O conceito de que é função do
Estado proporcionar felicidade, mais do que riqueza, avança em países nos quais
os cidadãos não discutem seus direitos. De tão respeitados, eles nem precisam
ser lembrados
Luiz
Fernando Sá, 10/06/2016,
Para nós, brasileiros, é quase uma heresia. Mas que
audácia a desses suíços rejeitarem, em plebiscito, a adoção de uma lei que
concederia a cada cidadão do país – empregado ou desempregado – uma renda
mínima mensal equivalente a R$ 9 mil. Isso aconteceu na semana passada – e o
mundo, surpreso, pôs-se a debater o porquê.
No Brasil do Bolsa Família (que equivale, em média,
a 2% do auxílio recusado por uma esmagadora maioria de 77% da população da
nação alpina) e das carências sem fim, é inimaginável pensar em dizer não a
qualquer ajuda. Para o mundo, ficou aparente que os suíços consideram
impensável viver à custa do governo, que já lhes oferece como retorno pelos
impostos pagos; serviços públicos de qualidade, uma sociedade mais igualitária
e baseada no respeito, num exemplo bem acabado do chamado Estado do bem-estar
social. A despeito de a economia não viver seus melhores momentos, a taxa de
desemprego na Suíça se mantém em 3,5%, menos da metade da média eruopeia. O
país vive uma estabilidade quase insuportavelmente monótona para os nossos
padrões. A julgar pelo resultado do referendo, votar não à renda mínima foi a
maneira de eles dizerem que em time que está ganhando não se mexe,
principalmente se essa mudança implicar a geração de uma conta alta, com potencial
de desequilibrar as finanças locais.
Talvez haja outras razões menos claras para a
decisão. Com a proposta, o antigo paraíso fiscal se propunha a mudar de rótulo,
vendendo-se ao mundo como paraíso social. Pretendia ser vista como a vitrine de
um novo modelo de desenvolvimento em que, resolvidas as questões básicas de
sobrevivência, os cidadãos se dedicariam a ser felizes, a buscar realização
profissional e a realizar seus sonhos. Para os defensores da proposta, a bolsa
felicidade geraria, por si só, uma intensa atividade econômica e, em um país
com menos demandas sociais ainda pendentes, poderia até se tornar auto-sustentável.
O mesmo conceito tem sido discutido em outras nações com alto índice de
desenvolvimento social, como a Finlândia – onde um programa piloto que oferece
renda mínima de 550 euros (pouco mais de R$ 4 mil) a 10 mil cidadãos está sendo
testado e, se bem sucedido, pode ser adotado para toda a população – ou a
Holanda – cidades como Utrecht já praticam o modelo experimentalmente.
O conceito de que é função do Estado proporcionar
felicidade, mais do que riqueza avança numa parte do mundo, em que a maioria
das pessoas sequer discute quais são os seus direitos. De tão respeitados, eles
nem precisam ser lembrados. O que os suíços talvez tenham entendido nas
discussões sobre a proposta de renda mínima é que felicidade não se compra e
que os mesmos recursos que financiariam esse novo benefício talvez fossem mais
bem aplicados se usado na solução de outras questões mais inquietantes. Por
trás da aparente tranqüilidade, muitas nações ricas se deparam com crises de
consciência e dilemas internos. Vejamos o exemplo da própria Suíça. Boa parte
do bem-estar oferecido a sua população tem origem em um sistema bancário
alimentado pela corrupção e por regimes que semearam a desigualdade mundo
afora. A histórica neutralidade em conflitos internacionais contribuiu para
esse cenário. Hoje, as autoridades e os financistas do país são pressionados a
rever suas posições, a adotar políticas de transparência e a devolver aos
lesados a riqueza encastelada aos pés de seus picos nevados.
No mesmo dia em que a maioria dos suíços disse não,
uma outra decisão interna revela que há mesmo muitas questões a serem
resolvidas por lá. Os residentes de Oberwil-Lieli – cidade de 22 mil
habitantes, 300 deles listados como milionários – decidiram que o município
deveria pagar ao governo da Suíça uma multa superior a R$ 1 milhão como pena
por não aceitar a instalação, ali, de apenas dez dos 50 mil refugiados
que pediram asilo ao país. A alegação para a recusa foi a de que “eles não
iriam se encaixar”. No resto do país, a decisão causou revolta e reflexão. Ao
rejeitarem a renda mínima, muitos suíços podem ter, na verdade, encontrado uma
forma de declarar “ainda não merecemos ser vistos como um paraíso social”.
Luiz Fernando Sá, diretor de
Mídias Digitais e Projetos da Editora Três