Foi à luta contra a corrupção que
trouxe o processo à tona, mas a crise do Estado brasileiro é muito maior que a
parte dela que pode ser explicada pela roubalheira
Por Augusto
Nunes, 25/11/2016,
www.veja.com.br
Um monte de gente nas redes sociais e até na
imprensa profissional, sempre a reboque dos acontecimentos o que é parte
constitutiva desta crise, comemora a prisão de dois ex-governadores do Rio de
Janeiro em menos de 24 horas como um sinal de que, “agora sim, o país está
mudando”. Pra mim pareceu o contrário. Porque agora? Porque só esses dois
da longa fila dos acusados no STF que nunca andou? Porque de forma tão
arbitrária e espetacular? Não seria, exatamente, porque os 4,2 milhões de
brasileiros a quem a lei concede os privilégios que o resto do país inteiro
somado não consegue mais pagar resistem furiosamente a entregar ao menos os
anéis?
Culpas e culpados há de sobra por aí. O que
não dá é pra desmesurar esse episódio da batalha da Assembléia Legislativa do
Rio da qual o destino fez protagonista Luiz Fernando Pezão, a criatura de
Sérgio Cabral, que inauguraria a fase “quente” da guerra entre o Brasil
que mama e o Brasil que é mamado, nem da luta cada vez menos surda entre o
poder Judiciário e Legislativo para, no meio desse tiroteio, manter seus
privilégios e prerrogativas “especiais”.
Foi à luta contra a corrupção que trouxe o processo
à tona, mas a crise do Estado brasileiro é muito maior que a parte dela que
pode ser explicada pela roubalheira. Dotar a nação de leis à altura do desafio
de controlar esse foco de infecção é uma etapa obrigatória, mas o fato é que
essa roubalheira toda, por gigantesca que tenha sido como, de fato foi não
quebra um país do tamanho do Brasil. O que nos está matando mesmo são os meios
legal e constitucionalmente garantidos de que a casta que se apropriou do
Estado se foi armando para colocar-se acima da lei e viver à custa do resto da
nação.
Da longa rodada de abusos patrocinados pelo PT o
pior foi multiplicar na União e fazer multiplicar nos estados e municípios o
número de funcionários e o valor dos seus salários. Os funcionários para efeito
de custo, como se sabe, são eternos. Ao longo desses 10 anos de tiroteio
cerrado desde o “mensalão”, essa conta exponencial vem sendo paga por
uma economia privada cada vez mais imobilizada pelo caos político. Resultado:
mais de 13 milhões de desempregados; 70 milhões de inadimplentes. É um
verdadeiro genocídio. E a cada minuto mais se acelera o giro no círculo
infernal do desemprego = queda de consumo, arrecadação, e investimento = mais
desemprego. Não obstante os salários públicos, mesmo depois que começaram a
deixar de ser pagos, continuam tendo aumentos!
Abortada a tentativa de acertar a conta pelo único
meio que ela pode ser acertada – o desbaste dos supersalários, das
superaposentadorias e da superlotação das folhas de pagamento por gente que
entrou pela porta dos fundos – os governadores voltam-se para a única
alternativa que resta que é transferir sua massa falida para a União, que tem a
prerrogativa de reabrir a impressão de dinheiro falso para pagar despesas
correntes como acontecia antes do Plano Real.
A tecnologia e a globalização, entretanto, arrancaram
o sistema patrimonialista que se confunde com a nossa história do seu berço
esplêndido. O Brasil Oficial não cabe mais no Brasil Real e os dois somados não
cabem no mundo globalizado. E não existe a hipótese de sairmos dessa
encalacrada sem atacar o problema onde ele de fato está. Não há mais de
quem tirar nada senão de quem nada nunca foi tirado. Já está acontecendo,
aliás, o que põe aliados novos e poderosos nessa luta: os verdadeiros
servidores que já entenderam que só poderão voltar a receber o que merecem em
paz se todos receberem apenas o que merecem.
A solução para essa parte do problema decorre
automaticamente, aliás, da mera exposição dos números à opinião pública. Quanto
maior a indecência do privilégio mais rápido a indignação geral o extingue. Não
cabe ao Legislativo, porém, expor os supersalários do Judiciário e do
Ministério Público nem vice-versa. Muito menos ao Poder Executivo de um governo
interino num país que vem de 300 anos de vícios tolerados onde exigir ou não o
cumprimento da lei pode ser mais uma questão de “vendetta” que de
justiça. Isso atira o país numa guerra institucional que pode acabar de
matá-lo.
Essa função é da imprensa. É exatamente para isso
que ela serve e é definida como o “quarto poder” de qualquer republica
que aspire à sobrevivência. E o fato disso não ter acontecido ainda mesmo
depois que o vaso foi destampado pelo Senado é nada menos que escandaloso.
Já o tratamento do problema maior consiste em
criminalizar o privilégio. É essa a receita universalmente consagrada que se
materializa tecnicamente na imposição da igualdade perante a lei. Revisada por
esse filtro, restaria da Constituição brasileira somente o que há nela de
apropriado a uma Constituição que é aquilo que vale para todo mundo, e dos
salários públicos apenas o que é justo pagar por eles, descontados o mesmo
imposto de renda e a mesma contribuição à Previdência que eles cobram de nós
outros.
A corrupção que todos dizem querer combater tem a
força que tem porque o que se compra com ela é o poder de outorgar a exceção à
lei; o poder divino de resgatar pobres almas do inferno da competição global
para a estabilidade eterna no emprego e os aumentos de salário por decurso de
prazo que os “concurseiros” buscam como ao Santo Graal. Nem um exército
inteiro de juízes e promotores imbuídos da mais santa das iras conseguirá por a
corrupção sob controle se continuar existindo a possibilidade de comprar e
exercer com ela esse poder divino. Haverá sempre mais juízes e promotores do
que eles que, em agradecimento às graças recebidas – que serão sempre as
maiores de todas posto que é deles o poder de deixar ou não rolar a farra –
cuidarão de dar vida longa ao dono de turno dessa cornucópia.
O único final feliz para a guerra entre o
Judiciário e o Legislativo seria, portanto, que o último supersalário morresse
sobre o cadáver do último foro especial, o que permitiria ao Brasil passar a
tratar seus servidores com a mesma intransigência com que eles o tratam hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário