Por
Augusto Nunes, 28/06/2015,
www.veja.com.br
VALENTINA DE BOTAS
A relação que a memória tem com o tempo e com a
realidade é isto: uma relação. O caráter simbólico da memória desmancha o tempo
e processa a realidade. Ou não haveria as artes, as paixões, a História, a
Literatura, o próprio homem. Nem as madeleines de Proust. Consoladora criação
para nossos corações, humanizados em desejos solenemente desdenhados pelo tempo
jamais cúmplice.
Também a memória, esta sim, nossa cúmplice,
permanece com os nexos dela que tecem sentidos incólumes à erosão do tempo. Ela
diz quem somos, quem é nossa gente, como e onde é nossa pátria. Pode ser a rua
onde crescemos, a nossa língua ou qualquer outra, digamos, experiência na qual
esbarremos com nós mesmos e nos reconheçamos.
E pode ser a resistência democrática como vimos
fazendo, na qual nos reconhecemos mesmo sem nos conhecer. A identidade de um
país e de um indivíduo não existe sem a memória. E esta coluna é guardiã da
memória do país que sonhamos e podemos ser nos textos luminosos dela e nos
comentários que suscitaram e que, somados ao restante da resistência
democrática, já conversavam com o futuro que é hoje.
Combatemos as trapaças do lulopetismo que desfaziam
a memória e forjava uma cínica e monolítica versão da história e do presente,
outro integrante do arsenal de vigarices para emparedar o estado de direito
democrático. Eis que é sob ele que o lulopetismo agoniza; o antídoto contra
esse bando não é intervenção militar ou o atropelo das instituições, mas
justamente o apelo a elas, pois esta sordidez de 13 anos não é inerente à democracia.
Comprova isso o próprio lulopetismo que, depois de
alcançar o poder pela via democrática, viu que apenas roubando como nunca
poderia ficar no poder para sempre. Não era política de esquerda nem de
direita, mas somente roubalheira e incompetência – a substância do petismo que,
concebido por um jeca oportunista, não tem ideologia além a de garantir o
perene exercício do poder para se arrumar na vida.
Há uma práxis lulista sim, mas não um pensamento;
este é arrendado segundo a conveniência. À afirmação segundo a qual o que está
dominado é o bando, alguém dirá ah, mas o jeca está solto, Dilma continua
presidente, o Estado aparelhado e tal. São realidades que se superpõem, não se
negam nem se complementam, mas enfrentam-se até que a decência vença.
Diluir esse embate essencial – e contínuo na defesa
e aprimoramento da democracia – no limite brumoso entre entoar semanalmente que
a casa caiu ou conclamar a resignação porque tudo estaria dominado é
dispensar-se de tatear as nuances da realidade nas lonjuras do alarmismo e do
conformismo. Se tenho certeza de que o país que presta vencerá? Ora, temos sido
vencedores em manter o embate no qual preservamos a memória do país que
queremos ser.
É memória que impregna o futuro. Que, como toda
certeza, não pode ser cicatrizada, mas manter-se ferida primordial e sangrante
para que, nos cuidados com ela, sustentemos o combate que não nos deixa
esquecer: não somos dominados.
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