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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O escarro é um resumo de Jean Wyllys



A noção de culpa é abolida pelos regimes de esquerda para justificar todos os crimes para sua instauração e preservação

Por Augusto Nunes, 09/10/2016,
 www.veja.com.br


Texto de Valentina de Botas

Com um problema sério, fui tomar um café pertinho de casa com uma pessoa que talvez pudesse me ajudar. Meu problema não importa aqui e coisas piores acontecem a pessoas melhores do que eu, o mais importante são os ipês despudoradamente floridos que contemplei no caminho.

Não sou como a Gabriela da música da Gal: não nasci assim, não cresci assim e não serei sempre assim – eu mudo, ouso pequenas e maiores transgressões íntimas, olho para trás como Orfeu (ah! a alegria do risco, o direito à curiosidade, a vertigem da transgressão) para me descobrir ao mesmo tempo Eurídice no interstício de luz e sombra; como fez a mulher de Ló (ah! o preço pelo sal da vida); me arrependo e sigo em frente com o ego trincado que vai aprendendo a parar de se achar o tal. Mas sem esse papo de metamorfose ambulante, esse radicalismo de gente doidona não é minha praia: mesmo adolescente, esquerdista querendo mudar o país com a revolução e tal, eu continuava trabalhando direitinho para o patrão capitalista porque meus pais precisavam da minha ajuda e porque eu tinha meus próprios sonhos que escondia do partido; também continuei excelente aluna, com as melhores notas do colégio porque gostava de estudar, não queria magoar meu pai e nem levar bronca da minha mãe. Sim: culpa, graças a Deus! Sabem quem também muda? Clodovis Boff, o único frei verdadeiro entre os dois irmãos.

Desde a última lua quase não comia e não conseguia acompanhar a marcha do grupo. A dor que começou difusa, pedagógica e lancinante, ensinava ao corpo o que fazer. Agora os espasmos se concentravam no ventre e pareciam liquefazer os ossos da pelve derretendo-os dentro da carne trêmula. O suor e o sangue abundantes, a boca seca e o coração acelerado eram a concretude do perigo de que não podia sequer tentar fugir: a coisa estava dentro dela. Quando uma queimação substitui as pontadas lancinantes e parecia que o universo se tornaria escuridão, tudo cessou; e uma onda maior de ocitocina e serotonina banhou o diminuto cérebro. Suspirou confusa, aliviada, quase eufórica se não fosse o cansaço, abriu os olhos e viu, no chão entre as pernas, aquela coisa suja que quase a matara e era a coisa mais linda da mamãe: o incondicional amor materno condicionado por uma trama delicada e complexa de hormônios se impunha para evitar que a criaturinha fosse rejeitada pelo bando e a espécie se extinguisse.

E o pai da criaturinha? Não havia pai, isto é, Jacques Barbaut, em “O nascimento através dos tempos e dos povos”, conta que os outros bichos do bando proto-humano se afastaram apavorados da parturiente, pois não relacionavam coito à procriação e, então, passaram a atribuir um poder inexplicável àquelas criaturas capazes de se reproduzirem e que os enchiam de temor. Quando a ficha caiu, o eixo do poder transitou para o macho e o resto é história. O que importa aqui é que nascimento, morte e outros fenômenos da existência e ela própria têm um percurso de apreensão cognitiva e racional só possível com a evolução do homem da qual são inseparáveis “os determinantes aspectos cerebrais/mentais relacionados à imaginação, questionamentos e curiosidade que, somados ao poder do raciocínio, impelem o homem a investigar as razões dos fenômenos que o cercam, especulando vagamente sobre sua própria existência…”, afirma Darwin em “The descent of man, and selection in relation to sex”, constatando a espiritualidade/religiosidade como dimensão intrínseca à nossa espécie. O que intrigava o cientista era a existência da fé.

A noção de culpa, da tradição judaico-cristã e tão atacada por ateus e demais críticos, é virtude que salvou Raskólnikov (de “Crime e castigo”) de ser o “homem extraordinário” a quem tudo é permitido porque, bem, é um homem extraordinário e/ou tem um destino ou causa superior a cumpri, a quem tudo é permitido: “Os homens ordinários devem viver na obediência e não têm o direito de transgredir a lei, uma vez que são ordinários. Os indivíduos extraordinários, por sua vez, têm o direito de cometer todos os crimes e de violar todas as leis pela única razão de serem extraordinários”.

Isso me faz pensar em “Como é possível um deputado com dois mandatos, um gay assumido, com prestígio internacional, honesto política e intelectualmente, ter ido ao Conselho de Ética?”, a indagação de Jean Wyllys, o deputado federal que cuspiu a honestidade política e intelectual dele em Jair Bolsonaro, outro deputado federal. A pergunta retórica e desonesta confirma que a honestidade e a competência política e intelectual dele se consubstanciam na substância de um escarro: o currículo militante não está em questão, mas o fato de Sua Excrescência ter cuspido em outra Excrescência, ferindo o decoro da Casa do Povo e de qualquer ambiente pelo menos isso aqui ó acima da linha da sordidez e, Wyllys, apesar de se achar extraordinário, tem ou de respeitar regras ou de responder no Conselho de Ética. A culpa que ele desconhece levou Raskólnikov a admitir a motivação real do duplo assassinato: matou por prazer a velha agiota e usurária que o achacava e a irmã dela, uma boa pessoa, porque o flagrou.

A noção de culpa – com outro nome e nuances em outros sistemas religiosos – é abolida pelos regimes de esquerda para justificar todos os crimes para sua instauração e preservação. Essa vocação para “o extraordinário” que não tenho foi uma das razões mais fortes que me fizeram encerrar minha curta carreira de esquerdista. A fala do extraordinário Wyllys é a paráfrase do escarro da extraordinária Dilma Rousseff no drama dos mais vulneráveis ao esbulho do país que ela continuou e na inteligência de todos que sabem diferenciar o produto expectorado e a verdade: como uma mulher honrada, sem conta no exterior, eleita pelo voto popular, torturada na ditadura militar pode ser deposta? É a paráfrase do escarro do extraordinário jeca na boca da democracia que o beijou quando acusa todo cidadão, político ou não, que lhe faça críticas de não “tolerar que um operário fosse presidente”: como o homem cuja mãe nasceu analfabeta, esse Jesus que desceu da Glória só para se fazer presidente e conceder aos pobres que andassem de avião, pode ser submetido a leis que a todos submetem?

Datam do Superior Paleolítico os primeiros registros em arte rupestre do pensamento simbólico, faculdade necessária ao desenvolvimento da religiosidade; há indícios de rituais de velório de 95 mil anos alimentando a especulação sobre o início de nossas infindáveis angústias metafísicas. Mircela Eliade, em “História das crenças e das ideias religiosas”, diz que o sagrado significa o real e, para os povos arcaicos, ele está no mundo terreno, portanto é mundano e sagrado simultaneamente. Essa dimensão que estrutura a existência humana, variando no tempo e no espaço, se sedimentou e nenhum homem nasce sem espiritualidade, mas Karl Marx reduziu tudo a uma equação desprezível na tal superestrutura a serviço da lógica burguesa que aliena as consciências com o ópio do povo. Ele nem imaginava que, conforme disse Tim Maia, “no Brasil, prostituta se apaixona, traficante cheira, cafetão tem ciúme e cristão é comunista” e é assim que Marcelo Heitor, sobrinho do Zeca do PT, tentou se eleger vereador filiando-se ao PCdoB e invocando Deus. Ora, um comunista cristão não é nem comunista nem cristão, é só um farsante.

Há uns 10 anos, frei Clodovis Boff abandonou a teologia da libertação denunciando o coração sujo dela que a fez degenerar em ideologia: a inversão epistemológica em que o pobre, e não mais Deus, é o primeiro princípio da teologia. Isso mata a teologia fazendo o Transcendente se submeter ao imanente e inviabiliza a liberdade, pois instrumentaliza a fé para doutrinamento político. As religiões, a democracia e o capitalismo não são perfeitos, mas, além de o fato de o capitalismo não ser doutrina moral enquanto o comunismo pretende ser o código moral em substituição àquele alicerçado na tradição judaico-cristã, foi somente nas sociedades democráticas e capitalistas, entre povos que não abolem nem impõem religiões, que se solidificaram e estão disponíveis os mais importantes avanços humanos de qualquer tipo, a começar pelo essencial: a liberdade. Archie Brown, no excelente “Ascensão e queda do comunismo”, sustenta que a União Soviética acabou quando a liberdade chegou.

A liberdade, apesar dos extraordinários lulopetistas, preservou-se no país e por isso conseguimos, se ainda não tirar o país do vermelho, tirar o vermelho do país. Não obtive ajuda e não pude ainda resolver meu problema, mas os ipês estão por perto e, embora eu não possa provar, tenho a convicção de que Deus também.

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