Com a inocente anuência do
presidente do Supremo Tribunal Federal, a Constituição foi reescrita no joelho
Por Augusto
Nunes, 02/09/2016,
www.veja.com.br
Editorial do Estadão
Todo cidadão honesto deste país há de estar
estupefato com o desfecho do processo de impeachment da presidente Dilma
Rousseff. Malgrado o fato de que a petista finalmente teve seu mandato cassado,
levando alívio ao País, tão maltratado pela incúria administrativa e pelo
desleixo moral da agora ex-presidente e de seu partido, um punhado de notórios
personagens da vida política – desses que não se consegue identificar bem na
escala biológica, porque são ao mesmo tempo animais de pluma, couro e escama –
aproveitou a deixa para urdir uma maracutaia digna de uma república bananeira.
O objetivo, claro, foi beneficiar todos os políticos facínoras que a Justiça
está por alcançar. Mas o resultado da trama, do qual essa chusma de
irresponsáveis talvez nem tenha se dado conta, é que o governo de Michel Temer,
do qual vários deles esperam fazer parte e colher seu quinhão, corre o risco de
terminar antes mesmo de começar (ver o editorial Dá para olhar para a frente?).
Como toda maquinação, esta não ficou clara senão
pouco a pouco, minuto a minuto, para assombro geral, em meio ao drama da
votação que determinou o impeachment de Dilma no Senado. As coisas ficaram meridianamente
claras quando a bancada do PT fez ao presidente da sessão, o presidente do
Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, um pedido de destaque por meio
do qual pretendia que houvesse duas votações: uma sobre a perda do mandato e
outra sobre a perda dos direitos políticos de Dilma. O argumento, mais um da
inesgotável coleção de chicanas petistas, era que não havia vinculação entre a
cassação e a inabilitação.
Tivesse o ministro Lewandowski um mínimo de
familiaridade com o artigo 52 da Constituição, o pedido teria sido rejeitado
sem maiores considerações. Esse artigo, que estabelece a competência do Senado
para processar e julgar o presidente, diz em seu parágrafo único que a
condenação, proferida por dois terços dos votos dos senadores, será limitada “à
perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função
pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”. Salvo se o uso da
preposição “com” ganhou significado oposto ao que manda a boa gramática, não é
possível concluir outra coisa desse artigo senão que a inabilitação para o
exercício de cargos públicos acompanha, necessariamente, a perda do cargo de
presidente.
O fato é que aqueles que tramaram a cavilação
estavam no seu dia de sorte. O ministro Lewandowski, não conhecendo o artigo
52, aceitou o destaque que fatiou a votação. E assim, com a inocente anuência
do presidente do Supremo Tribunal Federal, a Constituição foi reescrita no
joelho.
Adotada a escandalosa manobra, senadores
revezaram-se em vexaminoso exercício de caradurismo para dar um mínimo de
dignidade à esbórnia. A senadora Kátia Abreu, por exemplo, apelou à piedade dos
colegas, ao dizer que Dilma, se ficasse inabilitada, teria de viver com uma
aposentadoria de meros R$ 5 mil. Já o presidente do Senado, Renan Calheiros,
cujas digitais estão por toda a parte nesse caso, brandindo um exemplar da
Constituição, disse que “não podemos ser desumanos” com Dilma. O ministro
Lewandowski, com ternura cristã, alertou os parlamentares que Dilma, se fosse
inabilitada, não poderia ser “nem merendeira de escola”.
Assim, o impeachment de Dilma passou, mas seus
direitos políticos foram preservados. A punição pela metade não garantirá a
Dilma um emprego de merendeira, mas se presta a livrar plumas, couros e escamas
de figuras graúdas do Congresso que estão enroladas na Justiça, algumas das
quais com assento nas mesas que dirigiram os trabalhos desse processo e que
deveriam estar conscientes de sua responsabilidade perante a Nação.
Trinta e nove senadores que garantiram os direitos
políticos da ex-presidente comprovaram que o brasileiro não tem “complexo de
vira-latas” por causa das vicissitudes do futebol, mas porque é reduzido a essa
condição por políticos agrupados em matilhas.
Essa imoralidade abre precedente para uma catadupa
de escândalos. O que aconteceu ontem não foi motivo apenas para que o PSDB e o
DEM ameaçassem romper a coalizão com o governo Temer, comprometendo todo o
esforço de recuperação nacional. Trata-se de um episódio que expõe a
inesgotável capacidade da classe política nacional de trair a confiança dos
brasileiros de bem.
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