Nunca tantos tiveram tanta educação nem tanto acesso à saúde. Mas isso
não muda ressentimentos e rancores
Por Augusto
Nunes, 29/01/2017,
www.veja.com.br
Texto de J.R. Guzzo Publicado na edição impressa de VEJA
É algo realmente extraordinário. Vivemos, no mundo
inteiro, uma era em que o homem prova dia após dia que a livre combinação de idéias,
o incentivo à atividade de pensar e a eliminação cada vez mais rápida de
barreiras para a criação poderiam garantir que o futuro vai sempre mudar para
melhor — e que o ser humano, hoje, encontra cada vez menos limites para
transformar em realidade praticamente tudo aquilo que é capaz de conceber. Que
coisas seriam de fato impossíveis? A lista diminui o tempo todo. Exatamente ao
mesmo tempo, entretanto, as sociedades do Brasil e do mundo, sobretudo aquelas
onde são maiores os benefícios, vantagens e mudanças materiais trazidos pela
liberação mais e mais audaciosa da inteligência humana, vivem no momento uma
ofensiva inédita contra quem quer pensar — ou, mais exatamente, contra quem
quer pensar de maneira independente. Aceita-se da forma mais natural desta
vida, até com indiferença, que um dia toda a moeda do mundo estará transformada
em sinais eletrônicos, que os carros não precisarão mais de motoristas ou que
máquinas funcionarão como agentes racionais, capazes não apenas de tomar
decisões, mas de tomar as decisões certas. O que não se admite, de jeito
nenhum, é que você utilize a liberdade de pensamento e chegue a alguma conclusão
desaprovada pela polícia universal do bem.
Fica-se assim, então: o cidadão convive
perfeitamente bem com o reconhecimento óptico de caracteres, a utilização de
algoritmos na medicina de ponta e manifestações de inteligência computacional
avançada. Admite que um dia robôs possam operar as torres de controle dos
aeroportos ou fazer cirurgias. Mas não pode dizer “favela” — tem de dizer
“comunidade”. Hoje em dia, na vida real, opera através do planeta uma espécie
de conselho de árbitros que decide o que é certo e o que é errado, o que é
virtude e o que é vício.
Esse tribunal é composto de membros ativos das
classes intelectuais, professores universitários e “formadores de opinião” em
geral. Seus juízes estão presentes em todos os meios de comunicação, nas escolas
do ensino básico e nos sindicatos que representam hoje uma parte tão grande do
aparelho judicial. Sua influência não respeita as proporções nas quais as
sociedades se dividem — uma pesquisa recente da revista americana Boston
Magazine revelou que nas universidades da região, um dos principais centros de
ensino superior dos Estados Unidos, há 28 professores de “esquerda”, ou
“progressistas”, para cada professor considerado “conservador”. Se isso não é
uma situação de desequilíbrio, o que seria? (Imagine-se o que daria uma
pesquisa dessas na universidade brasileira — 100 para 1?) Essa gente não tem, é
claro, o poder legal de proibir ou obrigar nada. Mas exerce uma repressão cada
vez mais aberta na esfera das idéias; torna o ar rarefeito para quem pretende
pensar com a própria cabeça. O objetivo é proibir o pensamento alheio. Parece
que estamos voltando ao tempo da blasfêmia — ou seja, qualquer coisa que a
Igreja Católica não queria que fosse dita. Por esse entendimento do mundo, a
liberdade de pensamento é ruim. A liberdade de expressar o pensamento é pior
ainda.
De onde vem isso tudo? Não há uma resposta única,
mas é sabido que os avanços espetaculares da tecnologia de primeiríssimo grau e
as perturbações brutais que a cada dia mudam, reduzem, deslocam, convertem ou
eliminam todo tipo de coisa ligada ao mundo da produção e do trabalho estão
criando rapidamente através do mundo uma imensa angústia quanto ao futuro.
Atividades, profissões e ofícios estabelecidos há longa data simplesmente
somem, substituídos por maneiras melhores, mais rápidas, mais baratas, mais
úteis e mais inteligentes de fazer o que vinha sendo feito — e, sempre, com
muito menos gente. A maioria se joga com entusiasmo sobre as conquistas deste
novo mundo; respeitam, admiram e principalmente gastam o dinheiro que têm
consumindo os produtos da chamada “quarta era” industrial. Mas, se gostam do
que compram e usam, não gostam de quem faz nem, sobretudo, de quem ganha com o
mundo novo — por ser muito dinheiro, somas que ninguém jamais ganhará em toda a
vida, e por verem no sucesso dos que criam uma ameaça real para os que
consomem. A pergunta chave é: “O que vai acontecer comigo?”. Aí já não há nada
de cômico.
Existe no mundo do dia a dia uma ansiedade de ordem
absolutamente prática — ela pega toda aquela multidão de gente que já sabe que
nunca vai chegar lá. São os perdedores da atual “sociedade da inteligência”.
Não entendem, simplesmente, como se trabalha nesta nova revolução industrial,
ou que utilidade poderia ter para ela. Espantam-se quando ficam sabendo que o
novo prédio-sede da Apple, na Califórnia, custou 5 bilhões de dólares — a
construção mais cara da história da humanidade. Sabem, por mais que se
esforcem, estudem, façam cursos, que nunca vão conseguir participar desse
paraíso digital-eletrônico-tecnológico onde o mundo que “vale à pena” está
sendo construído, onde os salários podem começar nos 500 000 dólares por ano,
e os bem-sucedidos levam uma vida cheia de realizações pessoais, privilégios e
respeito profissional. Não são apenas eles os abençoados do século XXI. São
todos os que se cevam nesse bioma do sucesso. São os ricos em geral, de
qualquer ocupação — pelas contas de 2016, há no mundo 33 milhões de indivíduos
com mais de 1 milhão de dólares no bolso, fora a casa onde moram. São os que
conseguem os melhores empregos, em qualquer área. São os mais talentosos, os
mais inteligentes, os que podem trabalhar nas atividades de que gostam e que
acham mais compensadoras. São os que se realizam. São os que têm uma “carreira”
— enquanto a maioria, quando ainda se segura num emprego, não tem carreira
nenhuma, apenas luta pela sobrevivência do jeito que dá.
Muita gente admira esses vitoriosos, e quer chegar
lá. Mas muito mais gente não os considera um modelo a seguir — e, sim,
adversários, ou os responsáveis por suas dificuldades. Essas pessoas não
acreditam na palavra “meritocracia”; muitas nem sequer entendem o que quer
dizer isso. Não acham que os vencedores mereceram suas vitórias. Mais ainda,
muitas perderam ou estão perdendo a fé no progresso. O que adianta o progresso,
na prática, se você não tira benefício dele? Vão criando a convicção de que
progresso é algo que acontece para os outros. Elas são, hoje, o grande
público-alvo da pregação antiliberdade que se reproduz mundo afora. No entender
dos novos evangelistas da esquerda mundial, há duas respostas para as
frustrações dos que estão perdendo. Uma é propor governos cada vez mais caros.
A outra é fazer regulamentos para criar mais igualdade — o santo remédio que
corrigiria tudo. Acham, naturalmente, que o caminho mais curto para aumentar a
igualdade é diminuir a liberdade. O resultado é que não conseguem a primeira,
jamais, e depravam a segunda. Pode ser chato, mas basicamente nada mudou desde
Balzac: a igualdade, dizia ele, pode ser um direito, mas nunca será um fato.
Nunca houve no mundo tanta gente vivendo com suas
necessidades básicas atendidas, nunca uma porcentagem tão alta da população
mundial viveu fora da miséria — uma vitória espetacular, num planeta com 7
bilhões de habitantes. Nunca houve menos fome. Nunca tantos tiveram tanta
educação nem tanto acesso à saúde. Mas isso não muda ressentimentos e rancores.
As pessoas querem o que não têm — e estão com medo de perder o que têm. É a
melhor estrada para o tráfego das posturas contra a liberdade.
Comentários
J.B. Cruz
CARO GUZZO:
VIM, VI e VENCI: VIM de onde??? VI o quê? VENCI quem???
Nós seres Humanos temos dificuldades de assimilar o ALEATÓRIO...
Inventamos a CIÊNCIA para tentar explicar o MUNDO, e a RELIGIÃO para criar sua justificativa...
É o ”como” e o ”por que” que tentam dar Ordem no UNIVERSO...
Afinal, um UNIVERSO ordenado é pais previsível – a imprevisibilidade desconcerta...
Mas, qual é a marca da política brasileira em tempos de Lava
Jato senão a incerteza, o inesperado e o imprevisível??? É vão ignorar o poder
do ACASO...
É VERDADE que vivemos cheios de problemas... Nesse momento cada um de nós está ou estará
às voltas com algum problema... São problemas Financeiros, Saúde, de
relacionamento Familiar, Profissionais, Sexuais ou outros... Tenho uma ótima
notícia para você: vai ser sempre assim... Viver é resolver problemas sempre...
Quando as atuais dificuldades forem resolvidas, outras apareceram... Algum
Filósofo da vida já dizia que ”O Inferno são os outros”, mas também digo que
ainda o ‘SER HUMANO; É O MAIOR ESPETÁCULO PARA O SER HUMANO”…
Delcimar Bezerra
Eike Batista, o homem do X bem que poderia virar X9 e começar
a dar com a língua nos dentes.
Juca Leiteiro
E quem não se lembra das indústrias de São Paulo, ABCDM,
Osasco e Guarulhos que fecharam, faliram ou mudaram para outras freguesias,
depois de seguidas greves em nome do nós contra eles, comandadas pelo Lula,
Paulinho da Força e sindicalistas?
E qual a Cooperativa de Trabalhadores formada por Sindicatos, que mesmo recebendo recursos e isenções do governo, se tornou mais produtiva, competitiva e remunerou melhor os trabalhadores, depois de assumir parte dessas indústrias e dispor do parque industrial já montado?
Juca Leiteiro
Grevistas da CUT 7 x 1 Empresários, Grevistas UNE 7 x 1
Ensino, Invasores do MST 7 x 1 Produtores Rurais, MTST 7 x 1 Proprietários de
Imóveis, Campeões Nacionais 7 x 1 Cofres Públicos, Cabral 7 x 1 Cariocas, João
Santana e Duda 7 x 1 Eleitores… e deu no que deu. É bonito isso?
SILVIO PURIFICAÇÃO
Infelizmente, a porcentagem desta maioria jurássica,quando
ministram suas ideologias, não registra, ou omitem de caso pensado, a verdade
básica desta roda giratória que faz tudo acontecer! Não existe almoço grátis; alguém
tem sempre que pagar a conta!
Charles A.
Assunto complexo e tão bem abordado por JR Guzzo. A perda
total de valores morais está entre os motivos deste sentimento de desorientação
e insegurança. A falta de consciência da finitude da vida, da morte certa, também
faz parte do amoralismo retumbante e da moral decapitadora de consciências e da
liberdade. Além disso, há muitas bestas humanas desfrutando deste cenário
digital e bilionário, e muita gente com elevada inteligência com alguns tostões
no bolso, sobrevivendo no limite. Nem “sempre a inteligência prevalece nos
novos tempos do paraíso digital-eletrônico-tecnológico”. Esse mundo abriga, também,
em seu cume, justamente os parasitas que decapitam consciências e
agressivamente impõem, de forma estranhamente uniforme, sua maneira totalitária
e infantiloide de ver o mundo. Um texto que merece ser lido e relido!
José De Sousa Santos
Por conta desses “avanços espetaculares da tecnologia”,
especula-se que, em futuro não muito distante, 2/3 dos empregos do planeta
simplesmente desaparecerá.
Antonio Carlos Ferreira
Não tem como deixar de admirar a sua inteligência, cultura, e
preparo para esta árdua profissão, caro Guzzo. O seu artigo é sensacional, não
há palavras para defini-lo. Poucos intelectuais têm o seu poder de análise e a
competência de torná-la escrita. Chega às raias da filosofia pura. É brilhante.
Está na hora de você selecionar seus escritos e editar um livro, o seu saber
deve ser divulgado. Um abração a você e ao Augusto.
Mauro Eduardo Sales
Que ótima idéia, Antonio Carlos! Os artigos do Guzzo são
preciosos demais para ficarem esparsos. Penso que seria utilíssimo para o
futuro se condensados em livro.
Heitor Zanini
Mestre Guzzo, nunca me decepciono com seus textos. Antes de
começar a ler esse texto acima, pensei: “será que o Guzzo vai defender essa
porcaria do ‘politicamente correto’?”. E, como sempre, leio um texto coerente e
que é um prazer sem decepções.
Giovana Geuer
Ótimo texto e bem coerente com o pensamento liberal. Mas o
liberalismo total é uma utopia, o estado sempre estará presente a ditar regras,
alegando representar a maioria, não tem como, sempre foi assim, apesar do
progresso da humanidade.
Liberdade
Aplausos! Penso exatamente assim, só não sei colocar no
papel. Mas, vale dizer que os entorpecentes e as idéias emboloradas da esquerda
são as duas piores drogas do mundo, modificando completamente o comportamento
da sociedade.
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