Felipe Athayde Lins de Melo,
pesquisador da UFSCar, ex-consultor da ONU e autor de livro sobre o sistema
penitenciário em São Paulo, avalia que a crise carcerária do país será superada
quando o Estado retomar o controle dos presídios e defende que isso só será
possível com a implantação de ações sociais nas unidades criminais e não com
intervenções demagógicas, como classifica as medidas anunciadas pelo ministro
da Justiça, Alexandre de Moraes, após os massacres de presos na Região Norte.
Por Renato
Onofre, 14/01/2017,
www.veja.com.br
Entrevista com Felipe Athayde Lins de Melo
Com a experiência de quem visitou mais de 300
prisões pelo país na última década estudando o comportamento dos grupos
criminais dentro do sistema penal brasileiro, o pesquisador e ex-consultor da
Organização das Nações Unidas (ONU) Felipe Athayde Lins de Melo classifica como
demagógicas as medidas anunciadas pelo ministro da Justiça, Alexandre de
Moraes, para enfrentar a crise nos presídios.
Doutorando em sociologia na Universidade Federal de
São Carlos, onde integra o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de
Conflitos, Lins de Melo é autor do livro “As Prisões de São Paulo: Estado e
Mundo do Crime na Gestão da Reintegração Social” e foi gestor de políticas
penitenciárias em São Paulo. Em entrevista à Veja, ele defende que só haverá
uma mudança real no quadro quando o Estado retomar o controle das prisões:
"E isso só será possível através de ações sociais dentro das unidades
criminais", afirma.
O senhor visitou mais de 300 prisões, em todo o
país, ao longo de uma década. Tem alguma cena que exemplifique para quem nunca
pisou lá dentro como funciona?
Um diretor de segurança e disciplina de uma
penitenciária paulista me disse há uns quinze anos: “Aqui está tudo sob
controle, mas sob controle dos caras. Para manter a ordem é assim: a gente
finge que está no controle, e os caras fazem o controle deles lá dentro. Só que
o ladrão sabe que, se aprontar alguma, a gente vai com tudo lá para cima
deles”. Recentemente, um diretor me confidenciou que o controle está cada vez
mais longe das mãos do Estado.
Em seu livro “As prisões de São Paulo”, o
senhor chega a dizer que “existem vínculos muito fortes entre o Estado e o
mundo do crime”. Pode explicar? Quais as conseqüências?
O que se percebe é que há um processo gradual e
contínuo de entrega de gestão dos ambientes de convívio das unidades prisionais
para os grupos criminais. Claro que, em termos gerais, é o Estado que controla
os fluxos de entrada e saída nas prisões, de transferências (de presos, muitas
vezes negociadas com os próprios), de acesso aos serviços básicos. Mas no
cotidiano o que se tem é uma gestão compartilhada, sem a qual não seria
possível termos tanta gente encarcerada em ambientes com tanta superlotação e
com escassez de servidores. E o custo deste compartilhamento é alto. A conseqüência
no longo prazo foi o fortalecimento desses grupos, que, então, passaram a
disputar a legitimidade da gestão do ambiente. Se o Estado, que é o órgão
legitimamente constituído para gerenciar política prisional e, portanto, os
ambientes prisionais repassam a tarefa, esses grupos se sentem no direito de
disputar a legitimidade de poder dentro do sistema. O próprio Estado alimentou
a crise nas prisões. A guerra é só uma das conseqüências.
Se o senhor pudesse tomar uma medida emergencial
para melhorar a situação dos presídios brasileiros num prazo de, digamos, seis
meses, qual seria ela?
Não existe uma saída fácil. Quem vende isso está
mentindo. Há medidas emergenciais, e algumas já estão sendo tomada, como
separação imediata de certos grupos, o que estanca novos pontos de conflito.
Outra ação seria a revisão imediata dos processos judiciais, para tirar de
dentro do sistema quem não precisa estar lá, já que hoje 40% da população
carcerária do país são de presos provisórios. Muitos não deveriam estar
encarcerados.
E no médio e longo prazo, o sistema carcerário
brasileiro tem jeito?
O salto, que não está na pauta, é a promoção de
políticas públicas dentro das prisões. O Estado perdeu as prisões quando não
foi mais capaz de suprir as necessidades básicas das pessoas privadas de
liberdade. Esse vácuo foi ocupado pelo grupo criminal, que se fortaleceu. Hoje,
toda a assistência aos presos – jurídica, material e até familiar – está nas
mãos dos grupos que dominam as cadeias. Enquanto eles mandarem em todo o dia a
dia da cadeia, não haverá um caminho.
O que fazer?
É necessário repensar a política de segurança
pública. Enquanto ela for baseada na atuação ostensiva, voltada à prisão
daqueles que estão na linha mais subalterna do crime, estaremos apenas
superlotando o sistema. Essas pessoas são facilmente substituídas na
organização. Em vez de um a menos na rua, teremos agora um a mais dentro do
grupo criminal. Se não fechar a porta de entrada do sistema prisional, não
haverá cadeia suficiente para todo mundo nunca. Em vez disso, temos de investir
em inteligência para desarticular esses grandes grupos. Outra questão
importante é a padronização do sistema. Hoje, cada um dos mais de 1 400
presídios no país tem regras e metodologias próprias. Isso dificulta a atuação
e o controle do Estado.
Algum país já passou pelo mesmo desafio que o
Brasil enfrenta agora?
Pode citar alguma experiência que deu certo? Países
que sofrem com o hiperencarceramento estão adotando políticas de
desencarceramento porque já compreenderam o fracasso da prisão em cumprir com
“sua promessa de ressocialização”. Mas também porque identificaram que o alto
custo do encarceramento poderia ser enfrentado através de outras medidas de
responsabilização de quem cometeu crimes. Na última década, a República
Dominicana passou por um processo muito forte de violência dentro dos seus
presídios, com um quadro como o do Brasil. Eles reverteram isso implantando uma
mudança no modelo de governança e investindo fortemente na formação de
dirigentes e servidores penais. Isso baixou consideravelmente a violência
dentro dos presídios e desarmou diversos grupos criminais, porque o estado
passou a ser o provedor das necessidades internas, e aumentou a
ressocialização. Nessa metodologia, o inimigo não é mais o carcereiro. Ele é o
aliado. E, como aliado, consegue minimizar possíveis conflitos identificando
antes possíveis pontos de tensão.
"Hoje, toda a assistência aos presos –
jurídica, material e até familiar – está nas mãos dos grupos que dominam as
cadeias. Enquanto eles mandarem em todo o dia a dia da cadeia, não haverá um
caminho."
E no Brasil, existe alguma experiência que possa
ser replicada nacionalmente?
Há mais de dez anos, o Espírito Santo começou esse
processo de reformulação do sistema prisional, depois de uma grave crise.
Primeiro, eles desativaram unidades sem condições mínimas. Paralelamente,
fizeram um investimento maciço na construção de novas unidades prisionais com
espaços para funcionamento de serviços assistenciais: escola, pavilhão de
trabalho e atendimento médico. As novas unidades também facilitaram o controle
e convívio entre os agentes e os presos. Em seguida, houve um investimento
muito forte na formação dos servidores. Em terceiro, aconteceu uma melhora nos
serviços de alimentação, vestuário, lavanderia. O Espírito Santo também
implantou uma unidade de triagem capaz de identificar o perfil, até mesmo
criminal, de cada detento e sua trajetória. Compreender por que eles estão ali
ou como foram parar no crime foi fundamental para a distribuição dos presos.
E alguma que deu errado, que possa apontar o nosso
futuro se nada for feito?
O modelo mais danoso que temos em vigor no país é o
de São Paulo. O estado é hoje o que mais encarcera, é o que tem a maior
população prisional do país, e um dos que mais investiram na construção de
presídios - saiu de 40 nos anos 90 para 174 unidades. E o que mudou? Nada. Pelo
contrário, o PCC está cada vez mais forte dentro e fora das prisões. São Paulo
foi o estado que investiu nessa política de encarceramento como sinônimo de
enfrentamento da violência e, ao fazer isso, sem ocupar os espaços
adequadamente, permitiu que o hoje principal grupo organizado no sistema
penitenciário brasileiro surgisse, se consolidasse e se fortalecesse.
Após o massacre, o governo anunciou a construção de
novos presídios como uma das soluções do problema, já que os atuais estão
superlotados – há 650 000 presos para 370 000 vagas?
O problema é que temos presos demais. Hoje são
aproximadamente 1 430 estabelecimentos prisionais no país, com mais de 372 000
vagas. Se fizermos a conta, temos 184 vagas para cada 100 000 habitantes. A
taxa mundial de encarceramento é de 144 presos para cada 100 000. Ou seja, se
estivéssemos dentro da média mundial, sobrariam vagas no sistema penitenciário.
E aí poderíamos estar desabilitando prisões sem condições básicas, por exemplo.
O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, chegou
a dizer, quando era secretário da Segurança Pública em SP, que o poder dessas
facções era menor do que o imaginado. Foi um erro?
Foi. Ao negar a existência desses grupos e
deixá-los agindo livremente no interior dos estabelecimentos prisionais, os
governos permitiram que essas pessoas se articulassem, criando códigos de
conduta e procedimentos, formando redes de contatos e aglutinando força. O que
era algo possível de ser estancado virou uma hidra com muitas cabeças.
Houve muitas reações de apoio ao massacre, como um
político que disse que deveria haver “uma chacina por semana”. Como explicar
para o cidadão que é vítima dos criminosos que é preciso tratá-los de maneira
digna?
É necessário mostrar que garantir direitos às
pessoas privadas de liberdade significa garantir que nenhuma pessoa pode ter
seus direitos fundamentais violados. Falar que “bandido bom é bandido morto”
significa não a eliminação de um bandido, mas o surgimento de um novo homicida.
Numa sociedade regida pela lei, a punição deve seguir a legalidade e não o
arbítrio.
O governo lançou um novo Plano Nacional de
Segurança, com medidas inclusive relativas às prisões. Resolve alguma coisa?
É uma solução demagógica. É importante lembrar que
há 45 mil vagas em construção com recursos do governo federal no Brasil neste
momento, algumas delas prontas ou quase prontas, mas os estados não têm
servidores e nem orçamento para implantação e manutenção de serviços. Ora, se
essa medida não fosse uma resposta demagógica, o governo federal estaria se
preocupando em acelerar a entrega dessas obras e encontrar meios de os estados
manterem serviços de qualidade.
Como um dos massacres ocorreu num presídio
privatizado, essa questão voltou ao debate. Pode ser uma solução?
Os argumentos rotineiros que justificam a
terceirização ou privatização de serviços públicos – a redução de custos e com
ganhos de eficiência e produtividade – não se efetivam nos sistemas prisionais:
há um aumento no custo de manutenção geral dos sistemas, uma vez que os limites
contratuais impostos para as unidades prisionais acabam acarretando ônus para
outras unidades. Por exemplo: imaginemos uma unidade X numa determinada região
de qualquer estado. Privatizada, ela terá um limite de pessoas encarceradas,
uma vez que contrato prevê esta limitação tanto para fins de ganhos da empresa
administradora, como para supostamente garantir o sucesso na prestação de
serviços (nutricionista, por exemplo) e assistência (saúde, educação, trabalho
etc.). Pois bem: atingido o limite de pessoas, mesmo que haja um grande fluxo
de prisões naquela região, o Estado terá de deslocar as pessoas presas para
outras localidades. As demais unidades, por sua vez, estarão ainda mais
abarrotadas, uma vez que a região administrativa do estado não serve como
critério para a contenção das pessoas. Também temos perdas com relação aos
serviços penais, uma vez que se torna inviável investir na formação técnica de
profissionais, que, sendo terceirizados, serão substituídos a cada renovação de
contrato. Por fim, os estudos sobre as prisões privatizadas no Brasil têm
mostrado que o custo per - capita é ainda maior que nos estabelecimentos com
gestão pública (algo em torno de 2 700 reais na privada, contra 1 300 na
pública, segundo alguns levantamentos).
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