Temer governa com honestidade
quanto às próprias despretensões, com a articulação política disponível em meio
ao quase caos, com a gestão administrativa arrancada das garras dos
lulopetistas que não entregaram nem mesmo as chaves de muitas salas
Por Augusto
Nunes, 19/06/2016,
www.veja.com.br
Valentina de Botas
Os inconformados com a Constituição e militantes
das eleições já fizeram um estardalhaço porque Michel Temer se reuniu com Renan
Calheiros no Jaburu numa noite dessas para uma conversa que se estendeu até a
madrugada. Seria mais uma prova incontornável do complô para barrar a Lava Jato
num governo cujo ministro da Justiça, Alexandre Morais, reitera o apoio à
investigação.
É impressionante como os alarmados espíritos a
respeito das eventuais ameaças vindas do governo não tenham se escandalizado
quando o ministro anterior, Eugênio Aragão, ameaçava as equipes se sentisse
“cheiro de vazamento”. E o antecessor, José Eduardo Cardozo, só não o fez
porque não conseguiu; e acabou numa sessão notável da comissão do impeachment,
ao invocar o colega Thomas Turbando, confessando a real e exasperante tarefa
dos defensores de Dilma.
O tal complô do novo governo, entendem os
pró-eleições-já, seria a seqüência da conspirata que afastou Dilma Rousseff.
Sim, aquela presidente de crimes em série; a czarina do petrolão; o poste
autoritário que despreza os limites da democracia aos poderes e quereres de um
poste com complexo de governante; a mandatária que inaugurou dramas novos no
país cujos dramas antigos ela ignorou enquanto os aprofundava.
Contudo, é normal e mesmo desejável que Renan (ou
quem quer que seja o presidente do Congresso) se reúna com Temer (ou quem quer
que seja o presidente interino), num encontro às claras na calada da noite,
depois de termos assistidos entre a perplexidade e a repulsa um jeca sem cargo
receber deputados de alta rotatividade, num hotel, tentando comprar votos
contra a admissibilidade do impeachment. Na velocidade dos dias, parece longínqua
mais uma patifaria do presidiário misteriosamente adiado ocorrida há somente
dois meses.
A falação esquisitona de Sérgio Machado tentando
envolver Michel Temer encurtou ainda mais o tempo para se respirar, ou
refletir. Num país já transitado para a civilização, seria inadmissível o
presidente manter o posto; mas também seria inadmissível um troço como Sérgio
Machado. É essa velocidade que quero comentar. Ralph Waldo Emerson (poeta e
filósofo americano do século 19) afirmou que “quando se patina sobre o gelo
fino, a segurança está na velocidade” para sintetizar a transição na
Modernidade em que não há mais chão – ou há este de gelo que nada sustenta –,
tudo é questionável e mutável, guiado pela racionalidade que, prometendo
organizar tudo, voltou-se contra si mesmo, passando ela também a ser objeto de
exame.
Nessa aceleração das mudanças promovendo
incertezas, aprofundar-se – num pensamento, ação, valor ou sentimento – poderia
significar afundar. O simpático filósofo polonês Zygmunt Baumann usou a frase
do americano para ilustrar a eloqüente imagem do “mundo líquido”, erguido já
pela pós-modernidade na falência da racionalidade como solução, deixando claro
que corremos atrás da… do… de quê? Os dois filósofos, portanto, provam que
refletir é essencial.
Na velocidade voraz, a pausa é imperiosa para
alcançar, senão o luxo da compreensão, a satisfação do básico: refletir. Sem
isso, a camada de gelo sob os pés dos brasileiros pode se romper e só não
afundaremos se pudermos supor um cordão de alguma sanidade e lógica em torno
desses dias incessantes em que tudo parece relevante, bombástico, emblemático,
simbólico, decisivo, definitivo. Assim, as reuniões discretas de Temer, mas
divulgadas, longas ou não, não deveriam escandalizar ninguém.
Além disso, ele governa com honestidade quanto às
próprias despretensões políticas, com a firmeza possível para quem não sabe se
será promovido de interino a transitório, com a articulação política disponível
em meio ao quase caos, com a gestão administrativa arrancada das garras dos
lulopetistas que, em algumas situações, não entregaram nem mesmo as chaves de
muitas salas. Se não buscarmos algum distanciamento, alguma baliza e algum
parâmetro, a interinidade naufraga sem ter tido a chance de ser o que acho
(ainda) que pode ser: nossa transição possível até o outro lado da… do… disso.
Ainda que caiam ministros como as folhas no outono
e entendendo que nossa melancolia atinge os ossos também porque muito acontece
e, aparentemente, não saímos do lugar, creio que Temer se fortalece quando se
livra dos delatados sem acusações contra a Justiça, o jornalismo independente,
as elites, etc. Ou seja, superamos o modelo lulpetista. Mas a matriz putrefata
está ativa e a lista de Machado, pretendendo misturar sujos e mal-lavados para
que a sujeira e a meia-limpeza de uns redimam as dos outros, remete a ela. Se
não refletirmos, essa matriz odiosa nos manterá um país intransitivo.
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