A doida mansa de Taquaritinga que se dizia herdeira do Banco do Brasil
era mais sensata que o fundador de um país inexistente e a alma penada que uiva
no Palácio do Planalto
Por Augusto
Nunes, 29/04/2016,
www.veja.com.br
Já contei aqui a história da doida mansa que, no
começo dos anos 60, apareceu no portão da minha casa em Taquaritinga para
buscar a chave do Banco do Brasil. Ouvi a campainha, vi pela janela da sala de
jantar uma mulher negra, franzina e maltrapilha e saí para atendê-la. Ela quis
saber se eu era filho do prefeito. Disse que sim. Ela informou que era filha de
Getúlio Vargas. Achei que aquilo era assunto para gente grande e fui chamar minha
mãe.
Antes que dona Biloca dissesse alguma coisa, ela se
identificou novamente e revelou que o pai lhe deixara como herança o Banco do
Brasil. Com o suicídio, tornara-se dona da instituição financeira, incluídos
bens imóveis e funcionários ─ além do mundaréu de dinheiro, naturalmente. O
doutor Getúlio avisara que a chave de cada agência ficava sob a guarda do
prefeito. Quando quisesse ou precisasse, bastaria solicitá-la ao chefe do
Executivo municipal.
Era por isso que estava lá, repetiu ao fim da
exposição. Meu pai estava na prefeitura, entrei na conversa. A herdeira do
banco disse que esperaria no portão. Dona Biloca percebeu que aquela maluquice
iria longe, decidiu passar a pendência adiante e transferiu-a para o
primogênito ─ que, para sorte de ambas, trabalhava no Banco do Brasil de
Taquaritinga. Depois de ensinar o caminho mais curto, recomendou-lhe que fosse
até a agência, procurasse um moço chamado Flávio e transmitisse o recado: “Diga
que a mãe dele mandou dar um jeito no problema da senhora”.
O jeito que deu confirmou que meu irmão mais velho
era mesmo paciente e imaginoso. Ao saber com quem estava falando, dispensou a
visitante as deferências devidas a uma filha do presidente da República, ouviu
o caso com cara de quem está acreditando em tudo e, terminada a narrativa,
pediu licença para falar com o gerente. Foi ao banheiro e voltou cinco minutos
depois com a informação: a chave estava no cofre da agência, não na casa do
prefeito. Mas só poderia entregá-la se a filha de Getúlio confirmasse a paternidade
ilustre.
“A senhora precisa buscar a certidão de nascimento
no cartório”, explicou Flávio. Ela pareceu feliz, levantou-se da cadeira e
avisou que em meia hora estaria de volta com o papel. Ressurgiu três ou quatro
meses mais tarde, mas de novo no portão da minha casa, outra vez atrás do
prefeito. De novo foi encaminhada ao moço da agência, que liquidou a questão do
mesmo jeito. O ritual teve quatro reprises em menos de dois anos. Até que um
dia ela saiu em direção ao cartório e nunca mais voltou.
Lembrei-me da doida mansa que coloriu
minha infância quando o presidente Lula registrou em cartório um Brasil
inexistente. Conferi o calhamaço e fiquei pasmo. Tinha trem-bala, aviões que
pousavam e decolavam com a pontualidade da rainha da Inglaterra, rodovias
federais de humilhar motorista alemão, luz e moradia para todos, três refeições
por dia para a nova classe média, formada pelos pobres dos tempos de FHC. Quem
quisesse ver mendigo de perto que fosse até Paris e se contentasse com algum
clochard.
A transposição das águas do São
Francisco havia exterminado a seca e transformado o Nordeste numa formidável
constelação de lagos, represas e piscinas. O sertão ficara melhor que o mar. Os
morros do Rio viviam em paz, os barracos valiam mais que as coberturas do Leblon.
E ainda nem começara a exploração do pré-sal, que promoveria o Brasil a
presidente de honra da OPEP. Faltava pouco para que a potência
sul-americana virasse uma Noruega ensolarada.
No país do cartório, o governo não roubava nem
deixava roubar, o Mensalão nunca existira, os delinqüentes engravatados estavam
todos na cadeia, os ministros e os parlamentares serviam à nação em tempo
integral e o presidente da República cumpria e mandava cumprir cada um dos Dez
Mandamentos. Lula fizera em oito anos o que os demais governantes não haviam
sequer esboçado em 500.
Quando conheci aquela mistura de Pasárgada com
emirado árabe, bateu-me a suspeita: daqui a alguns anos, é possível que um
filho do prefeito de São Bernardo do Campo tenha de lidar com um homem gordo,
de barba grisalha, voz roufenha e o olhar brilhante dos doidos de pedra,
exigindo a devolução da maravilha que sumiu. A filha de Getúlio tropeçara na
falta da certidão de nascimento. O pai do país imaginário estará sobraçando a
papelada cheia de selos, carimbos, rubricas e garranchos.
Lembrei-me de novo da filha de Getúlio ao ver o que
Dilma Rousseff anda fazendo para continuar no emprego que já perdeu. Depois do
comício de todas as tardes, a alma penada atravessa a noite e a madrugada
uivando o mantra: “É golpe”. É muito provável que, daqui a alguns anos, apareça
na porta da casa do prefeito de Porto Alegre a mulher de terninho vermelho,
calça preta e cara de desquitada de antigamente que, com aquele andar de John
Wayne, zanza pelas ruas repetindo o grito de guerra: “Foi golpe!”
Apesar do juízo avariado, nem ela vai querer que
lhe devolvam o Brasil que destruiu. Só exigirá as chaves do Palácio do Planalto
e do Palácio da Alvorada. Os filhos do prefeito da capital gaúcha poderão
livrar-se sem dificuldades da visitante. Bastará pedir-lhe que mostre o
certificado de deposição arbitrária com as assinaturas de pelo menos três
golpistas de alta patente — todas com firma reconhecida em cartório — e
presenteá-la com um exemplar da Constituição.
Nenhum comentário:
Postar um comentário