O PT morreu de petismo; o esquerdismo, de esquerdismo
Por Augusto
Nunes, 02/11/2016,
www.veja.com.br
Texto de Valentina de Botas
M é uma amiga querida que não consegue dizer “não”
e eu quase não consigo dizer “não” a ela, só por isso aceitei encontrá-la com a
P. Cheguei ao agradável bistrô antes delas, quase às 7 da noite com um restinho
de luz natural se derramando sobre a vitória de um país que reafirma, do jeito
dele meio sem saber como e tardio, o desejo de se refazer. Aproveitei para
refazer as contas do mês e ver um jeito de acomodar o gasto com um secador novo
de cabelos. Nada feito: o mês que costumava sobrar ao final do meu salário
ficou ainda mais longo neste meu empreendimento como revisora frila. Não víamos
P, colega de trabalho com quem tínhamos não mais do que a cordialidade que se
deve ter com colegas de trabalho, há cinco anos, desde que se mudara para o Rio
para lecionar na Federal de lá.
Veio visitar parentes fugindo da “distopia
evangélica do Crivella”, mesmo “não entendendo como vocês escolheram um
prefeito-empreendedorista-ostentação e rejeitaram quem poderia deter a direita
emergente; ou melhor, entendo sim: São Paulo!”. Não é só São Paulo, disse M
para a esquerdista inconsolável, tem mais umas 5.300 cidades. Claro, P é
desagradável; julga-se superior moral, intelectual e espiritualmente. Apenas.
Ou seja, desagradável. Sou cristã, M é ateia e P freqüenta uma clínica (não é
templo) de budismo em Ipanema, em cuja lojinha – uma lojinha espiritualizada,
claro – comprou a linda pashmina. Outra pessoa talvez, mas não eu, desistiria
de diversão certa e daquele vinho tão bom. Além disso, a coisa só melhorava: P
estava incomodada com os olhares “opressores” de uns caras em outra mesa para
nós.
Quando a voz de Gardel cantando Caminito abençoou o
ambiente, falei a P sobre o meu secador. Começando a conversa, esclareci
que se um dia vigorar o sonho dos pastores do ódio de gênero, disfarçado de
feminismo, em que os homens olhariam para as mulheres sem ver nelas aquilo que
fez Santo Agostinho, antes de ser um doutor da igreja, vendo uma bela mulher
passar por ele, pedir “Senhor, fazei-me puro, fazei-me puro, fazei-me puro, mas
não agora”, o mundo será mais sombrio e seremos uma espécie ainda mais
tristonha no que temos de tristonhos.
O PT morreu de petismo; o esquerdismo, de
esquerdismo. Certo jornalismo está desconsolado com a “guinada à direita”, a
vitória dos conservadores, a ignorância política dos pobres, a intolerância
religiosa e o “perigoso assédio da religião à laicidade do Estado”. Até parece
que Crivella vai abolir o Carnaval e declarar o Estado Pentecostal da Cidade do
Rio de Janeiro; Doria vai suspender a maior parada gay da América Latina; e
Temer vai revogar a lei do divórcio no país e obrigar todas as mulheres a serem
“belas, recatadas e do lar”. À direita e o liberalismo sadios se caracterizam
justamente por não se meterem na vida privada do indivíduo, enquanto a esquerda
tem nisso uma tara.
Essa esfera ideológica moderna ainda está em
construção, mas nos livrarmos da esquerda degenerada que rouba da nossa grana à
institucionalidade, passando pelos costumes privados, já é alguma coisa.
Ressalvo essa história deletéria de “não político”, uma senha para
franco-atiradores. Felizmente, Doria, ao lançar Geraldo Alckmin candidato a
presidente no longínquo 2018, fez-se tão político como o padrinho.
Me parece que o país quer é tirar o atraso: atraso
do sectarismo, do maniqueísmo, da estupidez de insistir em dividir o mundo
entre esquerda e direita em que esta é inferior àquela em tudo, de arruinar o
futuro em nome de um credo falido e da perversidade de pôr o Estado onde ele
não cabe e amputá-lo de onde é obrigação ele existir: o Estado não precisa
produzir petróleo, ser dono de banco, nem financiar artista consagrado – o Estado
precisa combater 160 assassinatos diários num país selvagem sob um estatismo
indomável acalentado por Vargas, celebrado nos governos militares
anticapitalistas, timidamente combatido na era FHC e hipertrofiado além do
gangsterismo sob os governos do PT com o credo autoritário esquerdista e a
bizarra teoria econômica de distribuir riqueza sem saber produzi-la.
No país sincrético em que judeus freqüentam o
candomblé, católicas se casam grávidas e de branco, cristãos são
comunistas e as relações institucionais entre o Estado e os cidadãos se baseiam
em códigos laicos e não em parâmetros religiosos, a liberdade religiosa (e a de
não ter religião) e a laicidade do Estado nunca correram perigo até a era da
mediocridade inaugurar demônios em clivagens artificiais: nelas, além do odioso
“nós x eles”, solidificou-se o preconceito contra os evangélicos porque sempre
foram os mais refratários ao assédio esquerdista.
Edir Macedo lê a Bíblia como a súcia lê a
Constituição; a interpretação que ele faz de “pessoa eleita por Deus” é
vexaminosa, estreita e oportunista e, entre os evangélicos, foi quem mais se
aproximou do regime finado. Pois bastou os dois credos – o secular e o dele –
se enfrentarem no Rio, para que o vigor do preconceito contra evangélicos de
tão pobres e pobres de tão evangélicos se explicitasse. Eis o socialismo à moda
brasileira desvelando o coração trevoso das esquerdas onde se abriga uma
contradição história que as condena a se impor pelo genocídio e pela mentira: o
povo as rejeita.
A cara feia para os crentes veio acompanhada da
censura ao empreendedorismo. Então, o professor brilhante da UNICAMP, o
onipresente e chatinho Leandro Karnal, empreendedor de uma carreira
bem-sucedida, condena, com a fúria do anti-niilismo de Nietzsche, o
empreendedorismo. De Steve Jobs ou João Doria ao pobre coitado ambulante que
vende água nos faróis sob o sol ou guarda-chuva nos faróis sob a chuva, ou uma
revisora frila, somos todos ridículos. Compreendo. Também acho bacana pagar as
contas falando de Shakespeare, mas os empreendedores são essenciais
considerando que (1) a Unicamp somada a todo o restante empreendedorismo
estatal brasileiro não conseguiria empregar toda a força de trabalho do país;
(2) não se compram secadores de cabelos com uma digressão – em pleno Ponto Frio
para um vendedor atônito – a respeito das angústias de Hamlet. E é somente na
sociedade de mercado, por ser a única capaz de produzir riqueza e unir essa
produção à liberdade (com suas tensões, pesos e contrapesos), que um pensador
pode se sustentar com o próprio trabalho, ainda que pense esta sociedade de
modo crítico.
Era um Parlux, um dos melhores secadores de
cabelos, as eventuais leitoras deste texto devem saber. Já estava velhinho, o
coitado, um presente que ganhei no dia dos namorados há 12 anos e, no fim de
tarde deste domingo, ele queimou e mal terminei de dar uma ajeitada no cabelo
antes de sair. Não sou uma adepta da escova progressiva, que chamo de
regressiva. Muitas mulheres que aderiram a ela ficaram lindas, mas com cara de
todo mundo, em feições sem personalidade. Prefiro continuar cultivando meus
cachos com a ajuda do secador. Serenamente, expliquei tudo isso à P auxiliada
por M, Gardel e pelo vinho. P agradeceu o encontro “interessante” e se despediu
anunciando que as esperanças dela se chamavam Ana Júlia, a adolescente que
invadiu uma escola no Paraná porque acha que democracia é o que ela acha que
democracia é. Puxa vida, ela foi embora sem dizer nada sobre teu secador ter
queimado, as esquerdas não conseguem mesmo compreender as necessidades da
população, resumiu a querida M antes de brindarmos o fim do passado.
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