A noção de culpa é abolida pelos
regimes de esquerda para justificar todos os crimes para sua instauração e
preservação
Por Augusto
Nunes, 09/10/2016,
www.veja.com.br
Texto de Valentina de Botas
Com um problema sério, fui tomar um café pertinho
de casa com uma pessoa que talvez pudesse me ajudar. Meu problema não importa
aqui e coisas piores acontecem a pessoas melhores do que eu, o mais importante
são os ipês despudoradamente floridos que contemplei no caminho.
Não sou como a Gabriela da música da Gal: não nasci
assim, não cresci assim e não serei sempre assim – eu mudo, ouso pequenas e
maiores transgressões íntimas, olho para trás como Orfeu (ah! a alegria do
risco, o direito à curiosidade, a vertigem da transgressão) para me descobrir
ao mesmo tempo Eurídice no interstício de luz e sombra; como fez a mulher de Ló
(ah! o preço pelo sal da vida); me arrependo e sigo em frente com o ego
trincado que vai aprendendo a parar de se achar o tal. Mas sem esse papo de metamorfose
ambulante, esse radicalismo de gente doidona não é minha praia: mesmo
adolescente, esquerdista querendo mudar o país com a revolução e tal, eu
continuava trabalhando direitinho para o patrão capitalista porque meus pais
precisavam da minha ajuda e porque eu tinha meus próprios sonhos que escondia
do partido; também continuei excelente aluna, com as melhores notas do colégio
porque gostava de estudar, não queria magoar meu pai e nem levar bronca da
minha mãe. Sim: culpa, graças a Deus! Sabem quem também muda? Clodovis Boff, o
único frei verdadeiro entre os dois irmãos.
Desde a última lua quase não comia e não conseguia
acompanhar a marcha do grupo. A dor que começou difusa, pedagógica e
lancinante, ensinava ao corpo o que fazer. Agora os espasmos se concentravam no
ventre e pareciam liquefazer os ossos da pelve derretendo-os dentro da carne
trêmula. O suor e o sangue abundantes, a boca seca e o coração acelerado eram a
concretude do perigo de que não podia sequer tentar fugir: a coisa estava
dentro dela. Quando uma queimação substitui as pontadas lancinantes e parecia
que o universo se tornaria escuridão, tudo cessou; e uma onda maior de
ocitocina e serotonina banhou o diminuto cérebro. Suspirou confusa, aliviada,
quase eufórica se não fosse o cansaço, abriu os olhos e viu, no chão entre as
pernas, aquela coisa suja que quase a matara e era a coisa mais linda da mamãe:
o incondicional amor materno condicionado por uma trama delicada e complexa de
hormônios se impunha para evitar que a criaturinha fosse rejeitada pelo bando e
a espécie se extinguisse.
E o pai da criaturinha? Não havia pai, isto é,
Jacques Barbaut, em “O nascimento através dos tempos e dos povos”, conta que os
outros bichos do bando proto-humano se afastaram apavorados da parturiente,
pois não relacionavam coito à procriação e, então, passaram a atribuir um poder
inexplicável àquelas criaturas capazes de se reproduzirem e que os enchiam de
temor. Quando a ficha caiu, o eixo do poder transitou para o macho e o resto é
história. O que importa aqui é que nascimento, morte e outros fenômenos da
existência e ela própria têm um percurso de apreensão cognitiva e racional só
possível com a evolução do homem da qual são inseparáveis “os determinantes
aspectos cerebrais/mentais relacionados à imaginação, questionamentos e
curiosidade que, somados ao poder do raciocínio, impelem o homem a investigar
as razões dos fenômenos que o cercam, especulando vagamente sobre sua própria
existência…”, afirma Darwin em “The descent of man, and selection in relation to
sex”, constatando a espiritualidade/religiosidade como dimensão intrínseca à
nossa espécie. O que intrigava o cientista era a existência da fé.
A noção de culpa, da tradição judaico-cristã e tão
atacada por ateus e demais críticos, é virtude que salvou Raskólnikov (de
“Crime e castigo”) de ser o “homem extraordinário” a quem tudo é permitido
porque, bem, é um homem extraordinário e/ou tem um destino ou causa superior a
cumpri, a quem tudo é permitido: “Os homens ordinários devem viver na
obediência e não têm o direito de transgredir a lei, uma vez que são
ordinários. Os indivíduos extraordinários, por sua vez, têm o direito de
cometer todos os crimes e de violar todas as leis pela única razão de serem
extraordinários”.
Isso me faz pensar em “Como é possível um deputado
com dois mandatos, um gay assumido, com prestígio internacional, honesto
política e intelectualmente, ter ido ao Conselho de Ética?”, a indagação de
Jean Wyllys, o deputado federal que cuspiu a honestidade política e intelectual
dele em Jair Bolsonaro, outro deputado federal. A pergunta retórica e desonesta
confirma que a honestidade e a competência política e intelectual dele se
consubstanciam na substância de um escarro: o currículo militante não está em
questão, mas o fato de Sua Excrescência ter cuspido em outra Excrescência,
ferindo o decoro da Casa do Povo e de qualquer ambiente pelo menos isso aqui ó
acima da linha da sordidez e, Wyllys, apesar de se achar extraordinário, tem ou
de respeitar regras ou de responder no Conselho de Ética. A culpa que ele
desconhece levou Raskólnikov a admitir a motivação real do duplo assassinato:
matou por prazer a velha agiota e usurária que o achacava e a irmã dela, uma
boa pessoa, porque o flagrou.
A noção de culpa – com outro nome e nuances em
outros sistemas religiosos – é abolida pelos regimes de esquerda para
justificar todos os crimes para sua instauração e preservação. Essa vocação
para “o extraordinário” que não tenho foi uma das razões mais fortes que me
fizeram encerrar minha curta carreira de esquerdista. A fala do extraordinário
Wyllys é a paráfrase do escarro da extraordinária Dilma Rousseff no drama dos
mais vulneráveis ao esbulho do país que ela continuou e na inteligência de
todos que sabem diferenciar o produto expectorado e a verdade: como uma mulher
honrada, sem conta no exterior, eleita pelo voto popular, torturada na ditadura
militar pode ser deposta? É a paráfrase do escarro do extraordinário jeca na
boca da democracia que o beijou quando acusa todo cidadão, político ou não, que
lhe faça críticas de não “tolerar que um operário fosse presidente”: como o
homem cuja mãe nasceu analfabeta, esse Jesus que desceu da Glória só para se
fazer presidente e conceder aos pobres que andassem de avião, pode ser
submetido a leis que a todos submetem?
Datam do Superior Paleolítico os primeiros
registros em arte rupestre do pensamento simbólico, faculdade necessária ao
desenvolvimento da religiosidade; há indícios de rituais de velório de 95 mil
anos alimentando a especulação sobre o início de nossas infindáveis angústias
metafísicas. Mircela Eliade, em “História das crenças e das ideias religiosas”,
diz que o sagrado significa o real e, para os povos arcaicos, ele está no mundo
terreno, portanto é mundano e sagrado simultaneamente. Essa dimensão que estrutura
a existência humana, variando no tempo e no espaço, se sedimentou e nenhum
homem nasce sem espiritualidade, mas Karl Marx reduziu tudo a uma equação
desprezível na tal superestrutura a serviço da lógica burguesa que aliena as
consciências com o ópio do povo. Ele nem imaginava que, conforme disse Tim
Maia, “no Brasil, prostituta se apaixona, traficante cheira, cafetão tem ciúme
e cristão é comunista” e é assim que Marcelo Heitor, sobrinho do Zeca do PT,
tentou se eleger vereador filiando-se ao PCdoB e invocando Deus. Ora, um
comunista cristão não é nem comunista nem cristão, é só um farsante.
Há uns 10 anos, frei Clodovis Boff abandonou a
teologia da libertação denunciando o coração sujo dela que a fez degenerar em
ideologia: a inversão epistemológica em que o pobre, e não mais Deus, é o
primeiro princípio da teologia. Isso mata a teologia fazendo o Transcendente se
submeter ao imanente e inviabiliza a liberdade, pois instrumentaliza a fé para
doutrinamento político. As religiões, a democracia e o capitalismo não são
perfeitos, mas, além de o fato de o capitalismo não ser doutrina moral enquanto
o comunismo pretende ser o código moral em substituição àquele alicerçado na
tradição judaico-cristã, foi somente nas sociedades democráticas e
capitalistas, entre povos que não abolem nem impõem religiões, que se
solidificaram e estão disponíveis os mais importantes avanços humanos de
qualquer tipo, a começar pelo essencial: a liberdade. Archie Brown, no
excelente “Ascensão e queda do comunismo”, sustenta que a União Soviética
acabou quando a liberdade chegou.
A liberdade, apesar dos extraordinários
lulopetistas, preservou-se no país e por isso conseguimos, se ainda não tirar o
país do vermelho, tirar o vermelho do país. Não obtive ajuda e não pude ainda
resolver meu problema, mas os ipês estão por perto e, embora eu não possa
provar, tenho a convicção de que Deus também.
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