Da democracia não temos nem o
elemento definidor, que é o império da lei igual para todos
Por Augusto
Nunes, 04/11/2016,
www.veja.com.br
1 – “Identificação biométrica e
rapidez de apuração são provas do avanço da democracia brasileira.” É exatamente o contrário. Aqui o
eleitor só entra em campo depois do jogo jogado para dizer sim ou não aos
escolhidos dos “caciques” dos partidos. Em democracias de verdade, como a
americana, a suíça e outras se aproveitam toda e qualquer eleição para que o
eleitor decida literalmente tudo. Junto com presidentes, legisladores ou
prefeitos ele elege diretamente os funcionários públicos sem função
exclusivamente política, tais como xerifes, policiais, promotores, diretores de
escolas públicas, etc.; vota leis de iniciativa popular; referenda ou derruba
leis do Legislativo; autoriza ou não impostos novos ou aumentados; aprova ou
não a contratação de dívida; confirma ou não o mandato do juiz da sua comarca;
vota o “recall” ou não de funcionários eleitos na eleição anterior. Para a
eleição da semana que vem, 162 temas adicionais, 71 propostos por
abaixo-assinados de cidadãos comuns, foram certificados em 35 Estados para
constar das cédulas pedindo decisão dos eleitores de Trump ou Hillary. Por isso
30 milhões deles já receberam suas cédulas com um mês de antecedência e as vão
enviando preenchidas pelo correio. Por isso demora para apurar eleições em
democracias de verdade.
2 – “A política não se renova
porque brasileiro não sabe votar.” Essa afirmação toma o efeito por causa. O povo
elege o de sempre porque só consegue autorização para se apresentar como
candidato quem se compõe com os donos dos partidos. Por isso reforma política
pra valer inclui necessariamente um ponto-chave da que os americanos fizeram lá
atrás. Tornar as eleições municipais apartidárias para quebrar as pernas dos
“caciques” (cujo poder passaria do controle dos 5.570 potenciais “currais”
municipais de hoje para apenas 27 estruturas estaduais) e abrir as portas da
política à entrada de sangue novo. Qualquer um pode candidatar-se a prefeito ou
vereador sem pedir licença a ninguém.
3 – “Há partidos vitoriosos nesta
eleição.” Esta foi a eleição do “não”. “Eu não voto mais”, “eu não voto no PT”,
“eu não voto em ladrão”, “eu não voto em político”, etc. … O mais foi conseqüência do
controle da portaria do “Sistema”. Votou-se no que sobrou dos “nãos”, já era
conhecido ou pôde botar a cara na TV pra mostrar que existia, o que vale dizer
estar num partido grande e velho. Ponho a mão no fogo como 99% dos eleitores
não sabem em que partido votaram, ou, se lembram, não sabem nem a tradução da
sigla daquele em que acabaram votando, mesmo dos tradicionais.
4 – “A ideologia move a
polarização esquerda x direita.” Nem os presidentes dos partidos conseguem definir
esquerda e direita. Mas um grande divisor de águas aparece nítido no Brasil,
como no resto do mundo, especialmente o latino: ser contra ou a favor da
austeridade fiscal. Só que não é uma fronteira ideológica, é fisiológica: de um
lado pena a massa que paga a conta, trabalhando dobrado e ganhando a metade; do
outro se entrincheira a “casta” que é paga pela conta, trabalhando a metade e
ganhando dobrado. É essa que, sentindo-se agora ameaçada, quebra-quebra e
queima pneus por aí porque as TVs lhe deram a dica de que esse é o jeito de o
seu “dane-se a miséria nacional, ninguém toca no meu!” alcançar mais do que as
esquinas que já não consegue encher de gente e soar como o contrário do que é.
5 – “É impopular encarar de frente
os problemas mais velhos e óbvios do Brasil.” Se há algo que ficou bem definido nesta eleição, é
que quanto mais assertivo foi o candidato em relação a eles – necessidade de
ajuste, privatização, desmonte da corrupção de sindicatos e partidos com
dinheiro de imposto, fim da chantagem trabalhista e dos “marajalatos” –, mais
fulminante foi sua eleição e a distância aberta em relação ao oponente, não
importando as “tradições” das praças envolvidas. João Doria e Nelson Marchezan
são os exemplos mais visíveis, mas não os únicos.
6 – “Existe um preconceito de
gênero.” O número
de prefeitas e vereadoras eleitas caiu, apesar da “cota” de 30% de candidatas
imposta por aquele mesmo pessoal que, conforme a hora, nos diz que “não existe
gênero” senão o que cada um escolhe para si. Quem escolheu não eleger seu
prefeito ou vereador só por esse atributo foi a metade feminina do eleitorado
brasileiro, ou, se quiserem, os 100% “sem gênero definido pela natureza” que
acabam de aprender, com Lula e Dilma, que pôr alguém para cuidar da coisa pública
só por ser mulher é um tipo de oportunismo para enganar trouxa que em geral
acaba em desastre.
7 – “Lula ainda é uma força para
2018.” Nesta
campanha, “ter apoio de Lula” passou a ser a “denúncia” atirada por candidatos
“de esquerda” contra candidatos “de esquerda”. Em quem colou não sobrou nada…
8 – “Basta melhorar a gestão pro
Brasil ir pra frente.” Foi-se o tempo! Agora o setor público está que não tem nem pra lavar o
chão do IML, como no Rio, e a economia privada, em choque hemorrágico, não tem
mais com que se reerguer, mas a reforma da Previdência de que se fala não toca
nos “marajás”, só põe dinheiro no caixa no futuro distante, e a PEC 241 nem
menciona o rombo de Estados e municípios. A briga em torno de quem vai pagar
essa conta (na qual as denúncias da Lava Jato serão as armas nos bastidores)
nem começou ainda.
9 – “O Brasil é uma democracia.” Da democracia não temos nem o
elemento definidor, que é o império da lei igual para todos. Na raiz do
presente desastre estão os privilégios legalizados e direitos “adquiridos” que
“foros especiais” podem tornar até hereditários, como na Idade Média. Sem um
direito só pra todo mundo não tem saída. E pra chegar lá tem de pôr o povo no
poder, o que se faz submetendo os eleitos aos eleitores antes e depois da
eleição, com prévias transparentes para escolha dos candidatos e “recall” para
a troca dos que, eleitos, que “apresentarem defeito”. Sem isso “O Sistema”
continuará para sempre indomesticável, cavalgando impunemente o lombo do povo.
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