Por Augusto Nunes, 31/12/2015,
www.veja.com.br
Texto de Carlos Alberto Sardenberg
publicado no Globo
Pela Constituição, todo brasileiro tem o sagrado direito de ser atendido
de graça nos hospitais, ambulatórios e emergências do SUS, Sistema Único de
Saúde, quaisquer que sejam: sua doença, crônica ou aguda, simples ou grave; sua
idade; sua renda; sua situação social e econômica (empregado, desempregado,
patrão, rico ou pobre); e seu status civil (em liberdade, preso, em dia ou não
com as Receitas).
Diz a Constituição ainda que é dever sagrado do Estado atender a esse
direito universal.
A realidade e o simples bom senso dizem que não existe a menor
possibilidade de se cumprir essa letra da Constituição. Nunca haverá dinheiro
para isso. Nem o Estado será capaz de montar um sistema eficiente desse tamanho
e alcance.
A solução, praticada em um sem-número de países, exige uma seleção e uma
lista. A seleção em quatro níveis: pessoas que serão sempre atendidas no SUS;
as que serão atendidas prioritariamente; aquelas que serão recebidas no SUS
apenas se tiver vaga sobrando; e, finalmente, as pessoas que não têm esse direito,
a menos que paguem a preços de mercado.
A regra, claro, deve ir do mais pobre ao mais rico.
A lista será de medicamentos e procedimentos. Uma primeira grande
divisão: o que será de graça e o que será pago. Não faz sentido o Estado ficar
sem dinheiro para vacinas enquanto paga uma cirurgia cardíaca no Hospital Johns
Hopkins, isso por ordem judicial.
Essas sentenças se baseiam na regra tão exaltada: a saúde é direito de
todos e dever do Estado. Alguns interpretam que o governo só tem a obrigação de
prestar esse atendimento no SUS. Mas muitos juízes entendem que, se o
tratamento não está disponível no Sistema Único, deve ser prestado onde for
possível, tudo por conta do Erário.
De todo modo, é evidente que se precisa alterar a Constituição para
fazer a lista do pago e do gratuito.
Isso vale para os medicamentos: os básicos são de graça; os
intermediários terão um preço subsidiado; os demais, preço de mercado. A lista,
claro, deve ser específica e alterada regularmente.
Há ainda uma outra lista, mais geral. É preciso especificar quais
procedimentos o SUS faz e quais não vão fazer. E assim chegamos ao ponto mais
dramático desta história. Em diversos países com bom sistema de proteção
social, existe a seguinte regra: pacientes idosos, com, por exemplo, um AVC grave,
de baixo prognóstico, não vai para UTI. Leitores me desculpem, mas o argumento
é clássico: a relação custo/benefício é desfavorável.
Sim, posso ouvir a indignação. Dirão que esse comentário prova a
brutalidade do sistema de seleção e listas. E a vantagem moral do atendimento
universal.
Falso, inteiramente falso. A seleção é praticada diariamente. Comece
pelo coitado do plantonista no pronto-socorro, em geral um residente. A sala de
espera está lotada e só tem uma vaga na UTI. Quem vai? Não são raros os casos
de jovens médicos que entram em crise psicológica ao terem que decidir entre
quem vai viver e quem vai morrer - pois essa é a decisão nua e crua.
Seriam desumanos se não sofressem com isso. Mas é mais desumano ainda
colocar essa responsabilidade médica e ética nas mãos de rapazes e moças na
casa dos 25 anos.
Seleção e listas elaboradas com critérios médicos, sociais e econômicos
seriam infinitamente mais justas e eficientes.
Outra seleção, especialmente pelo interior do país, é feita por
compadrio e política. Por que muitos políticos gostam de nomear diretores de
hospitais, um cargo tão difícil? Porque gastam dinheiro e podem escolher os que
serão atendidos na frente. Parentes e amigos do pessoal que controla os
hospitais também furam a fila.
E há uma última e definitiva seleção, essa ocorrida na crise do Rio.
Hospitais simplesmente fecham as portas, não entra ninguém. As farmácias
declaram que não têm mais remédios — e pronto.
Cadê a Constituição?
Resumo geral: a Constituição promete o que o Estado não pode entregar. É
preciso mudar a Carta para que os governos possam atender bem aqueles que
precisam e não podem pagar. E abrir espaço, amplo espaço e facilidades, para a
chamada saúde complementar — a privada, aquela dos planos e seguros de saúde e
dos hospitais particulares — que se tornou mais que essencial.
Os governos Lula e Dilma têm imposto regras e limitações a essa saúde
complementar, muito além do que seria uma regulação correta. Também é mais que
um desvio antiprivatizante. É uma reação tipo consciência culpada. Os 45
milhões de brasileiros que pagam planos e seguros privados estão gritando que o
SUS é um falso universal. Estão mostrando a incapacidade dos governos de
colocá-lo de pé.
Em vez de tentar reorganizar o SUS, com uma reforma na Constituição,
admitindo as limitações, essa gente resolve pressionar o sistema privado. Nem
conserta um e ainda estraga o outro.
A última:
governadores estão querendo cobrar dos planos de saúde quando o SUS atende
segurado. É inconstitucional: todo brasileiro, tenha ou não seguro privado, tem
de ser atendido no SUS. Os que têm seguro pagam duas vezes: os impostos para o
SUS, as mensalidades para o plano. Se este tiver que pagar ao SUS, obviamente
terá o custo aumentado e precisará cobrar de seus clientes — que estarão
pagando uma terceira vez.
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