Por Augusto Nunes, 12/04/2016,
www.veja.com.br
Texto de
Fernão Lara Mesquita publicado no Estadão
Distribuir postos privilegiados de tocaia ao
dinheiro público a perseguidos pela polícia; contratar explicitamente o assalto
ao Estado de amanhã para comprar a impunidade pelo assalto ao Estado de ontem;
distribuir dinheiro, cargos e até ministérios, como os da Saúde e da Educação,
não com a desculpa da “governabilidade”, como de hábito, mas declaradamente
para salvar Dilma Rousseff de responder por seus atos?
Se não tivesse havido crime nenhum até esse momento
– que houve –, aí está mais um flagrante de “desvio de finalidade” pra ninguém
botar defeito.
Assim como não entendem o sentido de democracia,
institucionalidade e interesse público, Dilma Rousseff e o PT nunca entenderam
a natureza desta crise. Não custa repetir: a vitória sobre a regra é a crise; a
garantia da vitória da regra, sempre, é o único antídoto para a crise.
Releve-se o acinte dos berros de “golpe”. Vamos que
tudo isso “dê certo”; que todos os gatos de Lula e Dilma sejam vendidos por
lebres não porque tenham deixado de ser gatos, mas porque os “seus” juristas e
legisladores consigam impor uma lei determinando que gato passe a ser chamado
de lebre. A confiança se restabelece? Desaparece o buraco? A economia retoma a
sua marcha? Pois é. Cada vez que o PT comemora o “sucesso” de mais uma operação
de uso da lei para driblar a lei e das instituições para destruir as
instituições, mais irreversivelmente ele se descredencia para reverter à crise
de confiança e liderar a ressurreição da economia.
Ao definir-se entre a véspera e o dia seguinte de
uma eleição para o cargo máximo de um regime de representação como o avesso do
que vendeu aos seus representados, Dilma Rousseff selou o seu destino. Teve uma
oportunidade de remissão quando deu a Joaquim Levy a encomenda de desfazer o
que tinha feito, mas a tentativa esvaiu-se na implacável determinação do PT de
não retroceder um centímetro no território ocupado do Estado brasileiro.
Tudo o que aconteceu desde então tem sido um
desperdício criminoso no altar de um delírio de poder antidemocrático e de uma
arrogância doentia cujas falsas expectativas ninguém menos que o STF tem
contribuído para alimentar. Tudo tem sido tratado como se só o que estivesse em
causa fossem os direitos individuais de Dilma Vana Rousseff, e não os dos 204
milhões de brasileiros cuja obra de vida está sendo destroçada. A estes se nega
liminarmente o direito à “ampla defesa”, em nome da qual a continuação de todos
os “crimes difusos” tem sido justificada, apesar dos flagrantes sucessivos da
polícia. Única instituição com poder de definir limites para essa obra de
desconstrução, o STF – seja quando provocado, seja por iniciativa individual de
ministros que não se mostram à altura da instituição – tem produzido
invariavelmente o efeito de empurrar sempre para mais longe as margens do atoleiro
eventualmente alcançadas.
A discussão bizantina sobre se é crime ou não é
crime destruir um país mediante o meticuloso processo com que se preparou passo
a passo, com dolo e com cálculo, o terreno para o logro que foi esta eleição,
revelado na minuciosa reconstituição dos fatos pela polícia, só permanece em pé
graças aos sucessivos “habeas corpus” que têm sido concedidos às formalidades
capengas por baixo das quais se esconde a mais rasteira e, graças a eles,
reiterada má-fé.
Não é por acaso que o surrado expediente batizado
nesta reedição extemporânea como “pedaladas fiscais” está exatamente descrito e
tipificado como crime em todas as legislações democráticas do mundo, assim como
na Lei de Responsabilidade Fiscal brasileira. Levar um país à desestruturação
fiscal para comprar poder e privilégios para uma casta é o maior e o mais velho
dos crimes. O Brasil sabe por experiência própria que é assim que se arrasa a
esmo a economia das famílias, destrói a obra e compromete-se o futuro de
gerações inteiras. Manter tais processos ocultos mediante a falsificação de
contas, a mentira e o terrorismo verbal é tão imperdoável quanto detectar um
câncer num paciente, mas declará-lo são e proibir que seja tratado até que seja
tarde demais para curá-lo.
O isolamento geográfico e institucional de Brasília
é um dado essencial da tragédia brasileira. Fosse a capital da República aqui
no país dos 10 milhões de desempregados só pelo aperitivo do desastre que se
está armando e os palácios já estariam cercados. Mas lá, onde os empregos nunca
se extinguem, os salários sobem por decurso de prazo e as aposentadorias valem
33 vezes o que valem as nossas, soa razoável que venham de dentro deles, e aos
berros, as ameaças de “pegar em armas” contra a ralé que reclama por pagar com
miséria por tais “direitos adquiridos”. Os milhões de epopéias e dramas que
constituem a carne e os ossos de tudo o que se abriga por baixo da expressão
“economia brasileira” simplesmente não repercutem naquele mundo onde é no
grito, quando não na “mão grande”, que se ganha à vida e todo argumento
racional se dissolve no liquidificador do silogismo formalista.
Um tanto tardiamente a parte sadia do Congresso
esboça uma reação. Mas para além da responsabilização de quem cometeu crime de
responsabilidade sem a qual a economia não voltará a respirar, esta crise põe
novamente em tela a urgência da mudança essencial pela qual o Brasil terá de
passar se quiser um lugar num mundo que não tolera mais meias medidas. Para
garantir que os representantes dentro do nosso sistema de decisões de fato ajam
no interesse de seus representados é preciso transferir o direito à última
palavra sobre os destinos da coletividade das mãos de grupos delimitados
cooptáveis que vivem numa redoma de privilégio para as dos próprios interessados
mediante a tecnologia do voto distrital com recall, que põe esse poder nas mãos
do conjunto dos eleitores e separa as verdadeiras democracias dos regimes
obsoletos de servidão, mentira e exploração da miséria.
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