Não pode haver sociedade decente fora do império da lei, igual para
todos
Por: Augusto
Nunes 23/11/2016,
www.veja.com.br
Texto de Sergio Fausto Publicado no Estadão
Ao contrário de Godot, personagem do dramaturgo
Samuel Beckett, ela chegará: a delação premiada de aproximadamente 50
executivos da Odebrecht e de membros da família que controla a companhia virá à
luz nos próximos meses. Não será o dia do Juízo Final para os cerca de 200
políticos que, diz-se, são mencionados nos depoimentos feitos ao Ministério
Público. Haverá situações variadas: quem recebeu recursos de caixa 2 e praticou
crime de lavagem de dinheiro e/ou corrupção; quem recebeu esses recursos sem
cometer tais crimes; quem os cometeu em benefício de financiamento de campanha
própria ou de seu partido e/ou de seu enriquecimento pessoal, etc. Caberá à
Justiça individualizar cada caso e as penas respectivas, quando couberem,
respeitado o devido processo legal. E à sociedade, formar juízo a respeito da
responsabilidade de cada um(a) do(a)s acusados(as).
A despeito da diversidade dos casos, as delações da
Odebrecht confirmarão a existência de um sistema de corrupção
político-empresarial que se entranhou nos partidos e no Estado. Mais: mostrarão
que esse sistema operou em governos de várias colorações partidárias, nos
níveis nacional, estadual e municipal, e em favor de políticos de diversas
siglas, embora o PT tenha sido seu principal articulador e beneficiário. A
confirmação do ecumenismo do sistema terá duas conseqüências importantes:
jogará uma pá de cal na ideia da seletividade partidária da Lava Jato e porá o
PSDB e outros partidos que se opunham ao governo anterior na posição de
acusados, e não de acusadores. A reação do PT à Lava Jato oferece insuperável
exemplo de como não enfrentar essa situação.
Compartilho a preocupação de quem teme os efeitos
desse anunciado terremoto político sobre o atual governo, que mal começa a
resgatar o País do poço cavado pelo anterior. Temo também a eventual
inviabilização jurídica e/ou política de lideranças que farão falta ao País
pela experiência, pelo conhecimento e pela competência inegáveis que têm.
Na política, à diferença da economia, nem sempre a
destruição dos incumbentes leva ao progresso – o economista austríaco Joseph
Schumpeter cunhou a expressão “destruição criativa” para se referir ao avanço
do progresso técnico no capitalismo pela emergência “disruptiva” de novas
empresas e novos empreendedores. A substituição de uma geração de líderes
políticos por outra, principalmente quando os partidos não cuidaram antecipadamente
da necessária renovação de seus quadros, será complicada.
O maior risco, porém, é que, em nome da
governabilidade do País e da estabilidade do sistema político, prevaleça
novamente alguma forma de autoproteção dos “donos do poder”. A democracia
depende, em última instância, de o povo acreditar que eleições, partidos e
congressos não são um jogo que serve apenas aos interesses dos que jogam e
pagam o jogo. Essa crença está por um fio. Se desabar, será difícil reerguê-la
e o cenário estará pronto para demagogos e messiânicos.
Diante desse risco os intelectuais se vêem diante
de um desafio. Enquanto a corrupção era um mal imputável exclusivamente às
oligarquias atrasadas (Collor e seu operador PC Farias, para dar um exemplo), a
vida era mais fácil. Quando as investigações da Lava Jato começaram a revelar
que o PT havia organizado um esquema de corrupção nunca antes visto na História
deste país – pela escala e pelo comando superior centralizado –, os
intelectuais petistas, com poucas exceções, divorciaram-se definitivamente da
realidade para atacar com fé cega o Ministério Público, o Judiciário, a
imprensa, ou seja, instituições centrais da democracia brasileira. Todas seriam
culpadas. Menos o seu partido, vítima de uma “conspiração das elites”.
Os intelectuais petistas de maior bom senso
evitaram abraçar teses estapafúrdias – como a das supostas ligações dos
procuradores da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro com o governo americano,
imaginariamente interessado em apear o PT do poder para roubar do Brasil as
riquezas do pré-sal. Preferiram denunciar a “criminalização da política”, como
se os procuradores e o juiz estivessem atentando contra a democracia ao
investigar crimes cometidos por políticos do PT e partidos aliados.
Esqueceram-se de que quem pratica a corrupção, sendo agente político, é que
criminaliza a política, e não quem investiga ou pune essa prática com base em
provas produzidas dentro do devido processo.
O sentido de missão revelado pelo juiz e pelos
procuradores de Curitiba foi transformado em atributo negativo: seriam
“missioneiros”, imbuídos de um cristianismo conservador, ligados a Opus Dei,
evangélicos, etc. A “esquerda” passou a estigmatizar um grupo de servidores
públicos concursados, bem preparados tecnicamente, empenhados em deslindar um
sistema de corrupção comandado por partidos governistas e um oligopólio de
grandes empreiteiras. Que beleza!
Se o PSDB quiser um lugar ao sol no lado mais
luminoso da política brasileira terá de mostrar que nem todos são iguais. Na
avaliação política das culpas e responsabilidades o tribunal terá duas
instâncias: a opinião pública e o grosso do eleitorado. Na primeira haverá
algum espaço para um debate nuançado sobre o caráter mais ou menos sistêmico ou
o grau mais ou menos profundo de práticas de corrupção. No segundo, a
exemplaridade, o cortar na carne, a coragem de se arriscar com novas lideranças
farão toda a diferença, a depender da extensão e profundidade dos danos
causados pelas delações de Odebrecht.
No Brasil oscilamos entre a impunidade e a
violência, desigualmente distribuídas. A punição de crimes pela Justiça,
respeitado o devido processo legal, é uma das maiores conquistas da
civilização. Só se redime quem paga por seus erros. Isso vale para os
indivíduos e vale também para um país. Não pode haver democracia, não pode
haver sociedade decente, fora do império da lei, igual para todos. Doa a quem
doer.
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