Blog faz estudo de caso dos supremos golpes em favor de Dilma Rousseff
Por Felipe
Moura Brasil, 03/09/2016,
www.veja.com.br
Lewandowski na sessão plenária do
STF em 2015 e na sessão final do julgamento de Dilma em 2016: adaptando as
leis de acordo com o interesse político
Em 17 de dezembro de 2015, acompanhando o voto dissidente
de Luis Roberto “Minha Posição” Barroso, a maioria dos ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF) decidiu que o trecho objetivo da Lei 1.079, de
1950, sobre a formação de uma “comissão especial eleita” na Câmara dos
Deputados para analisar o pedido de impeachment não fora recepcionado pela
Constituição Federal de 1988.
Baseando-se naquele trecho da Lei 1.079, o então
presidente da Câmara, Eduardo Cunha, considerara que “eleita” pressupunha uma
eleição e seguira fielmente o regimento interno da Câmara (RICD), no inciso III
do artigo 188, segundo o qual todas as eleições na Casa deveriam ser realizadas
por votação secreta.
Com voto secreto dos deputados, a eleição realizada
na Câmara por determinação de Cunha resultara em uma maioria de membros
oposicionistas ao governo de Dilma Rousseff na formação da comissão especial do
impeachment.
Em sua argumentação para esvaziar o sentido
literal do RICD e da lei 1.079, descartar a interpretação de Cunha como
possível e anular a sessão, o que na época favorecia Dilma (embora o tiro tenha
saído pela culatra), Barroso recorreu basicamente a duas famigeradas
malandragens no plenário do STF:
1) Omitiu em sua leitura do artigo 188 do regimento o
trecho do inciso III “e nas demais eleições” que legitimava a votação
secreta para todas as eleições realizadas na Casa, incluindo, portanto a da
comissão especial do impeachment.
2) Alegou que o significado de “eleita”, na lei do
impeachment, poderia ser apenas “escolhida”, sem indicar a necessidade de uma
eleição por votação.
Com isso, abriu caminho para a aplicação do
artigo 58 da Constituição, segundo o qual “o Congresso Nacional e suas
Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as
atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua
criação”.
Ou seja: a Constituição delega ao regimento a
autoridade para determinar a forma de constituição e as atribuições
das comissões permanentes e temporárias da Câmara.
Como o regimento determina no artigo 33 que “as
comissões temporárias compor-se-ão do número de membros… designados pelo
Presidente por indicação dos líderes”, Barroso concluiu que os líderes de cada
partido deveriam ser os responsáveis pela indicação direta dos membros da
comissão especial do impeachment – respeitando-se a proporção a que
cada partido tinha direito de acordo com seu respectivo tamanho –, sem a
necessidade de realização de eleição.
Em tese, na época, a formação da comissão por
indicação dos líderes, com o então governista Leonardo Picciani (PMDB-RJ) à
frente da maior bancada, favorecia Dilma.
Este blog mostrou, no entanto, que a comissão
especial do impeachment não se enquadrava nem constava na lista das
comissões permanentes e temporárias previstas no regimento, nem mesmo
por hipótese possível, como ficava claro pela leitura do artigo 34,
ignorado ou omitido por Barroso tanto na sessão plenária de dezembro de 2015
quanto na de reafirmação do rito de impeachment em 16 de março de 2016, quando
o STF rejeitou os embargos de declaração da Câmara contra a decisão anterior
(aparentemente sem lê-los, em flagrante corporativismo para defender Barroso da
repercussão negativa na internet de suas malandragens).
Se a Constituição, portanto, delegava ao regimento
a autoridade para determinar algo que o regimento não determinava de modo
específico, é evidente que recorrer à lei 1.079, a lei específica do
impeachment – que, na hierarquia jurídica, está acima do regimento, e que
determinava uma “comissão especial eleita” – era, no mínimo, uma
interpretação possível e correta, até porque não havia decisão anterior do STF
sobre a não recepção do referido trecho pela Constituição de 1988.
Em 14 de abril de 2016, em discussão durante
a sessão em que o Supremo rejeitou cinco pedidos que tentava
suspender ou alterar a ordem determinada por Cunha para a votação dos deputados
sobre o afastamento de Dilma, Barroso tentava mais uma vez
invalidar uma das escolhas feita pelo peemedebista quando Teori
Zavascki rebateu dizendo justamente o seguinte:
“Nós não estamos decidindo aqui qual é a melhor
interpretação do regimento.”
Traduzindo: se a interpretação dada pelo
presidente da Câmara é uma das possíveis diante do RICD, ela
tem de ser considerada válida e, portanto mantida, independentemente
se ministros como Barroso consideravam melhor a sua própria interpretação.
(E vale lembrar AQUI e AQUI que Lewandowski fez de tudo
junto com Marco Aurélio Mello para ajudar Dilma naquela sessão em que
acabaram goleados.)
Esta postura de contenção do Poder Judiciário para
evitar a ingerência indevida no Poder Legislativo fora abandonada, no
entanto, naquela sessão de dezembro de 2015 em que até Teori seguiu
parcialmente o voto de Barroso, embora, minimamente coerente, votando a
favor da votação secreta prevista no regimento.
Entre os ministros que acompanharam de
modo integral o voto de Barroso em dezembro, curiosamente estava o
presidente do STF, Ricardo Lewandowski.
Em 31 de agosto de 2016, presidindo a sessão final
do julgamento do impeachment de Dilma, o mesmo Lewandowski que havia
sobreposto o genérico artigo 58 da Constituição de 1988 (que
transferia autoridade ao regimento da Câmara) a um trecho
objetivo da Lei 1.079, de 1950, decidiu, na prática, sobrepor outros
trechos da Lei 1.079 e o regimento do Senado ao artigo 52 da Constituição, que
não dá margem a dúvidas.
Assim como Dias Toffoli contrariou Dias Toffoli ao
mandar soltar o ex-ministro petista Paulo Bernardo (como mostrou Rodrigo Janot), Lewandowski também contrariou
Lewandowski, de certo modo, ao determinar o fatiamento
inconstitucional.
Transcrevo o artigo 52 da CF: “Nos casos previstos
nos incisos I (processo contra presidente da República) e II (processo contra
STF), funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida
por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do
cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função
pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.”
A inabilitação, obviamente, é decorrência
inseparável da perda do cargo, como evidencia a preposição “com”, para a
qual já chamara a atenção o hoje ex-ministro do STF Carlos Velloso em decisão
de 1993 sobre o mandado de segurança impetrado por Fernando Collor de Mello,
que não pôde manter a habilitação; e a Constituição, na hierarquia
jurídica, está acima da Lei 1.079 e do regimento do Senado, como os próprios
senadores pró-impeachment apontaram sem sucesso após a bancada do PT
apresentar o pedido de destaque.
Esse pedido consistia em que se destacasse da
pergunta sobre a condenação de Dilma o trecho sobre a inabilitação para que
fosse votado em separado.
O artigo 312 do regimento do Senado
obriga a que seja destacado um trecho do que está sendo votado desde
que a demanda venha da bancada de um partido.
(Bastidores do golpe: Lauro Jardim informou no
Globo que Kátia Abreu, aliada de Dilma, pretendia entrar com uma questão de
ordem, mas Lewandowski a ORIENTOU para que a bancada apresentasse o
pedido de destaque, como de fato aconteceu. Josias de Souza informou no UOL que
Lewandowski foi informado da articulação pró-Dilma 9 dias antes da sessão final
e se preparou juridicamente para legitimá-la.)
O senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) argumentou
que o instrumento de Destaque para Votação em Separado (DVS) é usado
para proposições legislativas, não para a produção de sentenças como a do
impeachment, mas o preparado Lewandowski alegou que se tratava de uma
proposta parlamentar que precisava ser votada para entrar em vigor – e,
ancorado no artigo 312 do regimento, acatou o pedido do PT.
Comentarei mais adiante outro problema grave
desta aplicação de DVS ao impeachment, mas as malandragens não param
por aí.
Para fatiar a votação, Lewandowski também
alegou ter se baseado nos artigos 33 e 68 da lei do impeachment,
reproduzidos e comentados abaixo, com grifos, embora este blog acrescente
antes o artigo 2º da mesma lei.
Art. 2º da Lei 1.079: “Os crimes definidos nesta
lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis
da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o
exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos
contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do
Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador Geral da República.”
Ou seja: a própria lei do impeachment fala “da pena
de perda do cargo, com inabilitação”, de modo similar ao artigo 52 da CF.
A palavra “pena” na lei acima ainda aparece no singular, tornando
impossível a interpretação de que uma pena pode ser separada da outra. Os
demais artigos só confirmam esta tese.
Além disso, o prazo estipulado na Lei 1.079 é de
“até cinco anos”, não de “oito anos”, como manda o artigo 52
da Constituição e como foi usado na pergunta feita sobre Dilma.
(Volto a este ponto mais adiante.)
Art. 33 da Lei 1.079: “No
caso de condenação, o Senado por iniciativa do presidente fixará o prazo de
inabilitação do condenado para o exercício de qualquer função pública; e
no caso de haver crime comum deliberará ainda sobre se o Presidente o deverá
submeter à justiça ordinária, independentemente da ação de qualquer
interessado.”
Ou seja: o Senado “fixará O PRAZO de inabilitação”.
Repito: o prazo.
Isto significa que Lewandowski não ignora apenas o
texto constitucional. Ignora também, dentro de sua lógica inconstitucional, a
própria Lei 1.079, porque a inabilitação é decorrência inseparável da
condenação e caberia ao Senado apenas estabelecer por quanto tempo o presidente
ficaria inabilitado.
O artigo 68, que legitimaria a realização de
duas consultas ao plenário, torna isto ainda mais evidente.
Art. 68. O julgamento será feito, em votação
nominal pêlos senadores desimpedidos que responderão “sim” ou “não” à seguinte
pergunta enunciada pelo Presidente: “Cometeu o acusado F. o crime que lhe é
imputado e deve ser condenado à perda do seu cargo?”
Parágrafo único. Se a resposta afirmativa obtiver,
pelo menos, dois terços dos votos dos senadores presentes, o Presidente fará nova consulta ao plenário sobre o tempo não
excedente de cinco anos, durante o qual o condenado deverá ficar inabilitado
para o exercício de qualquer função pública.
A consulta, portanto, é sobre “O TEMPO” da não
habilitação, não sobre se o condenado deve ou não ficar inabilitado, já
que ele “deverá ficar inabilitado”, como diz o texto literalmente.
Não havendo prazo mínimo determinado na lei 1.079,
mas apenas o prazo máximo (“não excedente de cinco anos”), o Senado – caso se
baseasse realmente nela – deveria ter debatido em plenário qual seria
a forma de decidir o tempo da inabilitação.
Isto não aconteceu.
Como o prazo estabelecido nos artigos 2º e 68
da lei 1.079 está flagrantemente superado pelo artigo 52 da Constituição de
1988, que determina a condenação por oito anos, Lewandowski preferiu fazer
uma colcha de retalhos jurídica, utilizando as partes da Constituição, da Lei
1.079 e do regimento que julgava mais conveniente para amenizar a condenação da
ré.
Em resumo, ao colocar
em destaque “ficando, em conseqüência, inabilitada para o exercício
de qualquer função pública pelo prazo de oito anos”, Lewandowski armou uma
grande arapuca para os senadores:
1) Tornou possível a manutenção jamais prevista
da habilitação.
2) Vinculou a opção pela inabilitação a oito
anos, um período relativamente grande.
Com isso, havendo a oportunidade de escolher entre
a manutenção da habilitação e a longa inabilitação por 8 anos,
senadores já satisfeitos com o impeachment poderiam se compadecer de Dilma mais
facilmente.
A estratégia política foi calculada justamente para
isso, tanto que os aliados de Dilma que fizeram discursos apelando à compaixão alheia
foram os que tinham mais trânsito entre os senadores pró-impeachment,
e não os integrantes da Bancada da Chupeta, já desgastados com os demais
após meses de esperneio.
Somando e misturando os compadecidos aos que tinham
interesse na abertura de precedente para beneficiar outros políticos
cassados, o resultado foi que 19 dos 61 senadores pró-impeachment votaram
contra a inabilitação por oito anos e Dilma manteve seus direitos políticos
porque os 42 votos a favor não atingiram o mínimo necessário de 54.
E aqui retomo o problema do destaque: como a
pergunta sobre a condenação citou, além da perda do cargo, o período de
oito anos determinado no artigo 52, destacou-se, na prática, a
própria Constituição, o que levou o ministro Gilmar Mendes a dar
merecidas cutucadas em Lewandowski em declarações à imprensa:
“O que se fez lá foi um DVS, não em
relação à proposição que estava sendo votada, mas em relação à Constituição. O
que é, no mínimo, pra ser bastante delicado, bizarro… Fazer um DVS em
relação à própria norma constitucional. Do ponto de vista da solução jurídica,
parece realmente extravagante, mas certamente há razões políticas e tudo mais
que justificam, talvez aí o cordialismo da alma brasileira e tudo isso.”
Resta saber se esse cordialismo também vai prevalecer
no STF, na análise dos 8 mandados de segurança que pedem a inabilitação de
Dilma e foram reunidos para a relatoria da ministra Rosa Weber.
Em 2015, a interpretação de Cunha, invalidada pelo
STF com ajuda de Lewandowski, era possível e correta. Em 31 de agosto de 2016,
as “interpretações” de Lewandowski, no papel de “Cunha do Senado”,
foram uma aberração completa.
Desautorizar o investigado e impopular Cunha, no
entanto, era fácil – tão fácil que parecia até correto. Desautorizar o
presidente da Corte – em processo tão delicado quanto o impeachment, e
mesmo sendo o próprio Lewandowski um ativista em favor da interferência em
outro poder (*) – exige um pouquinho mais de coragem dos demais
ministros, ainda que isto signifique apenas cumprir com suas obrigações de
guardiões da Constituição.
Se Rosa Weber submeter à questão ao plenário, este
blog quer ver Barroso dizer sobre o fatiamento inconstitucional determinado por
Lewandowski o mesmo que disse em dezembro sobre o voto secreto legal
determinado por Cunha: “considero, portanto, que… foi instituído por uma
deliberação unipessoal e discricionária do presidente… no meio do jogo”.
Haveria, assim, ao menos um pinguinho de coerência
após tantos contorcionismos.
O STF deve mais respeito à língua portuguesa, à
supremacia do texto constitucional e ao povo brasileiro.
Relembro meus vídeos sobre os
dois casos: Barroso 2015 e Lewandowski 2016.
Relembro Luiz Fux quebrando a
pose do ativista Lewandowski:
Relembro Lewandowski chamando
José Eduardo Cardozo de “nosso advogado”:
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