Acusada de tentativa de furto em
21 de outubro de 2007, L.A.B tinha 15 anos, pesava menos de 40 quilos e media
1m50 quando conheceu o inferno no interior do Pará
Por Augusto
Nunes, 12/10/2016,
www.veja.com.br
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) demorou 9 anos
para punir a juíza Clarice Maria de Andrade, responsável por manter a menor
L.A.B. presa por 26 dias numa cela masculina em Abaetetuba, no Pará. Clarice já
havia sido aposentada compulsoriamente pelo CNJ em 20 de abril de 2010, mas, em
14 de junho de 2012, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) anularam a
decisão por considerá-la “excessiva”. No ano seguinte, quando Clarice foi
nomeada juíza titular da comarca de Ananindeua, a coluna publicou a
reportagem “Os algozes da menina estuprada na cadeia do Pará estão livres. Ela
desapareceu” (leia abaixo). O texto reconstitui a trajetória dos principais
personagens do episódio. Nos próximos dois anos, Clarice ficará afastada das
funções, mas embolsando normalmente o salário. Vai receber sem trabalhar.
Os algozes
da menina estuprada na cadeia do Pará estão livres. Ela desapareceu
Texto de
Branca Nunes
Em 21 de outubro de 2007, a menor L.A.B. foi presa
em Abaetetuba, no Pará, sob a acusação de tentar furtar um telefone celular.
Tinha 15 anos, menos de 40 quilos e um metro e meio de altura. Levada para a
delegacia da cidade de 130 mil habitantes, a quase 100 quilômetros de Belém,
passou os 26 dias seguintes numa cela ocupada por mais de 20 homens. Durante
todo o tempo, o bando de machos serviu-se da única fêmea disponível. Estuprada
incontáveis vezes, teve cigarros apagados em seu corpo e as plantas dos pés
queimadas enquanto procurava dormir. Alguns detentos, aflitos com as cenas
repulsivas, apelaram aos carcereiros para que interrompessem o calvário. Os
policiais preferiram cortar o cabelo da adolescente com uma faca para camuflar
a aparência feminina. A rotina de cinco ou seis relações sexuais diárias foi
suspensa apenas nos três domingos reservados a visitas conjugais. O tormento só
acabou com a intervenção do conselho tutelar, alertado por uma denúncia
anônima.
De tão escabrosos, os fatos resumidos no parágrafo acima parecem extraídos de um filme de
ficção. Mas o episódio aconteceu. E a realidade foi ainda mais apavorante.
Naquele 21 de outubro de 2007, um domingo, L.A.B.
foi flagrada por Mayko Deyvison de Lima Santos tentando furtar um aparelho
celular, algumas roupas e uma corrente de prata pertencentes ao dono da casa.
Eram 9 horas da manhã. Depois de trancá-la num banheiro, Mayko ligou para um
tio, Adilson Pires de Lima, e para os amigos Sérgio Teixeira da Silva e
Francisco Carlos Fagundes Campos. Os três são investigadores de polícia.
Assim que chegou ao local do crime, Adilson se
apresentou com um soco no estômago de L.A.B. A arma colocada dentro da boca
encerrou a primeira etapa do calvário. Encaminhada à delegacia, foi
recepcionada por Sérgio Teixeira com um chute nas costas.
(Era a quarta vez em menos de quatro meses que a
adolescente entrava naquele lugar. Em 24 de junho, L.A.B. havia sido detida por
tentativa de furto e liberada depois de pagar a fiança de R$ 180. Em 14 de
setembro, foi presa por furto. O alvará de soltura, expedido em 18 de setembro,
tem a assinatura da juíza Clarice Maria de Andrade. Não se sabe onde L.A.B.
ficou por 72 horas. Nas duas ocasiões, alterou o sobrenome ─ para “da Silva
Prestes” ─ e também a idade: afirmou ter 24 e 19 anos. Existe outro inquérito
por furto aberto em 3 de julho.)
A história que teve início em 21 de outubro começou
a percorrer descaminhos muito mais perturbadores quando a delegada Flávia
Verônica Monteiro Pereira resolveu trancafiar L.A.B. ─ que nem precisaria de
documentos para provar a menoridade denunciada aos gritos pelo físico ─ na
jaula atulhada de machos.
Flávia foi a primeira mulher a
cruzar o caminho da menina de 15 anos.
(A atitude da delegada não chega a ser
surpreendente nos grotões do Brasil – muito menos nas lonjuras do Pará. No
relatório da CPI do Sistema Carcerário, publicado em 2009, delegados, promotores,
agentes penitenciários e juízes confirmaram que “quando não tem onde prender
mulher, a gente coloca com os homens mesmo”. Ao vistoriar prisões paraenses,
integrantes da CPI localizaram dois casos semelhantes ao de L.A.B.. No
primeiro, uma presa engravidou depois de cinco meses numa cela com 38 homens.
Noutro, a detenta teve dois filhos ao fim de temporadas distintas na cadeia. A
quantidade de parceiros impede a identificação dos pais biológicos.)
Se não engravidou, L.A.B. teve sorte. Logo na primeira
noite, foi atacada por Beto Júnior Castro da Conceição. Diante da resistência
da presa, ele a levou para o banheiro e ali a estuprou. “A vítima gritou
bastante, porém, como neste ambiente prevalece à lei do silêncio e os próprios
presos tinham medo deste acusado, nada fizeram”, resume a denúncia do
Ministério Público, à qual teve acesso o site de VEJA.
O segundo a saciar-se foi Rodinei Leal Ferreira,
vulgo Cão. Como a adolescente seguia resistindo, os detentos resolveram
confiscar-lhe a comida, que só liberavam mediante o que chamam de “empanada”: a
vítima estende um pano no chão e faz sexo em troca de alimento, dinheiro ou
material de limpeza.
Enquanto permaneceu no cárcere, L.A.B. sofreu
lesões corporais, teve o corpo queimado com cigarros e isqueiros durante o sono
e foi constantemente coagida a ficar longe das grades para não ser vista. Por
causa da alta rotatividade, ela só conseguiu identificar Beto Júnior e Rodinei
Leal, o Cão. A dupla, hoje no Centro de Recuperação Regional de Abaetetuba, foi
condenada há 10 anos e 8 meses por estupro e atentado violento ao pudor contra
a ex-companheira de cela.
(Beto Júnior também cumpre pena por dois crimes de
roubo qualificado. O prontuário de Rodinei Leal inclui uma condenação por
tentativa de roubo e outra por roubo qualificado.)
Em 23 de outubro, dois dias depois da captura,
Clarice Maria de Andrade – a mesma juíza que subscreveu o alvará de soltura de
L.A.B. em 18 de setembro – assinou o auto de prisão em flagrante. A magistrada
sabia que não existem celas só para mulheres na delegacia. Mas não quis saber
onde L.A.B. ficara alojada.
Clarice foi a segunda mulher a
cruzar o caminho da menina de 15 anos.
(“Se um juiz mandar soltar todas as pessoas que
estejam presas em situação degradante no Brasil não sobrará ninguém atrás das
grades”, avisa Emiliano Alves Aguiar, advogado de Clarice. “As cadeias estão
superlotadas. Não há condições mínimas de salubridade para homens e mulheres”.)
Em 5 de novembro de 2007, 14 dias depois do início
do drama, Clarice recebeu um ofício “em caráter de urgência” assinado por
Antonio Fernando Botelho da Cunha, superintendente regional do Tribunal de
Justiça do Pará. O documento determinava a transferência de L.A.B. para Belém,
“uma vez que não possuímos cela para o abrigo de mulheres, estando à mesma
custodiada juntamente com outros detentos, correndo risco de sofrer todo e
qualquer tipo de violência”.
A juíza repassou o pedido para Graciliano Chaves da
Mota, diretor da Secretaria da 3ª Vara de Abaetetuba, que assessorava a
doutora. Embora tenha garantido à magistrada que a solicitação havia sido
encaminhada por fax em 8 de novembro, o diretor só há enviou 12 dias depois,
quando L.A.B. já estava em liberdade e o caso começava a chamar a atenção da
imprensa. Nesse período, Clarice não procurou saber se o diretor cumprira a
ordem que lhe dera.
O episódio ganhou repercussão nacional depois da
interferência do conselho tutelar. Alertada para a presença de uma menina de 15
anos na cela masculina da cidade, a conselheira Diva de Jesus Negrão Andrade
correu para a delegacia levando a certidão de nascimento de L.A.B. Na frente do
delegado Antônio Fernando Cunha, a adolescente não só reconheceu a menoridade,
como confirmou a denúncia de que estava sendo abusada sexualmente pelos outros
presos.
As evidências não foram suficientes para
sensibilizar o delegado Cunha. Ao dizer que a menor só sairia dali com ordem
judicial, devolveu L.A.B. ao inferno. Nesse mesmo dia, achou prudente
transferi-la para a sala dos escrivães.
Na tarde seguinte, quando o pai de L.A.B. chegou à
delegacia acompanhado de um conselheiro tutelar, o delegado Rodolfo Fernando
Valle Gonçalves alegou que a adolescente havia fugido – e recusou-se a fazer um
boletim de ocorrência registrando o sumiço da menina.
L.A.B. foi encontrada três dias mais tarde vagando
no cais do porto. Contou que fora levada até lá por três policiais civis, que a
ameaçaram de morte se não caísse fora da cidade.
Inquieta com os possíveis prejuízos eleitorais
decorrentes da repercussão nacional do episódio, a governadora Ana Júlia Carepa
prometeu afastar os diretamente envolvidos no absurdo. Reconheceu que outras
cadeias do Pará reprisavam com freqüência o mesmo espetáculo da promiscuidade e
baixou um decreto proibindo homens e mulheres de dividirem a mesma cela – como
se isso não fosse proibido pela legislação brasileira há alguns séculos.
Ana Julia foi a terceira mulher a
cruzar o caminho da menina de 15 anos.
(A governadora não conseguiu se
reeleger em 2010)
Hoje, o processo contra os protagonistas desse
episódio ainda corre em sigilo no Tribunal de Justiça do Pará. Em tese, há 12
réus e uma vítima. O destino dos protagonistas informa que, na prática, existem
12 vítimas e uma ré. Os únicos que continuam encarcerados são os estupradores
Beto Júnior Castro da Conceição e Rodinei Leal Ferreira, que já estavam atrás
das grades quando cometeram o crime.
Declarados culpados no Processo Administrativo
Disciplinar (PAD) instaurado pela corregedoria da Superintendência do Sistema
Penitenciário do Estado do Pará (Susipe), os agentes prisionais Benedito de
Lima Amaral e João de Deus Oliveira foram exonerados em 5 de dezembro de 2008.
Absolvido, o agente Marcos Eric Serrão Pureza trabalha atualmente na Casa do
Albergado, em Belém.
Marcos Eric, como os demais envolvidos, foi
condenado por omissão, em primeira instância, a 2 anos e 8 meses de prisão em
regime fechado. O Tribunal de Justiça do Pará concedeu-lhe o benefício do
regime aberto.
Também foram exonerados os delegados Antônio
Fernando Botelho da Cunha, Rodolfo Fernando Valle Gonçalves, Celso Iran
Cordovil Viana, Danieli Bentes da Silva e Flávia Verônica Monteiro Pereira. Na
denúncia, a promotora Ana Carolina Vilhena Gonçalves afirmou que todos souberam
do que se passava e optaram pela omissão.
Ana Carolina destacou a participação de Antônio
Cunha, que só tomou providências para a transferência da menor ao receber um
ofício da Secretaria de Direitos Humanos do Pará, em 5 de novembro – 18 dias
depois do flagrante –, e da delegada Flávia Pereira. “Em decorrência da conduta
desta acusada, a vítima sofreu os mais diversos abusos em seus direitos”,
descreve a denúncia. “Depois de lavrado o flagrante, nem ao menos um ofício
requerendo sua transferência para uma penitenciária feminina foi confeccionado”.
(“Infelizmente todos foram afastados”, lamenta João
Nascimento de Moraes, presidente do Sindicato dos Delegados do Estado do Pará
(Sindelp). “Eles são vítimas de um sistema carcerário em frangalhos. Os
culpados são primeiro, o governo federal, depois, o estadual”. De acordo com
Moraes, a demissão dos delegados extinguiu o vínculo com a polícia e, conseqüentemente,
com o sindicato. A exceção é Rodolfo Gonçalves. Contratado como um “faz tudo”
do Sindelp, recebe hoje pouco mais de um salário mínimo por mês. “Foi uma
maneira que arrumamos para ele não morrer de fome”, justifica Moraes.)
Apesar de ainda responderem ao processo penal, os
investigadores de polícia Adilson Pires de Lima e Sérgio Teixeira da Silva
foram absolvidos por falta de provas no Processo Administrativo instaurado pela
Polícia Civil. O assessor de imprensa do órgão, que só revelou seu prenome
─ Valrimar ─, limitou-se a informar que nenhum deles trabalha mais na
comarca de Abaetetuba. Não disse para onde foram transferidos os dois acusados
de lesão corporal grave e ameaça.
Embora não figure entre os réus, a juíza Clarice
Maria de Andrade foi aposentada compulsoriamente pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) em 20 de abril de 2010. Em 14 de junho de 2012, os ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF) anularam a decisão por considerá-la “excessiva”.
A determinação do STF foi publicada em junho deste ano, quando Clarice já fora
nomeada juíza titular da comarca de Ananindeua.
L.A.B. esteve sob a proteção do Programa de
Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM) até completar 18
anos. Em 6 de junho de 2010, segundo a Vara da Infância e da Juventude do
Distrito Federal, migrou para outro programa destinado a adultos. Convidada a
justificar a mudança, a Secretaria de Direitos Humanos, que até então
respondera a todas as perguntas formuladas pelo site de VEJA, encerrou o
assunto com uma desculpa nada esclarecedora: não podia fornecer “informações
sobre pessoas que fazem parte dos seus programas de proteção, como forma de
garantir sua segurança e integridade”.
Passados seis anos, os policiais que abandonaram
L.A.B. no cais do porto de Abaetetuba conseguiram o que queriam. Eles continuam
em liberdade. Lidiane Alves Brasil desapareceu.
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