Somos uns miseráveis cercados de
miseráveis por todos os lados
Por Augusto
Nunes, 21/06/2016,
www.veja.com.br
Texto de Arnaldo Jabor publicado no Globo
Não, não sei mais analisar a situação brasileira.
Os fatos estão muito à frente de qualquer interpretação, que é sempre fugaz,
com uma lógica que se perde em poucos instantes.
A sensação que tenho — estamos reduzidos a
sensações — é que os hábitos tradicionais do velho patrimonialismo brasileiro,
com suas teias ocultas de escândalos, estão arrebentando juntos e irrompendo da
lama escondida por séculos.
Uma das razões é que nossa corrupção deslavada,
nosso secular desgoverno se fragilizaram neste mundo contemporâneo global e
digital. Nosso atraso ficou atrasado. As informações na velocidade da luz
fizeram a opinião pública acordar sem saber bem para que ainda, mas já é um
avanço.
Aquele estranho país, oscilando desde sempre entre
o público e o privado, está deparando com um perigo: a própria ideia de “país”
está ameaçada, se esgarçando com ilhas de civilização cercadas de miséria por
todos os lados. Instituições continuariam existindo, mas sem poder para regular
a vida social.
A consciência do desastre é grande, mas ninguém
sabe o que colocar no lugar da merda que está aí. Não sabe por que talvez não
haja. Como traçar um plano político onde a política se desintegrou? O Brasil é
uma quadrilha. Todos estão implicados de algum modo. Nunca existiu vida sem o
Caixa 2. Nisso, o Lula acertou. Esse era o método de funcionamento “normal”.
Era impossível um político ignorar isso. Era normal. Agora, estão abertos os
intestinos da pátria que nos pariu. E surge mais uma verdade óbvia: não há
inocentes para ocupar cargos públicos. Todos são cúmplices. Não há fichas
limpas. O Temer sabe disso e inteligentemente nomeou a melhor equipe econômica
que já tivemos, sem contar líderes como Meirelles, Serra, Maria Silvia Bastos,
Pedro Parente etc. Eles partiram para impor o óbvio na economia destroçada
pelos ladrões e imbecis. Conseguirão?
A Lava Jato está matando o velho país vira-lata,
graças a Deus, mas como salvá-lo, como organizar um país melhor? Tudo
funcionava mal, mas funcionava pelas regras da velha roubalheira analógica.
Havia até uma certa doçura nos ladrões de galinha. Depois do PT, tudo enguiçou.
Sempre achei que o PT no poder seria uma previsível ladainha de slogans
comunas, de voluntarismo, de gastos públicos malucos, mas nunca supus que eles
pudessem causar um estrago desse porte, com 170 bilhões de buracos negros no
Estado. Isso foi o resultado da estupidez ideológica aliada à direita mais
feudal do país, de Lênin a Sarney. O PT não me decepcionou apenas por seus
erros; ele me fez descrente da raça humana.
E vamos combinar: já há uma catástrofe. Queremos
não ver, mas a evidência é perturbadora. O país foi metodicamente danificado
econômica e socialmente. Eu e provavelmente muitos de vocês leitores não vamos
sofrer tanto com a estagflação que vivemos. Agora, os que não lerão esta
coluna, milhões de desvalidos, vão sentir na carne o novo estilo para a miséria.
Vem aí a nova miséria — um “arrière-goût”, um toque de… África e Índia. Sim.
A miséria era o grande capital do governo Lula. O
PT sempre teve ciúmes da miséria. Sempre que o FHC tentou cuidar da miséria, o
PT reagiu como um marido enganado.
Antes, havia uma miséria “boa”, controlável.
Tínhamos pena, ela aplacava nossa consciência, desde que ficasse no seu lugar.
A miséria tinha uma “função social”. Achávamos que nosso escândalo ajudava os
pobres de alguma forma. Para nós pequenos burgueses, a miséria era bandeira
abstrata, a miséria dos outros era nosso problema existencial. O fim das
ilusões gerou um desalento que dá lugar a um alívio quase feliz.
A situação é gravíssima e ninguém sabe como
revertê-la. Como imaginar esse Congresso sujo aprovando reformas e ajustes
contra o atraso, justamente eles que desejam o atraso, tão propício a
roubalheiras mais tradicionais? O escândalo foi desmoralizado — estamos sendo
arrasados pela “normalidade”. Isso. Estamos nos acostumando a essa anomalia e
vamos aceitando a crescente desgraça com fatalismo ou cinismo: tinha que ser
assim ou dane-se…
E aí surge a turma do “precisamos”, da qual eu faço
parte, tristemente. “Precisamos” disso, daquilo, mas ninguém sabe como
resolver. Não temos agentes executores da política do “precisamos”.
“Precisamos” resolver o problema da administração
nos estados e municípios, que já estão sem verbas para pagar os funcionários
públicos, os hospitais sem remédio, os limpa-fossas, sei lá. “Precisamos”
combater a violência, mas nada funciona para impedir o crime crescente. A
polícia não tem dinheiro. Os criminosos têm grana para comprar até canhões
antiaéreos no Paraguai. Não é que a violência vai apenas crescer; não há como
impedi-la, com traficantes vagando de metralhadora no Centro da cidade,
estuprando e matando.
Como imaginar um plano possível para salvar e
melhorar as favelas no Rio ou Recife ou Alagoas, em todas as cidades
principais, para além das UPPs? O que fazer? Cartas para a Redação.
Esta crise é especial, talvez invencível.
Em geral, as crises surgem, acontecem e, quase
sempre, somem. Acabam. Até a terrível ditadura tinha um fim previsível, mas,
depois de 12 anos de absurdos do PT, esta crise agora é de areia fina, de
areias movediças; ela talvez não acabe, pois não tem um defeito único a
combater — é uma miscelânea de crimes históricos. A crise não tem um inimigo só
— é um ramalhete de equívocos.
A miséria é a ponta suja de uma miséria maior. Nós
fazemos parte dela. O Brasil está contaminado de misérias. Não existe um mundo
limpo e outro sujo. Um infecta o outro.
A burocracia é miséria, a corrupção é miséria, a
estupidez brasileira é miséria. A miséria não está nas periferias e favelas;
está no centro da vida brasileira.
Somos uns miseráveis cercados de miseráveis por
todos os lados.
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