Aos poucos consolidou-se a ideia
de que, para se aproximar do povo, nossos representantes têm que adotar uma
fala chula, rasteira
Por Augusto
Nunes, 22/05/2016,
www.veja.com.br
Texto de Sonia Zaghetto
Não sei bem quando a política brasileira começou a
se confundir com feira livre, boteco e bordel. Talvez na chegada de
Cabral, quando escambo, compadrio, clientelismo e a frouxidão dos costumes
desembarcaram, junto com os europeus, nas grandes praias da costa brasileira.
Mas deixo aos historiadores e cientistas sociais a parte de explicar a gênese e
evolução desses non-sense que hoje domina em grande parte a
cena política nacional. Concentro-me por ora nos impressionantes artistas
do Gran Circus Brasil.
Em um momento tão grave da história da República,
os brasileiros assistem ao que ocorre na Praça dos Três Poderes com um
sentimento que alterna descrença, desalento e vergonha. Não, não
culparei apenas os políticos, que para lá foram conduzidos pelo
voto livre e democrático. Responsabilizarei também por esse estado de coisas a
proverbial opção pela chicana, pelo candidato histriônico e pelo discurso
grosseiro.
Trouxemos para a vida real Odorico Paraguaçu, o
personagem de Dias Gomes que encarnou o estereótipo do político corrupto que se
vale do verbo torto para convencer os eleitores de que pode fazer chover no
sertão, abrir caminho entre os sete mares e reinventar o paraíso. Populista e
falastrão, Odorico parece ter sido um modelo levado a sério pela classe política.
Aos poucos se consolidou a ideia de que, para
se aproximar do povo, nossos representantes têm que adotar uma fala chula,
rasteira, que eles acreditam reverberar melhor na alma popular. Por alguma
razão que me escapa, nossos líderes entenderam que essa aproximação não se
daria pela via da sensibilidade acerca das questões sociais, da eficiência
administrativa, das atitudes comedidas, da responsabilidade perante as contas
públicas, da postura equilibrada e de discursos onde a razoabilidade prevaleceria
sobre a oratória vã.
Em 1990, Fernando Collor trombeteou aos eleitores:
“Tenho aquilo roxo”. Referia-se à cor dos próprios genitais que, segundo a
crença tradicional por ele evocada, seria sinônimo de homem corajoso. A frase
tornou-se moda. Muita gente repetiu, os tolos riram ainda uma vez. Mais uma
barreira vencida. A essa época, já tínhamos representantes que adotavam o
estilo feira livre: berros ensurdecedores para vender seu peixe. E, claro,
balcões onde se negociava de tudo, inclusive consciências.
Nos primeiros anos de seu governo, o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva – que antes de adotar a configuração “paz e amor” era
dono de um discurso extremado – descobriu as maravilhas da mansuetude e da
autolouvação. Nunca antes na história deste país tornou-se um
clássico à moda Goebbels. A eloqüência mesmerizava as multidões a ponto
de convencer a quase todos sobre as grandes virtudes de administradora de sua
desconhecida auxiliar, guindada à condição de sucessora do trono.
Consolidava-se a conversa de boteco, aquela superficial, em que, embalado por
duas ou três cervejas, o sujeito converte-se em técnico de futebol renomado,
cientista laureado ou historiador nato. Sob tais condições etílicas,
acredita-se em muita lorota e derrama-se muita balela nos ouvidos alheios. Sem
compromisso algum com a verdade.
A pièce de résistance que nutria o
ódio entre os brasileiros na era Lula ganhou ainda mais espaço no
primeiro reinado de Dilma Rousseff. A retórica oficial apostava em outro
clássico da conversa de boteco: as generalizações. As elites brancas, de olhos
azuis e opressores tornaram-se objeto de ódio. Os slogans separatistas
multiplicaram-se: agora, a Casa Grande do século 21 surta quando a senzala
aprende a ler; meritocracia tornou-se palavrão e privatização é igual a
sexo na era vitoriana: pratica-se a rodo no escurinho das alcovas, mas não se
admite o ato nem sob tortura.
Há dois meses, Lula inaugurou uma nova fase no
repertório do discurso político nacional: comparou-se a uma jararaca.
Aristóteles, Demóstenes e Cícero – se vivos fossem – teriam meneado as
clássicas cabeças. Quem, em sã consciência, se compara a uma serpente,
associada à traição, veneno e morte? Imagine Barack Obama ou David Cameron
proferindo algo semelhante! Aliás, imagine Obama ou Cameron bradando aos
quatro ventos qual a cor de seus genitais! Atitude igual lamento dizer, só na
selva mesmo, com as feras disputando território à base de urina nos arbustos.
Nem Putin, senhores, ousaria tanto. E ele é russo!
Se hoje boa parte de nossos políticos acha
naturalíssimo expor a própria intimidade, igualmente não se peja de
continuar a receber salários e benesses enquanto enfrenta processos e
investigações. Flagrados em escândalos, acreditam-se donos dos cargos que
ocupam e dali não se afastam, a não ser que sejam expurgados. Também não se
constrangem em mentir: repetem com absoluta convicção teorias esdrúxulas e
versões que não resistem à simples análises. E a todos nos deixam com a impressão
que uma certa dose de psicopatia é necessária para alcançar os postos mais
elevados da Nação.
Por muito menos do que vemos hoje no Brasil,
renunciariam os homens públicos de outros países onde ainda
sobrevive um certo pudor. A prostituição da política há muito já
deixou de ser motivo de vergonha em nosso país – lamentavelmente.
Agora, quase não se vê vestígios de qualquer
respeito aos cargos e funções públicos. Foi-se a solenidade do cargo
e o comedimento do gesto. O varal de cartazes colados esta semana nos
vidros do Palácio do Planalto é mais uma prova de que as instituições
foram convertidas em meros “puxadinhos”. É a mais recente
demonstração da confusão que se estabeleceu entre Estado e governo.
Recuamos trezentos anos e caímos no absolutismo ególatra de Luís XIV: “L‘État
c’est moi” (O Estado sou eu).
Aceitemos: somos co-autores dessa piada macabra que
nos vitima. Felizmente, estamos deixando de rir como crianças tolas. Hora de
dizer não aos discursos toscos e atitudes galhofeiras. Hora de varrer
os slogans ocos e a crescente espetacularização da
política, cujo ápice foram as excelências estourando bombas de
confete no plenário da Câmara em plena votação do impeachment.
Não, senhores, apesar de seus esforços em nos
infantilizar, uma grande parte da população reconhece a superioridade da
elegância e da ética – e as prefere em seus representantes, embora, obviamente,
muitos desavisados ainda se riam das baixezas. Alguns por mera identificação;
outros porque acham no mínimo curioso que um homem público, ocupante de altas
funções, desça ao nível dos bufões.
E há os que, justamente por se
reconhecerem anões morais, deleitam-se com as bravatas e traquinagens dos
governantes. A estes interessa assistir ao circo político como quem assiste a
um episódio do Big Brother, comprazendo-se com a miséria das atitudes e com as
pequenezas dos poderosos. “São todos iguais a mim”, dizem a si mesmos,
contentes que a tacanharia seja coletiva. Traduzem aquele gozo miúdo dos que,
incapazes de se erguer, debulham-se de alegria perante a queda alheia.
Estes passarão, assim como a era das mediocridades
na política nacional.
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