades, mas não diz quase nada sobre os magistrados dos tribunais
superiores que têm mantido suas decisões de pé. Moro é um juiz de primeira
instância. Suas decisões são escrutinadas pelos tribunais superiores, que podem
mantê-las, se entenderem que estão em conformidade com a lei, ou derrubá-las,
caso julguem que estão em desacordo com a lei. O que diz o manifesto sobre os
magistrados do TRF, do STJ e do STF que vêm, sistematicamente, referendando
quase tudo que Moro decide? Silêncio.
Com tanto drible, fica parecendo que os advogados
nada falam das autoridades públicas que vazam fotos, de juízes que sucumbem a
pressões ou de magistrados que concordam com Moro porque não lhes interessa,
como se estivessem apenas defendendo a si mesmos e a seus clientes presos.
Quando os juízes decidem contra os acusados da Lava Jato, o manifesto denuncia
que são vítimas da pressão pública, a que chama de "prática absurda".
Quando os juízes decidem a favor dos acusados, o manifesto diz que agem "de
acordo com seus convencimentos e consciências".
Entre os signatários, está Antônio Carlos de
Almeida Castro, o Kakay, que defende onze acusados na Lava Jato, e Nabor
Bulhões, advogado do empreiteiro Marcelo Odebrecht, há meses preso em Curitiba.
Há outros menos estrelados, mas igualmente pagos para defender acusados da Lava
Jato. Mesmo que o manifesto tenha sido concebido em causa própria, nada haveria
de ilegítimo. Advogados têm todo o direito de vir a público defender seus
clientes e sua profissão. Só seria bom que dissessem isso. Ou que ao menos
informassem o público, num aposto qualquer, que entre os signatários há
defensores de acusados da Lava Jato. Seria mais transparente.
Ou que evitassem cobrir-se do manto solene da
defesa da democracia e do império da lei. Ou que, pelo menos, falassem de uma
ameaça real ao Estado de Direito. Ela se materializa nos 230 000 brasileiros
presos sem julgamento. Eles representam 32% da massa carcerária no país. Estão
em prisão provisória, são na maioria pretos e pobres. Só na Bahia de Marcelo
Odebrecht, eles respondem por 68% do total de presos. É um escândalo de
proporções mundiais, mas não mereceu ainda uma carta aberta de advogados
preocupados com o Estado de Direito.
Leia a íntegra do
manifesto:
Carta aberta em repúdio ao regime de superação
episódica de direitos e garantias verificado na Operação Lava Jato
No plano do desrespeito a direitos e garantias
fundamentais dos acusados, a Lava Jato já ocupa um lugar de destaque na
história do país. Nunca houve um caso penal em que as violações às regras
mínimas para um justo processo estejam ocorrendo em relação a um número tão
grande de réus e de forma tão sistemática. O menoscabo à presunção de
inocência, ao direito de defesa, à garantia da imparcialidade da jurisdição e
ao princípio do juiz natural, o desvirtuamento do uso da prisão provisória, o
vazamento seletivo de documentos e informações sigilosas, a sonegação de
documentos às defesas dos acusados, a execração pública dos réus e a violação
às prerrogativas da advocacia, dentre outros graves vícios, estão se
consolidando como marca da Lava Jato, com conseqüências nefastas para o
presente e o futuro da justiça criminal brasileira. O que se tem visto nos
últimos tempos é uma espécie de inquisição (ou neo-inquisição), em que já se
sabe, antes mesmo de começarem os processos, qual será o seu resultado,
servindo as etapas processuais que se seguem entre a denúncia e a sentença
apenas para cumprir 'indesejáveis' formalidades.
Nesta última semana, a reportagem de capa de uma
das revistas semanais brasileiras não deixa dúvida quanto à gravidade do que aqui
se passa. Numa atitude inconstitucional, ignominiosa e tipicamente
sensacionalista, fotografias de alguns dos réus (extraídas indevidamente de
seus prontuários na Unidade Prisional em que aguardam julgamento) foram
estampadas de forma vil e espetaculosa, com o claro intento de promover-lhes o
enxovalhamento e instigar a execração pública. Trata-se, sem dúvida, de mais
uma manifestação da estratégia de uso irresponsável e inconseqüente da mídia,
não para informar, como deveria ser, mas para prejudicar o direito de defesa,
criando uma imagem desfavorável dos acusados em prejuízo da presunção da
inocência e da imparcialidade que haveria de imperar em seus julgamentos.
Ainda que parcela significativa da população não se
dê conta disso, esta estratégia de massacre midiático passou a fazer parte de
um verdadeiro plano de comunicação, desenvolvido em conjunto e em paralelo às
acusações formais, e que tem por espúrios objetivos incutir na coletividade a
crença de que os acusados são culpados (mesmo antes de eles serem julgados) e
pressionar instâncias do Poder Judiciário a manter injustas e desnecessárias
medidas restritivas de direitos e prisões provisórias, engrenagem fundamental
do programa de coerção estatal à celebração de acordos de delação premiada.
Esta é uma prática absurda e que não pode ser
tolerada numa sociedade que se pretenda democrática, sendo preciso reagir e
denunciar tudo isso, dando vazão ao sentimento de indignação que toma conta de
quem tem testemunhado esse conjunto de acontecimentos. A operação Lava Jato se
transformou numa Justiça à parte. Uma especiosa Justiça que se orienta pela
tônica de que os fins justificam os meios, o que representa um retrocesso
histórico de vários séculos, com a supressão de garantias e direitos duramente
conquistados, sem os quais o que sobra é um simulacro de processo; enfim, uma
tentativa de justiçamento, como não se via nem mesmo na época da ditadura.
Magistrados das altas Cortes do país estão sendo
atacados ou colocados sob suspeita para não decidirem favoravelmente aos
acusados em recursos e habeas corpus ou porque decidiram ou votaram (de acordo
com seus convencimentos e consciências) pelo restabelecimento da liberdade de
acusados no âmbito da Operação Lava Jato, a ponto de se ter suscitado, em
desagravo, a manifestação de apoio e solidariedade de entidades associativas de
juízes contra esses abusos, preocupadas em garantir a higidez da jurisdição.
Isto é gravíssimo e, além de representar uma tentativa de supressão da
independência judicial, revela que aos acusados não está sendo assegurado o
direito a um justo processo.
É de todo inaceitável, numa Justiça que se pretenda
democrática, que a prisão provisória (ou a ameaça de sua implementação) seja
indisfarçavelmente utilizada para forçar a celebração de acordos de delação
premiada, como, aliás, já defenderam publicamente alguns Procuradores que atuam
no caso. Num dia os réus estão encarcerados por força de decisões que afirmam a
imprescindibilidade de suas prisões, dado que suas liberdades representariam
gravíssimo risco à ordem pública; no dia seguinte, fazem acordo de delação
premiada e são postos em liberdade, como se num passe de mágica toda essa
imprescindibilidade da prisão desaparecesse. No mínimo, a prática evidencia os
quão artificiais e puramente retóricos são os fundamentos utilizados nos
decretos de prisão. É grave o atentado à Constituição e ao Estado de Direito e
é inadmissível que o Poder Judiciário não se oponha a esse artifício.
É inconcebível que os processos sejam conduzidos
por magistrado que atua com parcialidade, comportando-se de maneira mais
acusadora do que a própria acusação. Não há processo justo quando o juiz da
causa já externa seu convencimento acerca da culpabilidade dos réus em decretos
de prisão expedidos antes ainda do início das ações penais. Ademais, a
sobreposição de decretos de prisão (para embaraçar o exame de legalidade pelas
Cortes Superiores e, conseqüentemente, para dificultar a soltura dos réus) e
mesmo à resistência ou insurgência de um magistrado quanto ao cumprimento de decisões
de outras instâncias, igualmente revelam uma atuação judicial arbitrária e
absolutista, de todo incompatível com o papel que se espera ver desempenhado
por um juiz, na vigência de um Estado de Direito.
Por tudo isso, os advogados, professores, juristas
e integrantes da comunidade jurídica que subscrevem esta carta vêm manifestar
publicamente indignação e repúdio ao regime de supressão episódica de direitos
e garantias que está contaminando o sistema de justiça do país. Não podemos nos
calar diante do que vem acontecendo neste caso. É fundamental que nos
insurjamos contra estes abusos. O Estado de Direito está sob ameaça e a atuação
do Poder Judiciário não pode ser influenciada pela publicidade opressiva que
tem sido lançada em desfavor dos acusados e que lhes retira, como conseqüência,
o direito a um julgamento justo e imparcial - direito inalienável de todo e
qualquer cidadão e base fundamental da democracia. Urge uma postura rigorosa de
respeito e observância às leis e à Constituição brasileira, remanescendo a
esperança de que o Poder Judiciário não coadunará com a reiteração dessas
violações.
Nota
do blog coiote:
Espero que magistrados
do TRF, do STJ e do STF não cedam ao grito e pressão de signatários que
recorrem ao expediente de desconstruir e desqualificar magistrados e tribunais
em defesa de seus clientes. Pois até o presente momento nenhum deles lançou
manifesto ou saiu em defesa do cidadão que roubou uma melancia e do comprador. Foram
presos e enquadrados de acordo com a lei: um como ladrão e o outro como
receptor. É um peso e duas medias, ladrão do colarinho-branco paga uma fortuna
para seus defensores; enquanto o ladrão da melancia e o receptor, nem mesmo
contam com a defensoria pública são presos sem apelação. Olhando pela lógica
todos praticaram um crime, mas na visão do cidadão e da sociedade quem causou
maior prejuízo; aqueles envolvidos no roubo da melancia ou aqueles arrolados na
operação lava-jato. Com toda a certeza o prejuízo maior e de monta, assim como
suas punições deva ser mais rigorosa, pois toda a sociedade foi prejudica na
área da saúde, educação e segurança isso sem se aprofundar em outras áreas da
economia que estagnou pela falta de recursos que foram roubados.
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