O blog detalha o passo-a-passo da
malandragem
Por Felipe Moura Brasil, 23/12/2015,
www.veja.com.br
Primeiro, vejamos a análise sintética e
“zuera” do caso:
Pois é.
Agora vejamos a análise extensa
da decisão do STF de dar ao Senado o poder de impedir a instauração do processo
de impeachment.
O ministro Dias
Toffoli, em sessão memorável no dia 17, acompanhou o relator Luiz Edson Fachin
sobre o tema, contrariando o voto de Luís Roberto Barroso.
Toffoli leu e
comentou, da forma como transcrevo após o vídeo abaixo, o dispositivo do artigo
51:
“‘Compete
privativamente à Câmara dos Deputados (inciso) 1: autorizar por 2/3 de seus
membros a instauração de um processo contra o presidente e o vice-presidente da
República e os ministros de Estado’. Então [se fala em] ‘autorizar por 2/3 o
processo’. Ele já autoriza o processo. Tecnicamente, até o recebimento da
denúncia, não existe o processo. Tecnicamente falando [Toffoli repete devagar],
até o recebimento da denúncia, não existe o processo.
Vou à gramática e à
literalidade do dispositivo e daí iniciar os fundamentos do meu voto [para
mostrar] por que eu acompanho o do ministro Fachin. Se autoriza o processo, é
porque processo já existe. Passa a existir com a deliberação da Câmara dos
Deputados por 2/3. Por sua vez, o (artigo) 52: ‘compete privativamente ao
Senado Federal, inciso 1: processar e julgar’. Não é analisar a instauração ou
o recebimento de uma denúncia. É processar. Ele processa o quê? O que já
existe! Porque veja: no inciso 1 do (artigo) 51 já se fala em processar. Já se
fala que processo existe!”
Exato.
Se existisse a
possibilidade de o Senado impedir a instauração do processo, o artigo 51
teria de dizer que compete privativamente à Câmara dos Deputados
autorizar (ao Senado) A DECISÃO DE INSTAURAR OU NÃO o processo.
Não é o que o
artigo diz em português, embora em barrosês ele possa dizer qualquer
coisa, de acordo com a conveniência.
Em outro momento da
sessão, Toffoli pediu um “aparte ao aparte” de Celso de Mello
e fez questão de lembrar o artigo 86, absolutamente ignorado no voto
de Barroso, como mostrarei adiante.
Relembro o texto
exato do artigo 86 e do polêmico inciso 2, antes de transcrever o comentário de
Toffoli:
Art. 86. Admitida a
acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos
Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo
Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal,
nos crimes de responsabilidade.
§ 1º O Presidente
ficará suspenso de suas funções:
II – nos crimes de
responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
“Na medida em que a
Câmara autoriza o processo de 2/3… [Reformulando:] O artigo 86 para
mim é muito claro. [Lendo]: Autorizado por 2/3… será submetido a julgamento! E
o inciso 2 do parágrafo primeiro: o presidente ficará suspenso nos crimes de responsabilidade
após a instauração. O verbo é um comando: instaurar. Autorizado, o Senado TEM
QUE instaurar. Não há um outro juízo prévio de admissibilidade. E por que é
distinto, ministro Celso – por isso que eu fiz o
aparte – da questão relativa ao recebimento da ação penal nos crimes
comuns [quando cometidos pelo presidente da República]? Porque é outro Poder em
primeiro lugar. E porque o juízo aqui não é político. O juízo aqui é
técnico-jurídico. [Repete:] O juízo aqui é técnico-jurídico.
Nas ações penais nós
estamos diante de um processo complexo em que o juízo político [da Câmara]
autoriza ao poder Judiciário [no caso, o próprio STF], que é um outro Poder,
[a] dar andamento à ação penal e aqui nós vamos analisar tecnicamente, ministro
Teori, se esta ação penal pode ser recebida ou não. São instâncias diferentes,
poderes diferentes. No juízo político que se dá todo ele dentro do Congresso
Nacional [nos casos de crime de responsabilidade do (a) presidente], ministro Falem,
e penso que o voto de Vossa Excelência está correto no ponto, uma vez
autorizado na Câmara o processamento, o Senado Federal está vinculado a
instaurar o processo. Depois ele vai julgar. Pode até ‘arquivar’. Mas eu penso
que não cabe fazer a comparação com a ação penal. São coisas totalmente diferentes.”
No fim
desta análise, ademais certeira, Toffoli cometeu um ligeiro descuido –
absolutamente natural em exposição oral – ao dizer que o Senado “pode
até arquivar” o processo. Embora a exposição do ministro e sobretudo as frases
imediatamente anteriores deixem evidente que ele se refere
ao poder de absolver o presidente somente no julgamento do processo já
estabelecido, o coleguinha Marco Aurélio Mello, por incapacidade de
captar nuances e/ou pura desonestidade intelectual, aproveitou para
gritar “Pode até arquivar!”, como quem grita: “arrá! te peguei! não
falei?”. Patético.
Em seguida, Celso
de Mello gaguejou, teatralizou, desconversou, apelou para o mote da
“matéria de tamanha gravidade”, fez analogias estapafúrdias em vez de se
ater à literalidade do que está escrito e analisar a argumentação de
Toffoli.
Marco Aurélio Mello
ainda interferiu para dizer, com a mesma arrogância, que cabe ao Senado
não apenas julgar, mas processar, como se isto fosse assim uma expressão
autoprobante que refutasse qualquer argumento anterior.
O fato é que o
artigo 86 impõe que o presidente “será submetido a julgamento”, coisa que não pode
acontecer na prática se o recebimento da denúncia é recusado pelo Senado,
como decidiram ser possível os membros de Barrosolândia.
O ex-ministro Ayres
Britto também os contestou no Globo:
“Não cabe ao Senado
emitir um segundo juízo de admissibilidade, cabe ao Senado julgar a acusação,
como procedente ou improcedente. Admitir a acusação é uma coisa, julgar é
outra.”
Britto ainda disse
ao jornal que o Senado não é “casa revisora da Câmara” no caso de impeachment,
porque não se trata de processo legislativo. Exato.
Vejamos agora o
voto escrito de Barroso sobre este item (com grifos meus):
“1.1. Apresentada
denúncia contra o Presidente da República por crime de responsabilidade,
compete à Câmara dos Deputados autorizar a instauração de processo (art. 51, I,
da CF/1988). A Câmara exerce, assim, um juízo eminentemente político sobre os
fatos narrados, que constitui condição para o prosseguimento denúncia. Ao
Senado compete, privativamente, “processar e julgar” o Presidente (art. 52,
I), locução que abrange a realização de um juízo inicial de instauração
ou não do processo, isto é, de recebimento ou não da denúncia autorizada pela
Câmara.”
A locução não
abrange “a realização de um juízo inicial de instauração ou não do processo,
isto é, de recebimento ou não da denúncia” coisíssima nenhuma. Isto não está
escrito nas leis em jogo.
Barroso optou
por depreender da palavra “processar” do artigo 52 algo que ela não
necessariamente implica, em vez de se ater à literalidade do artigo
86 que impõe a submissão do presidente ao julgamento. É uma
escolha política, não jurídica.
“1.2. Há três ordens
de argumentos que justificam esse entendimento. Em primeiro lugar, esta é a
única interpretação possível à luz da Constituição de 1988, por qualquer
enfoque que se dê: literal, histórico, lógico ou sistemático.”
Em primeiro lugar,
isto é puro trololó.
Agora vamos à
questão mais delicada, que trata do passado igualmente obscuro do STF:
“Em segundo lugar, é a
interpretação que foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal em 1992, quando
atuou no impeachment do então Presidente Fernando Collor de Mello, de modo que
a segurança jurídica reforça a sua reiteração pela Corte na presente ADPF.”
Como mostrei
aqui, Collor entrou com vários mandados de segurança no STF contra o
rito estabelecido pelo então presidente da Câmara dos Deputados,
Ibsen Pinheiro, alegando que não foram cumpridas as normas legais e
regimentais, mas a única coisa que conseguiu foi ampliar o prazo da
defesa, de cinco para dez sessões.
Em relação ao mandado de segurança 21.564, os ministros do
Supremo de 23 anos atrás, de fato, decidiram, entre outras coisas, dar ao
Senado, naquela ocasião, o poder de recusar o recebimento da
denúncia – que, como todos sabiam, não seria mesmo
recusada, fator que pode ter exercido influência sobre o voto dos
ministros, ao qual ninguém deu bola.
(Para se ter uma idéia,
em cerca de apenas 36 horas, uma comissão do Senado foi formada,
elaborou e aprovou o parecer da Câmara sobre o impeachment de Collor e o
encaminhou ao plenário. Mais detalhes do rito sumário: AQUI.)
Dizia o acórdão:
“No procedimento de
admissibilidade da denúncia, a Câmara dos Deputados profere juízo político.
Deve ser concedido ao acusado prazo para defesa, defesa que decorre do
princípio inscrito no art. 5º, LV, da Constituição, observadas, entretanto, as
limitações do fato de a acusação somente materializar-se com a instauração do
processo, no Senado. Neste, é que a denúncia será recebida, ou não,
dado que, na Câmara ocorre, apenas, a admissibilidade da acusação, a partir
da edição de um juízo político, em que a Câmara verificará se a acusação é
consistente, se tem ela base em alegações e fundamentos plausíveis, ou se a
notícia do fato reprovável tem razoável procedência, não sendo a acusação
simplesmente fruto de quizílias ou desavenças políticas. Por isso, será na
esfera institucional do Senado, que processa e julga o Presidente da República,
nos crimes de responsabilidade, que este poderá promover as indagações
probatórias admissíveis.”
Pois é. Lamentável.
Mas voltemos ao voto de Barroso antes de comentar:
“E, em terceiro e
último lugar, trata-se de entendimento que, mesmo não tendo sido proferido pelo
STF com força vinculante e erga omnes, foi, em alguma medida, incorporado à
ordem jurídica brasileira.”
Explico: decisões
sobre mandado de segurança, como foi a do STF no caso Collor, não tem “força
vinculante e erga omnes” para servir de regra a outros casos que não aquele
mesmo, daquela ocasião. Ela é nada mais, portanto, que um precedente
isolado de 23 anos atrás, decidido por uma Corte cuja composição era quase
inteiramente diferente da atual.
O STF de hoje
poderia contrariá-la sem o menor problema, como não é incomum em outros
casos de precedente único.
O papo de que
aquilo “foi, em alguma medida, incorporado à ordem jurídica brasileira” é puro
trololó de Barroso, já que não houve qualquer outro impeachment desde então e a
ordem jurídica brasileira nunca mais precisou pensar no assunto.
“Dessa forma,
modificá-lo, estando em curso denúncia contra a Presidente da República,
representaria uma violação ainda mais grave à segurança jurídica, que afetaria
a própria exigência democrática de definição prévia das regras do jogo
político.”
O trololó de
Barroso soa convincente a mentes inertes, mas é puro trololó mesmo. Violação
grave é a que Barroso faz com a Constituição. Modificar um antigo
entendimento sem força vinculante não viola coisa alguma, como ele próprio
subentendeu na frase anterior – mas a capacidade de Barroso
de se desmentir em duas linhas é mesmo impressionante.
O que afeta “a
própria exigência democrática de definição prévia das regras do jogo político”
é o desrespeito às leis.
É a indiferença ao
artigo 86. É a facilidade com que um ministro do Supremo quer copiar
e colar uma decisão isolada de 23 anos atrás, tomada durante um caso
inédito na história do país, sem analisar direito suas bases legais.
Copiar e colar é
coisa do filho de Lula. Não deveria ser de ministros do Supremo, ainda que
indicados por Lula também.
O STF de 23 anos
atrás errou, talvez por saber que a decisão nada mudaria no resultado do
impeachment. O STF atual também errou, talvez justamente por saber que a
decisão pode mudar o impeachment dessa vez.
Dois erros não
fazem um acerto – e hoje o Brasil e a língua portuguesa pagam caro
pelo primeiro.