Por Augusto Nunes, 08/04/2016,
www.veja.com.br
Há uma semana, a reportagem de capa de VEJA
expôs o estreito parentesco que liga o Petrolão, o Mensalão e o assassinato de
Celso Daniel, alvo da 27ª fase da Lava Jato, batizada de Carbono 14. Os três
escândalos pertencem à mesma linhagem político-policial. Foram praticados pelo
mesmo clã. E demonstram, somados, que a transformação do PT em organização fora
da lei começou a desenhar-se em janeiro de 2002.
Na montanha de provas e evidências acumuladas durante o
percurso do caminho da perdição, destaca-se uma preciosidade desconhecida por
milhões de brasileiros: o lote de áudios que registram conversas de altíssimo
teor explosivo grampeadas há mais de 14 anos. O palavrório parece avô do
grampo, divulgado recentemente pelo juiz Sérgio Moro, que mostra Lula e seus
devotos em ação.
Se fosse só prefeito, Celso Daniel já teria brilho suficiente
para figurar na constelação das estrelas nacionais do PT. Uma das maiores
cidades do país, Santo André é a primeira letra do ABC, berço político de Lula
e do partido. Mas em janeiro de 2002 ele já cruzara as fronteiras da
administração municipal para coordenar a montagem do programa de governo do
candidato à Presidência. Ocupava o mesmo cargo que transformaria Antônio
Palocci em ministro da Fazenda quando foi seqüestrado numa esquina de São
Paulo, torturado e fuzilado.
Foi um crime político, berraram em coro os Altos Companheiros
assim que o corpo foi encontrado numa estrada de terra perto da capital. A
comissão de frente escalada pelo PT para o cortejo fúnebre, liderada por José
Dirceu, Aloízio Mercadante e Luiz Eduardo Greenhalgh, caprichou no visual. O
olhar colérico, o figurino de quem não tivera tempo nem cabeça para combinar o
paletó com a gravata, o choro dos órfãos de pai e mãe, os cabelos
cuidadosamente desalinhados – os sinais de sofrimento se acotovelavam da cabeça
aos sapatos.
Até então, a única versão na praça se amparava no que tinha
contado o empresário Sérgio Gomes da Silva, o “Sombra”, ex-assessor de Celso
Daniel. Segundo o relato, os dois voltavam do jantar num restaurante em São
Paulo quando o carro (blindado) foi interceptado numa esquina por bandidos que,
estranhamente, levaram só o prefeito e nem tocaram na testemunha. O depoimento
de Sombra pareceu tão verossímil quando uma nevasca no Nordeste. Mas a comissão
de frente monitorada por Lula não tinha tempo a perder com possíveis
contradições no samba-enredo.
Embora mal ajambrada, a letra combinava com o refrão que
interessava ao PT: Celso Daniel fora assassinado por motivos políticos. Dirceu
e Mercadante lembraram que panfletos atribuídos a uma misteriosa organização
ultradireitista haviam prometido a execução de dirigentes do partido.
Toninho do PT, prefeito de Campinas, fora abatido a tiros em setembro de 2001.
Celso Daniel era a segunda vítima. Grávido de ira com a reprise da tragédia,
Greenhalgh acusou o presidente Fernando Henrique Cardoso de ter ignorado os apelos
para que adotasse meia dúzia de medidas preventivas.
Em pouco tempo, a polícia paulista prendeu alguns prontuários
ambulantes, que assumiram a autoria do assassinato, e deu o caso por encerrado.
Paradoxalmente, o PT endossou sem ressalvas a tese do crime comum. A família de
Celso Daniel discordou do desfecho conveniente. O Ministério Público achou a
conclusão apressada e seguiu investigando a história muito mal contada. Logo
emergiram evidências de que o crime tivera motivações políticas, sim. Só que os
bandidos eram ligados ao PT.
Ainda no início do último mandato de Celso Daniel,
empresários da área de transportes e pelo menos um secretário municipal haviam
concebido, com a concordância da autorização do prefeito, o embrião do que o
Brasil contemplaria, em escala extraordinariamente ampliada, com a descoberta
do Mensalão. Praticando extorsões ou desviando dinheiro público, a quadrilha
infiltrada na administração de Santo André supria campanhas do PT. Em 2001, ao
constatar que os quadrilheiros estavam embolsando boa parte do dinheiro, Celso
Daniel avisou que denunciaria a irregularidade ao comando do partido. Foi para
tratar desse assunto que Sombra, um dos pecadores, convidou o prefeito para um
jantar em São Paulo.
Entre o fim de janeiro e meados de março de 2002,
investigadores da PF encarregados de esclarecer o assassinato gravaram muitas
horas de conversas telefônicas entre cinco protagonistas da história de horror:
Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, Ivone Santana, namorada da vítima (que já se
havia separado de Miriam Belchior), Klinger Luiz de Oliveira, secretário de
Serviços Municipais, Gilberto Carvalho, secretário de Governo de Santo André, e
Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado do PT para causas especialmente cabeludas. As
42 fitas resultantes da escuta foram encaminhadas ao juiz João Carlos da Rocha
Mattos.
Em março de 2003, pouco depois do início do primeiro mandato
presidencial de Lula, o magistrado alegou que as gravações haviam sido feitas
sem autorização judicial e ordenou que fossem destruídas. A queima de arquivo
malogrou: incontáveis cópias dos áudios garantiram a eternidade dos registros
telefônicos. Em outubro de 2005, quando cumpria a pena de prisão imposta ao
juiz que prosperou como vendedor de sentenças, Rocha Mattos revelou a VEJA que os
diálogos mais comprometedores envolviam Gilberto Carvalho,
secretário-particular de Lula de janeiro de 2003 a dezembro de 2010 e chefe da
Secretaria Geral da Presidência no primeiro mandato de Dilma Rousseff.
“Ele comandava todas as conversas”, disse Rocha Mattos. “Dava
orientações de como as pessoas deviam proceder e mostrava preocupação com as
buscas da polícia no apartamento de Celso Daniel”. Em abril de 2011, já em
liberdade, Rocha Mattos reiterou a acusação. “A apuração do caso do Celso
começou no fim do governo FHC”, afirmou. “A pedido do PT, a PF entrou no caso.
Mas, quando o Lula assumiu, a PF virou, obviamente. Daí, ela, a PF, adulterou
as fitas, eu não sei quem fez isso lá. A PF apagou as fitas, tem trechos com
conversas não transcritas. O que eles fizeram foi abafar o caso, porque era
muito desgastante, mais que o Mensalão. O que aconteceu foi que o dinheiro das
companhias de ônibus, arrecadados para o PT, não estava chegando integralmente
a Celso Daniel. Quando ele descobriu isso, a situação dele ficou muito difícil.
Agentes da PF manipularam as fitas de Celso Daniel. A PF fez um filtro nas
fitas para tirar o que talvez fosse mais grave envolvendo Gilberto Carvalho”.
As seis gravações escancaram a sórdida conjura dos grampeados
dispostos a tudo para enterrar na vala dos crimes comuns um homicídio repleto
de digitais do PT. A história do prefeito seqüestrado, torturado e morto é um
caso de polícia e uma coisa da política. As conversas também revelam a alma
repulsiva do bando. Celso Daniel aparece nas gravações como um entulho a
remover. Não merece uma única lágrima, um mísero lamento. Os comparsas se
dedicam em tempo integral à missão de livrar Sombra da cadeia e acalmar o
parceiro que ameaça afundar atirando.
Ouça as vozes dos assassinos de fatos combinando o que fazer
para impedir o esclarecimento do crime hediondo. Passados mais de 14 anos, a
reaparição do fantasma avisa que a tramóia fracassou. Enquanto não for exumada
toda a verdade sobre esse capítulo da história universal da infâmia, todos os
meliantes sobreviventes serão assombrados pelo prefeito proibido de descansar
em paz.
Áudio 1:
Luiz Eduardo Greenhalgh diz a Gilberto Carvalho que é preciso
evitar que João Francisco, um dos irmãos de Celso Daniel, “destile
ressentimentos” no depoimento que se aproxima. “Pelo amor de Deus, isso é
fundamental!”, inquieta-se Carvalho.
Áudio 2:
Um interlocutor não
identificado elogia Ivone Santana, que namorava Celso Daniel desde o fim do
casamento com Miriam Belchior, pela entrevista concedida ao jornal Folha
de S. Paulo. E incentiva a viúva da vez a repetir a performance no programa de
Hebe Camargo. Alegre, Ivone informa que vai fazer o reconhecimento das roupas
da vítima. O homem do outro lado da linha quer saber como “o cara” estava
vestido. “O cara” é o morto que Ivone finge chorar.
Áudio 3:
A beira de um ataque
de nervos, Sombra cobra de Klinger uma imediata operação de socorro.
Sobressaltado com o noticiário jornalístico, exige que Gilberto Carvalho trate
imediatamente de “armar alguma coisa”.
Áudio 4:
Klinger diz a Sombra que Gilberto Carvalho está preocupado
com o teor do iminente depoimento do companheiro acusado de ter ordenado a
morte do prefeito. Sugere um encontro entre os três para combinar o que será
dito. No fim da conversa, os parceiros comemoram a prisão de um suspeito.
Áudio 5:
Gilberto Carvalho cumprimenta Ivone Santana pela boa
performance em entrevistas e depoimentos. Carvalho acha que as declarações
mudarão o rumo das investigações.
Áudio 6:
A secretária de Klinger retransmite a Gilberto Carvalho
rumores segundo os quais a direção nacional do PT pretende manter distância do
caso “para não respingar nada”. Carvalho nega e encerra o diálogo com um recado
sem identificação de destinatário: é nessas horas que se percebe quem são os
verdadeiros amigos.
Com a queima das provas sonoras, Rocha Mattos virou sócio do
clube de magistrados para os quais uma irregularidade processual é muito mais
grave que qualquer delito. Nessa escola de doutores, aprende-se que quem
arromba a porta do vizinho que está matando a mãe e evita a consumação do crime
deve ser preso por invasão de domicílio. Como as gravações das conversas entre
Lula e seus devotos foram autorizadas pelo juiz Sérgio Moro, o ministro Teori
Zavascki anda a caça de outro pretexto semelhante para declarar inexistente o
palavrório que estarreceu o país.
Se seguir o exemplo do juiz ladrão, Teori não tardará a
constatar que errou feio — e errou para nada. Milhares, milhões de cópias em
circulação nas redes sociais informam que a verdade já não pode ser destruída.
Graças à escuta promovida pela Lava Jato, foi abortada uma conspiração contra o
Estado de Direito comandada por Lula e apoiada por Dilma. O resto é firula
bacharelesca, conversa fiada. O essencial é que há culpados a punir. O que
importa é que o castigo virá.
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