Uma juíza vendeu sentença a um
traficante. Outra manteve presa ilegalmente uma menina de 15 anos, que foi
brutalmente torturada pelos demais presos. Que punição receberam?
Por Victor
Irajá, 26/11/2016,
www.veja.com.br
Texto de J.R. Guzzo
O caso da juíza Olga Regina de Souza Santiago, do
Tribunal de Justiça da Bahia, é de dar medo em qualquer brasileiro que imagina
estar sob a proteção da lei. A juíza é a personagem central de uma história de
negação absoluta da justiça — não se trata de injustiça, exatamente, mas de
recusa do Estado em submeter um de seus agentes às leis que valem para o resto
da população, prática que costuma ser encontrada apenas nos países mais
totalitários do mundo. O que houve? Houve que a doutora Olga, em pleno exercício
de sua função, recebeu dinheiro de um traficante de drogas colombiano como
pagamento de propina para deixá-lo fora da cadeia — mas não foi, nem será
punida por isso. A juíza vinha sendo investigada desde o distante 2007; agora,
após quase dez anos de “processo disciplinar” e com base em todas as provas
possíveis, de gravações de conversas a comprovantes de transferência bancária,
o Conselho Nacional de Justiça declarou, enfim, que ela é culpada de corrupção
passiva e outros crimes — e como única punição para isso deve se aposentar, com
vencimentos integrais. O apavorante é que não houve nenhum favor especial para
a doutora Olga, longe disso; apenas se aplicou o que a Justiça brasileira,
desde 2005, considera ser a lei. É ou não para assustar?
Vamos falar as coisas como elas são: uma criança de
7 anos, ao ouvir uma história como essa, sabe que o final está errado. Como a
Justiça pode decidir que alguém cometeu um crime e, exatamente ao mesmo tempo,
não mandar para a cadeia quem praticou o crime? Por mais respeito que se tenha
pelos argumentos que tentam explicar tecnicamente a situação, sobretudo quando
apresentados pelos maiores cérebros jurídicos do país, está acima da moral
comum entender que possa haver algo correto na recusa de aplicar as leis criminais
a um cidadão pelo simples fato de que ele é um juiz de direito. Pois foi
precisamente isso que aconteceu. Qualquer outra pessoa, tendo feito o que a
juíza Olga fez, seria condenada a até doze anos de prisão, pena agravada de um
terço, pelo artigo 317 do Código Penal brasileiro; mas o máximo de castigo que
se aplica a ela é que, sendo criminosa, deixe de ser juíza ao mesmo tempo. E
mais: continuará recebendo o salário inteiro, pelo resto da vida (no seu caso,
não se sabe exatamente qual será o custo disso para o contribuinte, que não
cometeu crime algum, mas pouco não vai ser; já podem ir contando com uns 40 000
reais por mês, pelo menos). O pior de tudo é que não se trata de uma exceção;
essa é a regra, e, se a regra é essa, está claro que o aparelho da Justiça
brasileira parou de funcionar como um sistema lógico. Não pode existir lógica
quando o CNJ, o órgão de controle mais elevado do Poder Judiciário, aceita
tomar decisões dementes. O resto, para 99% dos seres humanos normais, é pura
tapeação — de novo, com todo o respeito.
Quantos magistrados brasileiros estariam dispostos
a admitir que existe alguma coisa insuportavelmente errada num sistema em que
acontecem fatos como esse? O que temos aqui é uma tragédia permanente. Quase um
mês antes da decisão sobre Olga Santiago, o mesmo CNJ resolveu que outra juíza,
Clarice Maria de Andrade, do Pará, deve ficar dois anos afastada das funções;
por ter se recusado, a atender também em 2007, a um pedido para retirar de uma
cela do interior do estado, onde estava presa ilegalmente, uma adolescente com
15 anos de idade. Durante mais de vinte dias, a menina foi brutalmente torturada pelos demais presos, até, enfim,
ser retirada dali — e, por causa disso, a juíza Clarice recebeu a aposentadoria
compulsória em 2010. Achou que era uma injustiça. Recorreu da decisão, foi
desculpada pelo Supremo Tribunal Federal e agora recebe do CNJ a determinação
de ficar afastada por dois anos — ou seja, nem aposentada ela acabou sendo. Mas
ainda assim não está bom: a doutora Clarice vai recorrer da decisão, pois não
aceita nem mesmo esse curto afastamento do cargo. A Associação dos Magistrados
Brasileiros manifestou-se publicamente a seu favor. É essa a realidade.
Simplesmente não há, para os juízes, sentença contrária, pois mesmo quando são
condenados a decisão, na prática, é a favor - e ainda assim eles recorrem. O
balanço final é um horror. De 2005 para cá, o CNJ examinou 100 casos de
magistrados e todo tipo de acusação: corrupção, principalmente, sob a forma de
venda de sentenças, mas também homicídio qualificado, extorsão, peculato, abuso
sexual, e por aí afora. Cerca de 30% dos casos acabaram em absolvição; nos
restantes, a punição mais grave foi à aposentadoria compulsória ou, então, a
aplicação de penas como “disponibilidade do cargo”, “censura”, ou
“advertência”. Há um ou outro caso, raríssimo, de prisão, quando o processo
corre fora do nível administrativo — e isso é tudo. O contribuinte gasta
dezenas de milhões com essas aposentadorias. Não há um cálculo exato de quanto,
mas é caro — em nenhum estado brasileiro a média salarial dos magistrados é
inferior a 30 000 reais por mês, e nos estados que pagam mais ela passa dos 50
000 mensais. É só fazer as contas.
É aí, nos ganhos dos juízes — além de procuradores
e promotores de Justiça, que está outra aberração em estado integral. A
Justiça brasileira gasta cerca de 80 bilhões de reais por ano, 90% dos quais
vão direto para a folha de pagamento, que, pelas últimas contas oficiais,
sustenta mais de 450 000 funcionários. A qualidade do serviço que presta é bem
conhecida por todos. O gasto, porém, é um dos maiores do planeta. Cada um dos
17 500 juízes brasileiros custa em média 46 000 reais por mês, ou mais de meio
milhão por ano — em que outra atividade o custo médio do trabalho chega a
alturas parecidas? Para os desembargadores à frente de tribunais de Justiça,
essa média passa dos 60 000 por mês, e ainda assim estamos longe do pior. É
comum, nas Justiças estaduais e na federal, salários mensais de 100 000, ou
mais — o senador Renan Calheiros, que quer examinar melhor o assunto, cita muito
o valor de 170 000, e há casos comprovados de 200 000 ou mais. Como pode dar
certo uma coisa dessas? Nossos juízes, que se dizem cada vez mais preocupados
com a justiça social, parecem não perceber que estão sendo beneficiados por uma
das situações de concentração de renda mais espetaculares do mundo — resultado
da distribuição pura, simples e direta de dinheiro público a uma categoria de
funcionários do Estado. Faz sentido, numa sociedade como a do Brasil?
Não faz, mas é proibido tocar no assunto. Quando se
lembram casos como os das juízas Olga ou Clarice, a reação imediata dos
defensores do sistema é perguntar: “Mas por que tocar nessas histórias justo
agora? O que há por trás disso? A quem interessa o assunto?”. Da mesma maneira,
criticar as “dez medidas anticorrupção” tornou-se uma blasfêmia. Espalha-se a
ideia de que ações como a de Renan em relação aos salários, e as de outros
políticos que pensam numa lei de responsabilidades com sanções mais severas
para o abuso de autoridade, não valem nada, porque são feitas com más
intenções; o que eles propõem pode até ser correto, mas seus objetivos finais
são suspeitos. É tudo uma conspiração para “abafar a Lava-Jato”. É culpa de
Lula e da esquerda. É culpa do governo e da direita, e por aí se vai. Mas o fato
é que dois mais dois são quatro — e, se o senador diz que são quatro,
paciência; a conta não passa a ser cinco só porque é ele quem está dizendo que
são quatro. Não é essa a realidade que os militantes do Judiciário intocável
aceitam; querem tudo exatamente como está. O resultado é, e continuará sendo, a
situação aqui descrita.
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