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quinta-feira, 19 de maio de 2016

Folha distorce fala de ministros e depois inventa “recuo”



Blog faz estudo de caso sobre saúde e justiça do jornalismo e do Brasil

Por Felipe Moura Brasil, 18/05/2016,
www.veja.com.br

“A polêmica está nos olhos de quem não lê.”
(FMB, no prefácio do best seller “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”)

1) O jornalismo

A Folha de S. Paulo publicou na madrugada de terça-feira uma matéria com o seguinte título:

Tamanho do SUS precisa ser revisto, diz novo ministro da Saúde

A suposta frase de Ricardo Barros não estava entre aspas, como se nota, porque ele nunca a disse.

No jornalismo, atribuir a alguém uma frase sem aspas no título de uma matéria é um recurso utilizado com frequência, tanto para a boa quanto para a má prática da atividade jornalística.

No caso da boa, o recurso é utilizado para tornar mais direta e clara uma frase do entrevistado que saiu truncada em sua fala original, mas cujo sentido o jornalista (repórter ou editor) mantém e destaca.

No caso da má, o título distorce ou encobre o sentido da fala original, ou ainda lhe acrescenta um novo conteúdo, configurando ilação ou invenção por parte do jornalista.

Esta má prática pode ser inconsciente (fruto de distração, erro, imprecisão, incompetência) ou consciente (fruto de rivalidade, partidarismo, ideologia, cinismo, má-fé, desejo de ganhar audiência com sensacionalismo).

Dada a simples possibilidade da má prática, convém ao leitor intelectualizado verificar sempre se as falas originais realmente condizem com a versão destacada nos títulos.

2) O caso da Saúde e da Folha

Na entrevista inicial, a Folha questiona duas vezes se haverá cortes para os programas da pasta e o ministro diz que “não posso afirmar isso agora” mas “meu objetivo é conseguir recursos para as obrigações contratadas”.

“Isso pode representar, com o resto a pagar dos anos anteriores, algo na faixa de R$ 14 bilhões”, diz Barros, dimensionado o rombo deixado por Dilma Rousseff na Saúde.

O ministro aponta a existência de fraudes entre os 300 milhões de cartões do SUS (“tem gente com mais de um cartão, com cartão fraudado”) e também “na compra de remédio a preço subsidiado” (“o cidadão pega num posto, pega no outro, tem cartão em duas ou três cidades e depois vai vender o remédio”).

Barros garante, então, que vai rever protocolos e “criar uma equipe para cuidar de todas as más aplicações de recursos” para acabar com fraudes, com “muito desperdício” em tratamentos de doenças que “não são os mais eficazes e nem os mais baratos” e com falhas no planejamento que resultam em UTIs e unidades de saúde fechadas e aparelhos sem funcionar.

O ministro explica que um dos fatores que levam as pessoas (mais de 1,3 milhões no último ano) a deixar de ter planos de saúde são decisões judiciais que determinam “incluir um procedimento na cobertura do plano”, o que gera aumento de custo.

Esse custo é então repassado ao consumidor, o que encarece o plano e resulta na debandada geral, cuja consequência é tornar mais gente dependente da rede pública de saúde. Essa dependência sobrecarrega o SUS e, portanto, os custos do governo.

“Quanto mais gente puder ter planos, melhor, porque vai ter atendimento patrocinado por eles mesmos, o que alivia o custo do governo em sustentar essa questão”, diz Barros.

Questionado pela Folha se não deveria ser o contrário, com “estímulo para um SUS melhor, já que pagamos impostos e temos direito à saúde”o ministro é obrigado a se ater à realidade nacional pós-Dilma – e ao fato de que dinheiro não cai do céu para o governo – em vez de embarcar no discurso ideológico de esquerda:

Destaco as seguintes frases realistas de Barros:

“Infelizmente, a capacidade financeira do governo para suprir todas essas garantias que tem o cidadão não é suficiente.”

“Temos que chegar ao ponto do equilíbrio entre o que o Estado tem condições de suprir e o que o cidadão tem direito de receber.”

“Vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as aposentadorias, e em outros países que tiveram que repactuar as obrigações do Estado porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las.”

Em suma: Barros se propôs a combater fraudes e desperdícios remanescentes da gestão Dilma e pregou a necessidade de se gastar menos com a Previdência para que sejam liberados mais recursos para a Saúde.

“Só para lembrar, a Previdência responde por 50% das despesas do Orçamento da União”, destacou o ministro. Para se ter uma ideia, o Brasil gasta anualmente com aposentadorias quase R$ 500 bilhões e o rombo em 2016 será de quase R$ 134 bilhões.

A manchete da Folha, no entanto, transformou a tentativa de eliminar gastos indevidos com o SUS e de otimizar os recursos disponíveis para a rede pública de saúde em um objetivo genérico – em nenhum momento alegado pelo ministro – de rever seu tamanho.

Como boa parte do público, especialmente nas redes sociais, só lê manchetes, as nuances naturalmente se perderam.

3) A guerra da propaganda e a estratégia do PT na oposição

Na guerra da propaganda política, uma manchete simplista sobre a redução do tamanho do SUS é usada pelo PT para fazer demagogia sobre o corte de direitos dos pobres imposto pelo governo “golpista” de Temer, com a omissão providencial (por parte dos petistas) dos rombos, fraudes e desperdícios deixados por Dilma que inviabilizam a sustentação desses direitos.

O déficit total deixado pelo governo Dilma já está previsto em mais de R$ 150 bilhões, mas a estratégia do PT na oposição é atacar cinicamente todas as medidas necessárias para reequilibrar as contas públicas, como se a incompetência e os abusos de poder do partido não fossem a causa dessa necessidade.

4) O “recuo” inexistente

Na tarde de terça-feira, a Folha publicou então uma nova matéria com a seguinte manchete:

Ministro da Saúde recua e diz que não é preciso rever tamanho do SUS
Como da primeira vez, a suposta frase de Ricardo Barros não estava entre aspas, porque ele tampouco a disse.

O que ele disse após reunião com especialistas e gestores de saúde em Brasília foi o seguinte:

“O SUS está estabelecido, estamos atendendo o máximo de pessoas possíveis, com o maior número de procedimentos que podemos autorizar e remédios, mas evidentemente que isso é insuficiente para a proposta constitucional do SUS, que é saúde universal para todos.”

“Para que possamos ampliar o SUS, teremos que repactuar a divisão de recursos que existe entre as diversas áreas do governo. A médio prazo, quando falo em repactuar, é por conta do crescimento das despesas previdenciárias que vêm ocupando espaços de outras áreas.”

Embora a Folha ainda acrescente um “justificou-se” a esta última frase, o ministro, na prática, simplesmente repetiu com outras palavras as mesmas coisas que havia dito, apenas enfatizando que “o SUS está estabelecido”, o que era a premissa lógica de toda a sua fala original.

Voluntário ou involuntário é uma espécie de golpe jornalístico: o jornal primeiro distorce em manchete a fala do ministro e, quando ele a detalha, inventa que houve um “recuo”.

5) A guerra da propaganda 2

Na guerra de propaganda política, todo “recuo” de ministros, mesmo que inventado pela imprensa, é tido como prova de despreparo, confusão, perdição, tontice, “bateção” de cabeça – e pouco importa se o novo governo foi formado às pressas após um processo de impeachment.

Para se ter uma ideia de como as manobras jornalísticas da Folha reforçam a propaganda do PT, segue uma montagem com as duas matérias do jornal, compartilhada pela conta de Twitter do PT na Câmara sob o comentário “Perdidos, tontos”.

6) O precedente da Folha com o ministro da Justiça

A Folha é reincidente neste tipo de manobra. Nesta mesma semana, fez um escarcéu depois que Alexandre Moraes – imagine – cumpriu seu dever de defender a Constituição.

Como mostrei aqui, o ministro da Justiça disse em entrevista ao jornal que não havia conversado com Temer sobre o método de escolha do procurador-geral da República, de modo que, ao ser questionado a respeito, limitou-se a defender o cumprimento das leis e a falar da “liberdade constitucional” do presidente para escolher o PGR dentro das opções legalmente previstas.

A jornalista Mônica Bergamo traduziu a explicação de Moraes como uma defesa (destacada na introdução da matéria) da não obrigatoriedade de se escolher o primeiro da lista tríplice da categoria, embora seja a lei, não Moraes, que preveja tal liberdade de opções para o presidente.

Após a repercussão da matéria, Temer simplesmente achou melhor definir o que ficou em aberto e divulgou a seguinte nota:

“Quem escolhe o procurador-geral é o presidente. E manterei a tradição de escolher o mais votado da lista tríplice”.

Foi o bastante para que a Folha forçasse novamente a barra, transformando a definição em “discordância” na matéria seguinte:

Nem a nota de Moraes reproduzida na coluna de Mônica Bergamo e parcialmente na matéria acima da Folha fez o jornal repensar o título distorcido.

A nota relata apenas fatos:

“O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, reitera que jamais conversou sobre os critérios de nomeação do PGR com o presidente da República interino, como consta na entrevista, e que, diferentemente do afirmado pela Folha de S. Paulo, jamais afirmou que o governo poderá alterar o processo de escolha. Conforme consta na própria entrevista, tão somente fez uma análise da previsão constitucional que garante plena autonomia da Chefia do Ministério Público da União.”

A manobra da Folha, no entanto, ainda induziu a erro outros veículos, como G1/Globonews e Zero Hora, que chegaram ao cúmulo de noticiar que Temer “desautorizou” Moraes:

Para completar a falsa polêmica, a Folha ainda noticia que o ministro “muda tom” ao considerar “muito bom” nomear o mais votado para a PGR.
Não houve, obviamente, mudança alguma de tom.

Houve simplesmente o respeito inicial à Constituição e à autoridade do presidente e depois, na devida hora, uma opinião sobre a opção escolhida por ele:

“Não houve nenhum mal-estar [com Temer]. Houve uma interpretação errada dada na matéria […] Nenhum mal-estar, de forma de nenhuma. Como bem disse o presidente, quem escolhe [o procurador-geral da República] é o presidente, ele tem essa discricionariedade, optou e vai optar pelo primeiro. O que é muito bom para o Ministério Público”, disse Moraes.

7) A saúde e a justiça do jornalismo

Alimentar falsas polêmicas em reportagens supostamente noticiosas para ganhar audiência, manchar a imagem de adversários políticos e/ou, em nome da isenção, buscar compensar contra o novo governo as denúncias verídicas contra o anterior revela apenas a debilitação da saúde e do senso de justiça do jornalismo brasileiro.

Sendo este ou não o caso da Folha, o jornal deveria se retratar e, com isso, contribuir para um debate público menos histérico.

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